Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:

Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina

Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.

O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que  “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento

  • P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidencia deles no registro fóssil.
  • P2 – Não existe evidencia de unicórnios no registro fóssil.
  • Conclusão- Unicórnios não existem.

Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.

“Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.

Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.

Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:

  • P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
  • P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
  • Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.

Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.

O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.

Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020

Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.

Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidencias problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?

Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

  • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
  • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
  • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.

Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades. Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

  • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
  • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
  • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
  • P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.

E disso segue que

  • C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.

O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.

Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.

Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.

*Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problematicas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a unica “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).

Três ótimos (e respeitosos) debates entre Ateus e Teístas.

Eu sempre adorei discussões. Quando entrei na graduação, o ponto alto da minha semana era o Grupo de Discussão de Evolução, um grupo organizado por três veteranos que talvez tenham achado naquele fórum uma válvula de escape para o que eu iria sentir mais tarde na pele: a total ausência de embate entre pontos de vistas conflituosos na academia.

Foi só quando me meti em discussões sobre ateísmo, que descobri a existência de debates acadêmicos, onde os debatedores expõem seus lados em um formato previamente estabelecido. Eu achei isso fantástico: esses debates não apenas permitem uma grande troca e exposição de informação, como também entretêm. Prefiro mil vezes assistir um debate de duas horas do que o novo filme da série “Velozes e Furiosos”.

Agora, um problema de debates entre teístas e ateus é que eles facilmente se tornam acalorados e muitas vezes desrespeitosos, que é algo tira o foco do assunto e entram no caminho da discussão. Um bom debate é aquele que o debatedor interpreta a posição do oponente sob a melhor luz possível e tenta responder à altura. Sem respeito, os debatedores comumente correm o risco de interpretar errado o que seu oponente tem a dizer e responder àa pontos que não foram feitos. E ninguém ganha com isso.

Abaixo linkei três debates entre teístas e ateus que acho particularmente bons nesses aspectos. São ótimas fontes de informação sobre ambos os lados, mostrando que é possível haver confronto sem ofensas. Ao menos não muitas. Infelizmente estão apenas em inglês, e requerem um ouvido acostumado.

Peter Singer vs John Hare – Mamíferos Morais, e porque nós importamos
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Debate entre o famoso filósofo Peter Singer (ateu) e o filho do seu mentor, também filósofo, John Hare (teísta). O objetivo desse debate é expor as bases e justificativas para o comportamento ético sob as perspectivas ateia e teísta, respectivamente. O resumo é simples: na visão teísta, Deus justifica tudo e é a base da moralidade. Na visão ateia, não (obviamente), mas é bom notar que muitas das questões éticas respondidas por “Deus” não estão resolvidas numa visão secular. O motivo disso, imagino, é que “Deus” não é resposta para essas perguntas em primeiro lugar.

(Meta)Fisica: Hans Halvorson e Sean Carroll em Caltech
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Hans Halvorson, filosofo teísta de Princeton, e Sean Carroll, físico da Caltech, blogueiro e divulgador científico expõem suas visões metafísicas em uma conversa amistosa. A parte que mais me interessa é a discussão que começa em aproximadamente 20min, no qual Carroll responde ao argumento do Ajuste Fino das Contantes do Universo para a existência de Deus. Esse argumento (junto com o Principio Antrópico) sempre me incomodaram muito, pois sugerem que nós sabemos como a vida surgiu. Mas, se soubéssemos isso, criar vida em laboratório de matéria inanimada seria rotina, mas infelizmente ainda estamos anos luz disso. E a resposta de Carroll sugere isso: não sabemos o que é necessário para ter vida e não sabemos o quão provável ela é nesse ou em qualquer outro universo. Halvorson concorda,  admitindo que, apesar de achar que o universo é finamente ajustado, ele acredita que os argumentos para isso são péssimos, sugerindo ainda que usar ciência para sustentar a visão teísta é teologia ruim. E eu concordo 100% com ambos.

