Sam Harris: defendendo a discriminação?

Eu gosto de muito o que Sam Harris diz. Sua abordagem consequencialista sobre moralidade e sua visão sobre livre-arbitrio são ambas muito similares a o que penso e é sempre muito bom ver alguém com algum tipo de voz no cenário internacional difundindo ideias compatíveis com as suas sobre questões tão importantes como ética e moralidade. E é por esse motivo que fiquei profundamente decepcionado com um recente post em seu site.

Ele inicia comentando sobre o teatro que os passageiros tem que passar quando são aleatoriamente selecionados em aeroportos para serem revistados (muitas vezes de forma bastante invasiva) e terem seus sapatos removidos para a procura de material explosivo. Ele conta o caso de um casal de idosos e uma garotinha apavorada de três anos que teve que remover sua sandália para que fossem investigadas. Concordo que muitas dessas medidas são abusivas e desnecessárias, mas para Harris, o buraco é mais embaixo:

Existe algo que podemos fazer para parar essa tirania de justiça? Algum semblante de justiça faz sentido- e, desnecessário dizer, as malas de todos deveriam ser revistadas, apenas porque é possível colocar uma bomba na bagagem de outros. Mas a TSA [segurança dos aeroportos] tem uma quantidade finita de atenção: Cada momento revistando o Coral Góspel Mórmon subtrai do escrutínio destinado à ameaças mais prováveis. Quem poderia falhar em compreender isso?

Imagine o quão fátuo seria lutar uma guerra contra o IRA e mesmo assim se recusar à discriminar [para a revista] os Irlandeses? E mesmo assim é assim que nós estamos lutando nossa guerra contra o terrorismo Islamico.

Confesso, eu não tenho que passar pela experiência de ser continuamente discriminado. Sem dúvida seria frustrante. Mas se alguém vagamente parecido com o Ben Stiller fosse procurado por crimes contra a humanidade, eu entenderia se eu virasse algumas cabeças no aeroporto. Entretanto, se eu fosse forçado a esperar atrás de uma fila para uma revista desnecessária de mais pessoas, eu certamente iria ressentir a adicional perda do meu tempo.

Nos deveríamos descriminar muçulmanos, ou qualquer pessoa que concebivelmente possa ser um muçulmano e deveríamos ser honestos a respeito disso.

Yep, é isso mesmo. Ele não disputa a paranoia (que me parece obvia) ou mesmo sequer a inutilidade operacional de tais revistas, coisa que ele reconhece. Não… o problema é que não estão revistando quem deveria ser revistado: os muçulmanos, ou pessoas que se pareçam com um. E, aliás, o que diabos é “se parecer com um muçulmano”? Alguém de pele escura e de barba?

Isso sem contar a justificativa dada por Harris para a discriminação é absurda. Claro que se você parece com alguém que está sendo procurado pela polícia, é esperado que você seja abordado mais frequentemente. Mas os muçulmanos que seriam presumidamente parados nessas revistas não se parecem com ninguém: eles apenas se parecem com um estereótipo de muçulmano, um grupo que presumidamente tem maior chances de conter terroristas por algum motivo esdrúxulo. Ver alguém como Sam Harris defendendo uma prática claramente discriminatória por nenhum bom motivo é bastante embaraçoso.

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Atualização (04/05/2012)

Sam Harris publicou um adendo em seu blog sobre o assunto. Não é uma desculpa, é uma explicação sobre o porque de sua postura não ter se desviado do que ele já defendia. Ou seja, quem ficou impressionado, assustado ou decepcionado com sua postura na verdade não havia parado para pensar nas consequências do seu tipo de discurso. Eu posso aceitar isso e confesso que eu sou um dos que não parou para pensar, aparentemente.

Ele ainda reitera que ele não está defendendo discriminação racial (apenas discriminação, por assim dizer), mas aqui eu acredito que ele está sendo insincero. Ele sabe muito bem que muçulmanos são normalmente associados à um estereotipo racial, e defender o “profiling” com base em primeiras impressões é apelar para esse estereótipo ou qualquer outro aspecto fenotípico, estético ou estilístico. Estereótipos esses que falham, obviamente, como indicadores de inclinações terroristas. Harris então compara o “profiling” que ele ele advoga, com o “profiling” psicológico, algo que é obviamente impossível de ser feito em um aeroporto em uma fila de espera.

