José Fornari (Tuti) – 13 de fevereiro de 2019
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A tecnologia musical comercialmente disponibilizada na segunda metade do século 20 DC, como mencionada no artigo anterior, foi amplamente utilizada na música formal, descendente de uma tradição erudita, embasada em trabalhos teóricos, conceitos filosóficos e estéticos, conforme observa-se na produção de Edgard Varèse, Iannis Xenakis, Karlheinz Stockhausen entre tantos outros. Esta é normalmente chamada de música eletroacústica. No entanto, estes recursos tecnológicos também foram utilizados pela música popular, ou seja, a forma musical normalmente associada à poesia (que constitui as canções), à dança e ao mercado consumidor que, direta ou indiretamente, guia ou influencia o seu desenvolvimento.
A música popular normalmente dispensa maiores formalizações, como a utilização de notações musicais mais completas e abrangentes; valendo-se, quando muito, de melodias com cifras para registrar sua produção, o que facilita o seu alcance e dispersão comunitária. Por estar mais atrelada à sociedade, esta espelha de forma bem mais evidente os fatores, processos e inquietações socioculturais da sua comunidade de origem. Dentre estes, o gênero musical mais relevante e ubíquo é o Rock, que surgiu na segunda metade do século 20 DC e se ramificou em muitos subgêneros contemporâneos. Este tem origem tipicamente urbana e foi influenciado tanto por gêneros afro-americanos quanto por gêneros de tradição europeia. Em relação aos gêneros afro-americanos, tem-se, entre outros, a influência do Blues (originado no século 19 DC, no sul dos EUA, apresentando canções com melodia improvisada e estrutura harmônica simples e cíclicas) e o Jazz (também originado no final do século 19 DC, na região de New Orleans, posteriormente evoluindo para um gênero virtuosístico, geralmente instrumental, com harmonia complexa onde novas melodias são criadas através do seu processo característico de improvisação guiada pela estrutura harmônica). Em relação aos gêneros de tradição europeia, tem-se, entre outros, a influência do Folk (música folclórica) e do Country (a música caipira americana, originada no sul dos EUA).
O Rock é originado do termo “Rock and Roll”, ou seja, “balançar e rolar”, referindo-se à maneira, naquela época considerada frenética, dos jovens dos anos 1950, de dançarem ao som daquele então novo gênero musical. Em termos estruturais, o Rock parece ter herdado a simplicidade harmônica característica do Blues (mais especificamente, do Rhythm and Blues, ou R&B, um estilo de Blues urbano que é mais ritmado e com andamento mais acelerado), a quase total ausência de improvisação do Folk e do Country e a exploração de novas sonoridades do Jazz, sendo que, ao invés de novas melodias, como no caso da improvisação jazzística, o Rock explorou novos timbres musicais, onde o seu ícone é a guitarra elétrica; o instrumento musical mais representante deste gênero musical, que apenas apresenta a sua sonoridade característica através do amparo de recursos tecnológicos (amplificador, auto-falante, efeitos, distorções, etc.).
Enquanto a música popular utilizou a tecnologia para enriquecer a sua tradição musical, tornando a sua estética mais embasada e potencializada, a música eletroacústica utilizou tais recursos tecnológicos para explorar novos horizontes estéticos. Para tanto, distanciou-se intencionalmente da tradição tonal ou modal que caracteriza a música que vinha se desenvolvendo e ramificando, num contínuo histórico, desde a antiguidade. Com este rompimento, o gênero erudito contemporâneo também se distanciou do público comum, uma vez que o ouvinte, sem prévias referências cognitivas, que o habilitassem a entender e a apreciar o significado musical de uma obra deste gênero, como ocorre naturalmente no caso da música tonal, passou a percebe-la como um tipo de incógnita sonora. No entanto, para os compositores de tais obras (e seus seguidores), as tais referências cognitivas já estavam disponíveis, uma vez que estes tinham conhecimento à priori da sua estruturação composicional, o que os permitia entender e assim apreciar tais composições. Esta distonia entre ouvintes leigos e iniciados, que de certa forma já existia entre música erudita tonal e a popular ou folclórica, aumentou gigantescamente e deve ter deixado perplexos tanto os compositores contemporâneos, que não entendiam o porquê de suas composições serem descartadas pelo público geral, quanto os ouvintes leigos, que não tinham conhecimento prévio suficiente para entender porquê alguém comporia algo aparentemente tão anti-musical, ou seja, sem um significado musical acessível e portanto aceitável. Nesse período, pouco ainda se sabia sobre os processos mentais de entendimento musical, o que só vieram a ser esmiuçados posteriormente, pela psicologia da música, pela cognição musical e posteriormente pela neurociência. Eram ignorados fatos relevantes do modo como nossa percepção musical é de fato processada. Os avanços tecnológicos também forneceram ferramenta para que a musicologia neste período pudesse iniciar a investigação dos processos mentais e cerebrais que regem a identificação de aspectos musicais dos quais significados emergem e emoções são evocadas.
Leonard Meyer, filósofo e teórico musical, publicou em 1956 um livro seminal, intitulado “Emotion and Meaning in Music”, onde é abordada a questão da expectativa em música e a sua relação com o significado musical, conforme anteriormente destacado por Hanslick. Meyer aplicou princípios da Gestalt e do pragmatismo de Charles Sanders Peirce pra estudar como a mente do ouvinte processa a informação musical ao tentar predizer futuros eventos musicais enquanto escuta uma peça musical. Este processo gera emoções que podem ser satisfatórios ou não, de acordo com o contexto musical. Segundo Meyer, emoções são geradas quando uma tendência de resposta a uma ação é inibida. Meyer menciona em seu livro 4 abordagens ou conceituações estéticas do significado musical: Absolutista (cujo significado é dado pelo contexto da obra), Referencialista (cujo significado está nas referências externas à obra), Formalista (cujo significado está no entendimento intelectual da obra), Expressionista (cujo significado está na emoção evocada pela obra). Estes conceitos não são necessariamente excludentes. Meyer particularmente declara ter um posicionamento estético tendendo mais para o absolutista e expressionista. Seguindo esta categorização, os gêneros de música popular, como o Rock, parecem tender às abordagens referencialista e expressionista, já que suas composições, em sua larga maioria, são canções tonais. Estas possuem letra com significados semânticos externos à estrutura musical, que é tonal e simples, normalmente voltadas à expressar questões afetivas pessoais e inquietações sociais. Já a música eletroacústica erudita deste mesmo período parece ter adotado uma abordagem absolutista e formalista, uma vez que a sua estética dá mostras de ser auto-referenciada e endógena, ou seja, baseada em si mesma, de onde grande parte da satisfação do ouvinte parece advir da sua capacidade de desvendar o caminho cognitivo para o entendimento intelectual da estrutura da obra. [1,2]
Referências
[1] Leonard Meyer – Part I. Notes by David Huron. https://csml.som.ohio-state.edu/Music829D/Notes/Meyer1.html
[2] Felicia E. Kruse. “Emotion in Musical Meaning: A Peircean Solution to Langer’s Dualism” Transactions of the Charles S Peirce Society 41(4):762-778. October 2005. DOI: 10.2979/TRA.2005.41.4.762
Como citar este artigo:
José Fornari. “Da tecnologia à expectativa musical”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 13 de fevereiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/02/13/7/