Bônus: ambos respondem qual é o maior desafio para sua visão de mundo e são bastante honestos sobre isso.

(In)Acreditável?: Um filosofo ateu e um teísta compartilham suas visões de mundo- Universidade de Cambridge
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=lGtSjqnzZHo”]

Esse é um debate bastante interessante, entre o filosofo ateu Arif Ahmed e o Reverendo e professor aposentado Keith Ward. Ward é um idealista, que acredita que a realidade da mente precede a realidade da matéria, e Ahmed defende uma posição empiricista ampla, onde qualquer crença deve ser considerada verdadeira apenas se tivermos evidencias para ela. Apesar desses pontos não serem necessariamente opostos, grande parte do debate se foca na operacionalidade dessa visão de Ahmed, com Ward obviamente discordando. 

Gosto bastante de ambos debatedores. Ward é bastante honesto e aberto sobre suas crenças e sobre como encara a filosofia como uma forma de racionalizar sua visão de mundo (nada diferente de o que um ateu deve fazer, na minha opinião). Ahmed é um pouco confuso, mas bastante lúcido em suas posições, conseguindo dissecar e apontar problemas na visão teísta com precisão, nenhum dos quais negados diretamente por Ward. Vale a pena adicionar que Ahmed também é conhecido como o cara que destruiu Willian Lane Craig em um debate que, infelizmente, não entra nessa lista por motivos óbvios.

Fé não é um processo epistemológico válido

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Peter Boghossian

Esses dias relendo o texto “Investigações estatísticas na eficiência da prece”, do Francis Galton, e me deparei com a seguinte passagem:

Existe um motivo para esperar que um homem devoto e supersticioso seja irracional; pois uma pessoa que acredita que seus pensamentos são inspirados, necessariamente certifica seus preconceitos com autoridade divina. Ele é, assim, pouco vulnerável à argumentação, e é intolerante em relação àqueles que apresentam uma opinião distinta da sua, especialmente em princípios fundamentais. Consequentemente ele é um mal parceiro em questões de negócios. É uma opinião corriqueira no mundo de que pessoas que rezam não são práticas.

Parece duro, mas eu acredito que a crítica continua bastante válida. Não porque eu de fato acredite que religiosos são maus parceiros, ou que algo na sua religiosidade os impede de serem bons profissionais, longe disso. Acredito que o fato de a maioria esmagadora da sociedade, inclusive em países desenvolvidos serem religiosos, argumenta contra essa ideia. Entretanto, ainda acho que esse ponto, de certa forma, procede.

Recentemente, o filósofo Peter Boghossian resolveu fazer disso o foco central de seu livro “Um Manual Para Produzir Ateus”. Segundo Boghossian, o ataque às religiões é contra-producente, e a ideia que precisa ser passada é que existem processos para a geração de conhecimento (ou, processos epistemológicos) que não são confiáveis, isso é, eles diminuem a probabilidade de se ter crenças que são verdadeiras. Ele ainda identifica duas comunalidades entres processos epistemológicos pouco confiáveis. Via de regra, tais processos 1) não se baseiam em evidências e/ou 2) se baseiam em coisas que são consideradas evidências, quando na verdade não são. E fé, afirma Boghossian, apresenta ambas as características.

A ideia de Boghossian é que, ao ensinar pensamento crítico e baseado em evidência, as pessoas irão aprimorar sua capacidade de adquirir crenças verdadeiras, levando à exclusão da fé como um processo epistemológico, o que eventualmente levaria a rejeição de religião.

É válido notar que nem sempre religiosos aplicam fé como base epistemológica universal. Quando em âmbito profissional, muitos religiosos recorrem a pensamento crítico baseado em evidências para direcionar suas ações: um empresário religioso não vai esperar inspiração divina para fechar um negócio, mas sim recorrer à analise de custo/benefício e do ambiente do mercado para tomar suas decisões. Sendo assim, a crítica de Galton nos dias de hoje pode ser mais encarado como um reductio ad absurdum do o que aconteceria se as pessoas aplicassem fé como um jeito especial de entender a realidade em todas as esferas da sua vida, algo que é comumente apontado por críticos de religião.