Ao meu ver, ou Harris está realmente confuso sobre o que ele de fato está defendendo, ou ele notou que foi descuidado em suas colocações e está tentando remediar da melhor maneira possível sem ferir profundamente seu ego.

Teólogo critica ateus e glorifica irracionalidade

Hoje nas minhas inclusões no mundo maluco me deparei com o seguinte filme:

Pra quem não conhece, Alister McGrath é professor de teologia, da King’s College de Londres, e tem sido um duro crítico dos chamados “neo-ateus”, como evidenciado em seu famoso livro “O Delírio de Dawkins” (obrigado, Erick). No filme, McGrath fala sobre a Convenção Internacional de Ateus que irá acontecer em Melbourne (Australia) e sobre seu entusiasmo em comparecer a essa convenção. McGrath obviamente não é ateu e em seu vídeo faz algumas colocações que considero no mínimo equivocadas:

O neo-ateísmo enfatiza a racionalidade do ateísmo. Ateísmo é sobre fatos, fé é sobre fugir da realidade.

Estou com você até aqui.

Richard Dawkins, como vocês se lembram, rejeita fé como um tipo de doença mental e Christopher Hitchens, em seu livro “Deus não é Grande”, diz “Nossas crenças são a ausência de crenças”. O ponto que ele estava tentando fazer é que você só aceita as coisas que podem ser absolutamente provadas.

Absolutamente provadas? Eu tinha a nítida impressão que Dawkins e Hitchens concordavam que é impossível provar a não-existência de uma divindade transcendental. A resposta de Hitchens para a questão é bem clara: não faz a menor diferença se é possível provar ou não a inexistência de Deus, visto que ele seria contra um regime espiritual totalitário, como o advogado pelas religiões abraâmicas, por questões morais. Essa ideia de que “neo-ateus” valorizam apenas aquilo que pode ser provado é uma representação errônea do ateísmo desses autores e da grande maioria dos ateus que conheço. Ele prossegue:

O ponto principal aqui é que nenhuma das verdades pelas quais nós vivemos são coisas que podem ser provadas. Você pode provar algumas coisas por razão, outras por ciência, mas elas não são as Grandes Verdades nas quais nós podemos basear nossas vidas.

Então elas não são exatamente verdades, mas opiniões. É obvio que McGrath, assim como outros religiosos, usam o termo “Verdade” para expressar algo que não é necessariamente “verdade”, mas algo que eles sentem que pode ser verdade (uma crença), mas não querem analisar sob o escopo da razão:

Eu não posso provar que democracia é melhor do que fascismo, eu não posso provar que existe um Deus, assim como meus colegas ateus não podem provar que não existe nenhum Deus. Eu não posso provar que eu estou certo quando digo que nós devemos ajudar aqueles que são marginalizados e desalojados. […] Mas isso não é causa para preocupação. Porque todo mundo sabe que as coisas realmente importantes na vida estão além da razão.

Então, aparentemente, eu sou exceção. Até onde posso conceber, é possível fazer um argumento ético sobre a superioridade da democracia em relação ao totalitarismo, assim como podemos fazer argumentos lógicos em favor da conclusão de que Deus existe ou que não existe. Nada disso está além do escopo da razão. O fato de que McGrath consegue chegar nessas conclusões sem corrobora-las através de argumentos lógicos não implica que toda conclusão irracional é válida. Pelo contrário, isso apenas implica que McGrath não pode discutir logicamente sobre o assunto, enquanto eu e outros que não jogamos a razão pela janela (ateus e teístas) ainda podemos.

Como adendo final, ele coloca:

Nós fazemos a pergunta: qual sistema de crenças é mais racionalmente baseado, dá mais sentido à vida, trás estabilidade, dá entusiasmo! Eu você sabe, eu me fiz essa pergunta muitos anos atrás e eu achei a resposta. E é por isso que eu sou agora um cristão.

Visto que McGrath descarta razão como um instrumento válido para avaliar a existência de Deus, fica claro que McGrath não está argumentando que razão, bem estar, estabilidade e entusiasmo provam a existência de Javé, mas sim que tudo isso justifica sua filiação à fé cristã.

Deus? Bem, esse pode muito bem não existir. Pelo menos é o que a razão me diz.