A tese do ateísmo universitário

Calouros...
Calouros… ¬¬

Nunca fui grande fã do termo “neo-ateísmo”. Inicialmente usado para se referir aos ateus que resolviam emitir suas opiniões sobre religiões e dogmas, em distinção aos “antigos” ateus, calmos, pacatos e respeitosos (um mito, na minha opinião), esse termo sempre me pareceu carecer de conteúdo informativo sobre o que aqueles que eram assim classificados de fato acreditam. Sempre me pareceu ser muito mais uma designação sobre forma do que sobre conteúdo, visto que o que contava para ser classificado como “neo-ateu” era simplesmente o quão vocal, estridente ou agressivo alguém era ao colocar suas opiniões. Não ajudava em nada o fato de muitos críticos dos “neo-ateus” ora usarem o termo de forma pejorativa contra aqueles que feriam sentimentos religiosos, ora criticarem a total ausência de diferença em relação a todos os outros ateus ao longo da história da humanidade, como quem diz que os ateus atuais se julgam inovadores, enquanto na verdade não são. Por esses e outros motivos, eu sempre fico de olho quando alguém parece dar algum tipo de definição sobre os “neo-ateus”. O filosofo David V. Johnson resolveu propor uma tese que ele considerou ser o conceito unificador por trás das ideias de escritores tidos como os lideres do movimento “neo-ateísta”, especificamente Christopher Hitchens, Sam Harris e Richard Dawkins. A tese é deveras simples e pode ser resumida sucintamente da seguinte forma:

“O mundo seria melhor sem religião”

O que me parece uma descrição realmente precisa. Todos os autores acima citados, assim como muitos ateus que conheço, de fato parecem subscrever à ideia de que a crença teísta não apenas é falsa, mas também danosa. Não é de admirar que o estopim de tal movimento foram os atentados de 11 de setembro de 2001, uma das expressões mais diretas dos potenciais riscos do fundamentalismo religioso. Desde então, o movimento neo-ateu parece ter se focado não apenas na falsidade das idéias e dogmas religiosos, mas também na avaliação moral e ética de crenças religiosas. Por exemplo: Dawkins diz que associar ideologias religiosas a crianças é abuso, Harris critica religiosos moderados por acobertar fundamentalistas e Hitchens critica a moralidade do deus do antigo testamento. Um mundo sem tudo isso seria melhor. Johnson, porém, não vê essa tese como sendo válida. Ele apelida ela, jocosamente, de “A tese do ateísmo universitário” (the undergraduate atheist thesis). Segundo ele, para comprovar essa tese, seria necessário

“que nós somemos todas as boas e más consequências de os seres humanos serem religiosos do começo ao fim da história da humanidade e todas as boas e más consequências de humanos não serem religiosos.”

Ou seja, para que a tese seja em princípio corroborada, seria necessária a computação de todos os eventuais males e benefícios de ambas visões de mundo (com e sem religião) e escolher a que soma o maior bem e/ou o menor mal e voilàO ponto de Johnson com esse exercício é mostrar que tal computação seria extremamente complicada de ser realizada e que, então, a empreitada como um todo é uma farsa. Se o mundo seria melhor ou não sem religião seria, segundo a proposta de Johnson, um mistério.

Eu tenho um problema com essa argumentação. Parece que Johnson acredita que a “tese do ateísmo universitário”, como ele chama, é um exercício metafísico, em que criamos mentalmente mundos e avaliamos cenários hipotéticos, erradicando religião não apenas do presente, mas também do passado. Essa é uma idéia absurda. É como argumentar que se alguém não gosta do sabor de rabanetes, ele tem que avaliar se toda a sua vida teria sido melhor sem a fábula da Rapunzel para concluir que tirar rabanetes de sua vida é realmente algo desejável. Similarmente, Johnson parece acreditar que o objetivo dos neo-ateus é construir uma máquina do tempo, voltar ao passado e, sei lá, matar Jesus… ou impedir que ele fosse morto… algo assim.

