Governo Federal cria Departamento voltado para a Educação Midiática: o que isso significa? 

O novo governo federal que tomou posse no último dia 1º de janeiro de 2023 criou o Departamento de Direitos na Rede e Educação Midiática, subordinado à Secretaria de Políticas Digitais, dentro da nova estrutura da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. A louvável iniciativa suscita alguns questionamentos: O que este governo entende por Educação Midiática? Quais serão as ações desse departamento? O que precisa ser feito a partir de agora?

O que é Educação Midiática? 

Primeiro é importante explicar do que se trata a Educação Midiática. Não está claro, até porque recente, o que este governo entende por Educação Midiática. O conceito deve ser definido nas primeiras reuniões e dependendo das pessoas colocadas em sua coordenação, deve ser adotada uma linha de pensamento. Há muitos autores que falam sobre o tema e há também muita confusão em relação aos termos, principalmente porque em sua maioria são traduzidos da língua inglesa. 

Eu adoto a definição do britânico David Buckingham, para quem:

A Educação Midiática é o processo de ensino e aprendizagem sobre a mídia, também chamada de Educação para a Mídia. 

Ainda para esse autor, a Educação Midiática é o resultado do Letramento Midiático, que seria uma forma de letramento crítico, isto é, envolve análise, avaliação e reflexão crítica sobre os meios de comunicação (1). Por essa definição, um departamento voltado para o tema teria a função de educar para os meios de comunicação em geral, incluindo aí os “novos” veículos de mídias exclusivamente digitais, sobretudo os de mídias sociais. No entanto, se adotada outra linha de pensamento, o viés pode ser outro.

Quais serão as ações desse departamento?

O Departamento, criado por meio do decreto nº 11.362, de 1º de janeiro de 2023 diz, em seu artigo 25, o seguinte:

Art. 25. Ao Departamento de Direitos na Rede e Educação Midiática compete:

I – desenvolver e promover medidas de proteção a vítimas de violação de direitos nos serviços digitais de comunicação, em articulação com Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Ministério de Mulheres e Ministério da Igualdade Racial;

II – auxiliar na proposição e na implementação de políticas públicas para promoção do bem-estar e dos direitos da criança e do adolescente no ambiente digital em articulação com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania;

III – auxiliar na formulação, articulação e implementação de políticas públicas de educação midiática, em articulação com o Ministério da Educação; e

IV – apoiar a formulação de políticas e de metas relativas à Internet, à proteção de direitos e à segurança na rede, no âmbito das competências da Secretaria.

O desenho de suas competências (um inciso apenas dedicado à questão da Educação Midiática) faz supor que o assunto terá um peso menor no Departamento e que o foco principal será o de proteger os direitos e a segurança dos cidadãos nas redes. O fato de planejar realizar seus projetos articulados ao Ministério da Educação suscita a pergunta do porquê o Departamento não está na estrutura do referido ministério, que em teoria, já deve ter políticas desenvolvidas sobre o assunto.

Apesar disso, o Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom), professor Ismar de Oliveira Soares, em texto para o site da entidade, afirma que o decreto

“ao ser assinado no primeiro dia do mandato presidencial, revela o resultado positivo de uma mobilização advinda de muito setores da sociedade, que se fizeram presentes no período de elaboração de proposta a ser adotada pelo futuro governo”

Certamente, a inclusão formal de um departamento para cuidar do tema é um primeiro grande passo para que se possa prestar mais atenção ao assunto, embora a educação para a mídia (não expressamente) esteja entre os objetivos estabelecidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que implica dizer que o departamento nasce com, pelo menos, cinco anos de atraso e que a temática foi ignorada (premeditadamente ou não) pelos governos anteriores (Temer e Bolsonaro, diga-se).

Um pouco da história da relação comunicação-educação

A inter-relação comunicação/educação data de quando o pedagogo francês Célestin Freinet (1896-1966) introduziu ainda nos anos 1920 em suas aulas a técnica do jornal escolar. Mario Kaplún (1923-1998) – professor e jornalista argentino, crítico da comunicação e ávido por outro modelo – inspirado em Freinet, cria o neologismo “Educomunicador”, ao denominar aquele que realiza essa comunicação educativa. A partir da crítica da Educação Bancária elaborada por Paulo Freire (1921-1997), Kaplún relaciona sua proposta à concepção de educação libertadora, defendida pelo brasileiro.

Por sua vez, Freire avalia que “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (2).

Já o colombiano Jesús Martín-Barbero (1937-2021), teórico da comunicação na América Latina, aborda o surgimento de um ecossistema comunicativo relacionando-o à comunicação e criticando a centralidade do sistema educacional no livro e na escola, defendendo que a comunicação – em função das novas tecnologias e de um ambiente de informação e conhecimento múltiplo, descentralizado em relação ao sistema educacional – não pode mais ser conduzida com uma visão linear. 

Mais recentemente no Brasil cabe destacar o já citado professor Ismar de Oliveira Soares, um dos precursores dos estudos de Educomunicação no Brasil (com livros publicados desde 1982), a professora Maria Aparecida Baccega (com artigos para a revista Escola de Comunicação e Artes da USP “Revista Comunicação & Educação”) e José Manuel Moran (que em 1993 publicou, dentro de uma proposta educomunicativa, o livro “Leitura dos Meios de comunicação”). 

