Material genético pra quê?



A mudança está em você, e não no material genético

ResearchBlogging.orgUma das interpretações da Teoria da Evolução pela Seleção Natural (sim, existem outros processos evolutivos, como a Deriva Genética), diz que os organismos variam no  tempo por ação de três fatores, propostos pelo bom velhinho: Variabilidade; Hereditariedade; e Seleção Natural. Ou seja, uma população vai ter organismos diferentes (Variabilidade), que vão ter desempenhos diferentes e serão selecionados com base nisso (Seleção Natural), passando adiante tais características através da reprodução (Hereditariedade).

E, seguindo estes princípios, a evolução acontece. Seja em organismos vivos ou em “entidades não vivas”, como são considerados os vírus e algumas moléculas de RNA  capazes de infectar células. Mas até então, a evolução em entidades biológicas, para diferenciar de organismos artificiais, estava vinculada ao material genético.  Basicamente quem muda é uma molécula de RNA ou DNA, através de mutações.

Mas não para o príon, ele é uma proteína que [modo clichê on] pensou fora da caixa [modo clichê off]. O príon é uma proteína que contraria uma série de conceitos  imaginados apenas para organismos e faz por conta própria, dispensando o material genético. Ele é uma proteína que percebeu que quem se dobra não é a colher, e não é por que outros dependem de material genético que ele também ia precisar.

Conforme já expliquei aqui, as proteínas dependem da estrutura que adotam para realizar suas funções. E assim como um origami, podem ser dobradas de diversas  formas, mas apenas algumas são funcionais. Isso na verdade representa um problema, como as proteínas podem assumir milhões de conformações diferentes, precisam  ser produzidas de maneira que consigam assumir a conformação ideal.
 
Já o príon é uma proteína chamada PrP produzida por neurônios que se dobrou de maneira errada. O problema é que esta maneira errada (ou PrPSc) é muito mais estável do que a normal (PrPC). Tão estável que é capaz de dobrar outras proteínas PrPC do mesmo em uma conformação igual à sua PrPSc (Hereditariedade) e ainda é resistente. Desta forma, quando o príon entra em uma célula, ele começa a se propagar, transformando PrPC em PrPSc e formando grandes aglomerados proteícos que não são digeridos pela célula e acabam matando-a.
 
O conceito de uma proteína infecciosa que é capaz de ser transmitida é algo tão inesperado que levou muito tempo para que aceitassem que a encefalopatia espongiforme bovina (doença da vaca louca ou BSE) fosse causada por uma. Com o tempo, acabamos descobrindo que príons causavam uma série de outras doenças como a Síndrome de Creutzfeldt-Jacob, o kuru ou a coceira do carneiro (Scrapie), e que podiam inclusive desempenhar funções importantes para os organismos, como em alguns fungos.

E não só os príons não precisam de material genético para se propagar, como também podem evoluir sem ele. Ao serem cultivados em células que expressam PrP, podem adquirir novas conformações (Variabilidade), variantes que possuem uma outra dobra diferentes mas também são capazes de se propagar. Elas diferem na resistência ao ataque por proteases, enzimas que quebram proteínas, e através dos pedaços da quebra podemos saber quantas conformações diferentes existem.
 
É esta variabilidade de conformações que permite que a evolução aconteça. Quando em células de rim cultivadas expressando PrP, uma das variantes predomina, e quando se propaga no cérebro, local onde a PrP é normalmente produzida, outra variante do príon que se sobressai. E elas são capazes de competir entre si, colocando ambas em um cérebro não infectado, a variante de cérebro predomina, e o inverso acontece quando são colocadas em células (Seleção Natural).

Outra pressão seletiva pode ser a swainsonina, um inibidor de príons. Na presença de swainsonina, o número de células infectadas pelo príon sensível diminui bastante, mas após algumas “gerações” ou passagens, uma variante resistente aparece, capaz de se propagar sem inibição embora se replique mais lentamente. Retirada a swainsonina, a variante anterior volta a ser a predominante, mas o processo pode se repetir caso o inibidor seja recolocado. Esta informação é especialmente importante para quem está desenvolvendo drogas para o tratamento de Creutzfeldt-Jacob, uma vez que o mesmo pode ocorrer.
 
O príon é a prova de que Evolução é uma propriedade emergente em sistemas que apresentam os pré-requisitos, independente de se tratar de um organismo ou não. Ou  isso, ou o Criador tem uma compulsão por ordenar tudo, e garante que uma proteína consiga consiga transformar o cérebro de animais puros e inocentes em queijo  suíço da maneira mais eficiente possível.

Li, J., Browning, S., Mahal, S., Oelschlegel, A., & Weissmann, C. (2009). Darwinian Evolution of Prions in Cell Culture Science DOI: 10.1126/science.1183218

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3 responses to “Material genético pra quê?”

  1. Condordo com você que evolução ocorre em outros meios, mas me refiro à idéia de que em entidades biológicas evolução estava vinculada ao material genético.
    Me lembro de ler no Relojoeiro Cego o Dawkins propondo evolução em partículas de argila capazes de promover cristalização que seriam dispersas quando lagos ou rios secam. Foi o que me fez perceber que não precisa ser algo “vivo” pra evoluir.
    p.s. Se você tiver o artigo sobre evolução em vírus de computador e puder me passar, agradeço muito.

  2. desculpe, mas no último parágrafo a palavra “consiga” foi repetida.
    Muito impressionante este post, foram bons argumentos. No livro do Dawkins “O gene egoísta” ele dá enfase aos “replicadores”, que se referem ao material genético em organismos biológicos, que acabaram sendo o centro das atenções no estudo da evolução pois eram os mais visíveis para nós, até pouco tempo atrás. Mas se pudemos criar hipóteses de um mundo de RNA, por que não de evolução em não-material genético?!

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