Claro, muitos podem apontar a ironia na citação de Galton, visto que esse era um fervoroso crítico das teorias de Mendel, que era um monge e, em qualquer avaliação, um “homem devoto”. Mas de qualquer forma, nós sabemos que Mendel está correto, e não Galton, por causa das evidências da genética e hereditariedade, e não por inspiração supernatural.

Estado Laico? Não nesse país!

Faz um certo tempo que não tenho tempo de bloggar, e por isso peço desculpas para os eventuais leitores. O fato é que comecei minhas viagens de coletas de dados, o que tem sugado a maior parte das horas dos meus dias e dos dias da minha semana, isso sem contar que fico sem acesso a um computador a maior parte do tempo durante os fins de semana. No presente momento estou visitando o Museo Argentino de Ciencias Naturales, em Buenos Aires e devo permanecer mais algum tempo por aqui. Apesar de trabalhar todos os dias em Buenos Aires, estou em uma pequena cidade chamada San Miguel e pego o trem todos os dias para o museu. É bastante cansativo, o que limita ainda mais meu tempo e animo.

Entretanto, não pude deixar de notar a-não-tão recente controvérsia a respeito da remoção da frase “Deus seja Louvado” das cédulas de Real. Digo que não é uma controvérsia recente pois, se bem me recordo, tal questão começou quando o procurador do Ministério Público Pedro de Oliveira requisitou que o Banco Central removesse a frase das cédulas de Real. Em resposta a isso, o Banco Central argumentou que o pedido sofria de “vício de origem”, o que é o jeito jurisdiquez de dizer que a você apresentou o papel no guichê errado. Logo em seguida, a LiHS lançou um abaixo assinado que pedia ao orgão correto (o Conselho Monetário Nacional) que a remoção fosse feita. Paralelamente, o Ministério Publico afirmou que iria pressionar o assunto. O quanto tais eventos estão interconectados, eu não sei dizer.

Eu não acredito que tenha muito a contribuir com a discussão. Minha posição é simples: se almejamos um estado laico e igualitário de fato, a remoção é um passo simples. Não engulo argumentos sobre como a frase é um reflexo de nossa história cristã pelo simples fato de que a a frase nem 30 anos tem. Se é reflexo de alguma coisa, é reflexo da nossa democracia engatinhante da década de 80, e tão passível de revisão quanto qualquer lei e decreto feita dentro desse próprio contexto.

Mas o que gostaria de compartilhar é algo que encontrei nas minhas andança por aqui. A foto abaixo é de uma pequena capela que está no meio de uma pista de esportes muito movimentada aqui da vizinhança. A imagem no começo do post é de um Santo que está em seu interior (presumidamente San Miguel).

Capela

Até ai, nada de muito impressionante, exceto pelo que encontrei do outro lado da construção:

“Capela construida e mantida pelo município de San Miguel”
E, caso vocês estejam se perguntando, não há uma sequer menção a Deus nos Pesos Argentinos.
Não sei ao certo o ponto disso tudo, mas achei irônico que um país que tenha passado por um processo de laicização, como a Argentina, o dinheiro público ainda seja usado para construções religiosas. Irônico, mas não inesperado.

Matthew Chapman fala sobre o sincretismo religioso brasileiro.

Estou começando a ler o livro “Trials of the Monkey” (O Julgamento do Macaco), de Matthew Chapman, autor, roteirista de cinema e descendente direto de Charles Darwin. Menciono esse ultimo não porque acredito que a grandeza de seu ancestral tenha reverberado ao longo das gerações. Pelo contrário: Chapman é, de muitas formas a antítese de Darwin, um homem pouco intelectualizado, pragmático, ateu e perdido, características certamente influenciadas pelo nome de seu ancestral. Segundo ele próprio:

[…] Foi quando fui levado para o zoológico aos seis anos de idade e ao observar os macacos enfiando o dedo no nariz, se coçando e tentando fazer sexo em público que tive certeza: evolução era um io-io e, no meu caso, o io-io tinha quase atingido o fim da corda. Ele tinha que ser puxado alguns centimetros para subir novamente. Se Charles Darwin era o topo, eu seria o fundo. […] Simples mediocridade acadêmica não seria o suficiente. Eu tinha que ser pior que isso. Eu tinha que batalhar contra a educação com tudo que eu tinha.   Assim como Charles era obstinado e diligente na sua coleção de fatos, eu o seria em rejeita-los. Essa seria a minha defesa contra o esmagador peso da história da familia.

Assim como seu ancestral, entretanto, ele parece carregar consigo um enorme amor por sua filha e sua esposa religiosa. Curiosamente, a esposa de Chapman é Denise Dummont, ex-atriz brasileira. Chapman se refere a ela de forma incrivelmente amorosa e com grande admiração, inclusive quando comenta de sua fé supersticiosa, característica que inicialmente ele repudiou, para depois aceitar e admirar. Ao comentar sobre a fé de Denise, Chapman acaba falando sobre a fé brasileira de uma forma interessante e distanciada:

Essa fé é a fonte de tudo que eu amo nela e de tudo o que discutimos. Denise se identifica como Católica, e ainda sim acredita no direito da mulher de escolher [aborto], contracepção, e direitos dos homossexuais. A madrinha brasileira de nossa filha é uma lésbica. Mesmo sendo Católica, Denise acredita – tão casualmente e naturalmente quanto você e eu acreditamos na previsão do tempo – em Candomblé, a mais Africana de todos os sectos de Macumba. Trazida por escravos, o Candomble foi sincreticamente combinado com Catolicismo de tal forma que as fitas de boa sorte africanas  que Denise usa ao redor do pulso veem de uma igreja na Bahia onde foram abençoadas por um Padre [Fitas do Senhor do Bonfim]. De todas as deidades na religião do Candomble temos Iemanja, a deusa–ou santa– do mar, para quem nós jogamos oferendas de flores no Ano Novo; Oxalá, o pai de todos os santos; e Oxum, a deusa da água doce, que é uma das santas de Denise. Todo mundo tem pelo menos dois santos, determinados pelo auto-sacerdote, ou Pai de Santo, através dos búzios. 

No Brasil, ninguém é tido como primitivo, ou insano ou excêntrico por acreditar em tudo isso. Uma noite eu jantei com o Chefe do Protocolo do Presidente do Brasil. Ela falava um inglês perfeito e francês e tinha graduação em ciências políticas em uma universidade europeia.  Na noite seguinte, andando na praia, eu a vi dançando ao redor de uma fogueira, enquanto um sacerdote vestido de branco da Bahia conjurava encantamentos ao som de vinte tambores. Intelectuais, empresários, políticos, doutores, qualquer um pode visitar um Pai de Santo e fazer sacrifícios de animais para trazer boa sorte, ou espantar os maus-augúrios e depois ir em uma igreja católica para acender um vela. Um amigo meu, que é um dos mais poderosos homens da TV brasileira, me disse que se ele dobra o dinheiro dele de uma maneira particular, isso iria assegurar sua contínua prosperidade. Ele dobra o seu dinheiro dessa forma. Denise acredita que se ela acender uma vela na frente das fotos de minha mãe morta e do seu pai morto, isso os estimulará a trabalhar em nosso benefício e nos trazer boa sorte.  Fé supersticiosa é o sine qua non da vida Brasileira em diversos níveis.

Não posso deixar de evidenciar o romantismo nessa passagem. Afinal, mesmo com nosso sincretismo religioso, religiões africanas sempre foram, de uma forma ou outra, discriminadas. Porém me parece um ideal interessante de espiritualidade: a assimilação sincrética soa avessa ao fundamentalismo religioso. Se esse de fato é o caso, talvez o sincretismo e a diversidade sejam um bom ideal para a causa humanista secular.