É importante lembrar ainda do legado de José Marques de Melo “Um dos primeiros teóricos brasileiros a demonstrar interesse com práticas educomunicativas especificamente com a leitura do jornal na escola enquanto estímulo à cidadania” (3). O teórico serviu como base para outros estudiosos, dentre os quais Maria Alice Faria (que no início dos anos 1990 publicou o livro “Como usar o jornal na sala de aula”) e Gilberto Dimenstein (que em 1999 lançou o livro “O cidadão de papel”, que discute a função do jornal no contexto de práticas escolares e na formação de cidadãos).

O que precisa ser feito?

Para se saber o que vai acontecer na prática será necessário olhar o perfil dos diretores e coordenadores do departamento, de quem ainda não se tem notícia até a publicação deste texto. No entanto, é possível refletir sobre o que precisa ser feito para que se implemente de fato a Educação Midiática no país.

Em primeiro lugar é preciso fugir do imediatismo e das soluções ingênuas. Não há respostas prontas, tampouco fórmulas mágicas. Pode-se partir de projetos aplicados em outros países ou até mesmo no Brasil, como o Educom.radio, uma parceria entre o Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da Universidade de São Paulo (USP) com a prefeitura de São Paulo, no qual se trabalha com a linguagem radiofônica e a elaboração, pelos professores e alunos conjuntamente, de projetos educomunicativos solidários e integrados às práticas curriculares.

Em segundo lugar, é preciso pensar sobre qual educação midiática queremos:

  • Formar para o uso das ferramentas de tecnologia digital com o intuito de fazer girar a roda do consumo cultural de forma alienante ou de conscientizar para as armadilhas do consumo? 
  • Formar para o cidadão ter mais uma ferramenta para acessar e reivindicar os seus direitos, buscar mais cidadania e mais democracia ou para clamar por um Golpe de Estado?

Por último (ao menos neste texto), é preciso investir pesadamente na formação de professores para que se passe do uso apenas funcional da tecnologia (pesquisa de conteúdo e trabalhos escolares) para o uso crítico das mídias, ou seja, uma compreensão mais ampla dos contextos sociais, econômicos e institucionais da comunicação e como eles afetam as experiências e práticas das pessoas, conforme preconiza Carmen Luke (4). 

Há uma gama de alternativas, no entanto, escolher quais serão aplicadas e quais serão abandonadas não pode ser uma decisão centralista, mas dialogada com pesquisadores, especialistas em educação, comunicadores e professores. Até porque o que funciona na escola pública pode não funcionar em instituições privadas e cada comunidade e instituição tem que debater e discutir suas necessidades, bem como suas possibilidades. E o governo tem que estar aberto a esse debate. 

Por fim, no poema “Os Votos“ (5), o jornalista Sérgio Jockymann diz numa estrofe: 

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano você ponha uma porção dele na sua frente e diga: Isto é meu. Só para que fique claro quem é o dono de quem”.

Sugiro que façamos o mesmo com a tecnologia. Vamos colocá-la na mesa e dizer que somos nós quem decidimos os rumos que ela deve tomar para nos ajudar a melhorar enquanto humanidade. E não como acontece atualmente, momento em que estamos subordinados aos interesses das Big Techs e de grupelhos antidemocráticos e negacionistas. A Educação Midiática é ferramenta imprescindível para se conseguir isso.  

*  O autor é Mestre em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp, 2023), Especialista em Educomunicação, Coordenador de Informatização Escolar da Secretaria da Educação de Valinhos e professor da escola pública. 

Para saber mais: 

  1. BUCKINGHAM, David. Media education: Literacy, learning and contemporary culture. John Wiley & Sons, 2013.  Disponível em: <https://bit.ly/2ClZLwl>. Acesso em 15 jan. 2023 (p. 37-38).
  2. FREIRE. Paulo. Extensão ou Comunicação. Tradução de Rosisca Darcyde Oliveira.  prefácio de Jacques Chonchol. 8ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985 (p. 46).
  3. XAVIER, Manassés Morais; NASCIMENTO, Robéria Nádia Araújo. Jornalismo digital na escola: narrativas de uma prática educomunicativa. Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande. mar. 2011. Disponível em: http://bocc.ufp.pt/pag/xavier-nascimento-jornalismo-digital-na-escola.pdf Acesso em 15 jan. 2023 (p. 32) 
  4. LUKE, Carmen. Cyber-schooling and technological change: Multiliteracies for new times. ln B. Cope and M. Kalantzis (Eds), Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. 2000. Apud. BUCKINGHAM, David. Media education: Literacy, learning and contemporary culture. John Wiley & Sons, 2013.  Disponível em: <https://bit.ly/2ClZLwl>. Acesso em 15 jan. 2023.
  5. O referido poema circulava na internet, há algum tempo, creditado como sendo do poeta francês Victor Hugo. No entanto, a obra pertence ao jornalista, romancista, poeta e dramaturgo brasileiro, nascido no Rio Grande do Sul, chamado Sérgio Jockymann, falecido em 2011, aos 80 anos. Ficou conhecido por seu trabalho na área de comunicação do estado gaúcho e por suas atuações como dramaturgo no teatro e na televisão. O texto em questão foi publicado por ele na edição de 30 de dezembro de 1978, do jornal Folha da Tarde, do Rio Grande do Sul – em plena ditadura militar. (História da canção ‘Amor pra Recomeçar’, de Frejat, disponível no site da rádio Nova Brasil FM)

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Decreto nº 11.362, de 1º de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Brasília, DF: Presidência da República. 2023. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.362-de-1-de-janeiro-de-2023-455353678 Acesso em 15 jan. 2023.


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