Se essa forma de pensamento fosse válida, dificilmente teríamos abandonado escravidão ou mesmo tentaríamos abandonar formas de abuso social e econômico, como evidenciado nesse clip do comediante do Luis CK:

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=UVTXFsHYLKA”]

Afinal, se a lógica é válida, então a existências das pirâmides do Egito, ou até mesmo do Judaísmo (e por consequência, o Cristianismo e Islãm) deveriam ser levados em conta quando você avalia se escravidão é bom ou não. Ou seja, se você acha que cristianismo faz mais bem do que mal, você nunca poderia ser contra escravidão.

Isso é um exagero, obviamente, para mostrar o absurdo da tese (reductio ad absurdum). No fim, Johnson está errado. A tese neo-ateísta não é que o mundo seria melhor se religião nunca tivesse existido. Talvez ela seja melhor expressada pela ideia de que o mundo está pronto para abandonar as amarras desnecessárias que tornam a religião necessária. E se alguém disser que não há nada de “neo” nesse ateísmo, estará correto:

A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola.

A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote.

 Karl Marx, 1844

E se você me perguntar, taí uma tese e tanto.

Três ótimos (e respeitosos) debates entre Ateus e Teístas.

Eu sempre adorei discussões. Quando entrei na graduação, o ponto alto da minha semana era o Grupo de Discussão de Evolução, um grupo organizado por três veteranos que talvez tenham achado naquele fórum uma válvula de escape para o que eu iria sentir mais tarde na pele: a total ausência de embate entre pontos de vistas conflituosos na academia.

Foi só quando me meti em discussões sobre ateísmo, que descobri a existência de debates acadêmicos, onde os debatedores expõem seus lados em um formato previamente estabelecido. Eu achei isso fantástico: esses debates não apenas permitem uma grande troca e exposição de informação, como também entretêm. Prefiro mil vezes assistir um debate de duas horas do que o novo filme da série “Velozes e Furiosos”.

Agora, um problema de debates entre teístas e ateus é que eles facilmente se tornam acalorados e muitas vezes desrespeitosos, que é algo tira o foco do assunto e entram no caminho da discussão. Um bom debate é aquele que o debatedor interpreta a posição do oponente sob a melhor luz possível e tenta responder à altura. Sem respeito, os debatedores comumente correm o risco de interpretar errado o que seu oponente tem a dizer e responder àa pontos que não foram feitos. E ninguém ganha com isso.

Abaixo linkei três debates entre teístas e ateus que acho particularmente bons nesses aspectos. São ótimas fontes de informação sobre ambos os lados, mostrando que é possível haver confronto sem ofensas. Ao menos não muitas. Infelizmente estão apenas em inglês, e requerem um ouvido acostumado.

Peter Singer vs John Hare – Mamíferos Morais, e porque nós importamos
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=p7F9mrHiImo”]

Debate entre o famoso filósofo Peter Singer (ateu) e o filho do seu mentor, também filósofo, John Hare (teísta). O objetivo desse debate é expor as bases e justificativas para o comportamento ético sob as perspectivas ateia e teísta, respectivamente. O resumo é simples: na visão teísta, Deus justifica tudo e é a base da moralidade. Na visão ateia, não (obviamente), mas é bom notar que muitas das questões éticas respondidas por “Deus” não estão resolvidas numa visão secular. O motivo disso, imagino, é que “Deus” não é resposta para essas perguntas em primeiro lugar.

(Meta)Fisica: Hans Halvorson e Sean Carroll em Caltech
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=H864JH1tPYU”]

Hans Halvorson, filosofo teísta de Princeton, e Sean Carroll, físico da Caltech, blogueiro e divulgador científico expõem suas visões metafísicas em uma conversa amistosa. A parte que mais me interessa é a discussão que começa em aproximadamente 20min, no qual Carroll responde ao argumento do Ajuste Fino das Contantes do Universo para a existência de Deus. Esse argumento (junto com o Principio Antrópico) sempre me incomodaram muito, pois sugerem que nós sabemos como a vida surgiu. Mas, se soubéssemos isso, criar vida em laboratório de matéria inanimada seria rotina, mas infelizmente ainda estamos anos luz disso. E a resposta de Carroll sugere isso: não sabemos o que é necessário para ter vida e não sabemos o quão provável ela é nesse ou em qualquer outro universo. Halvorson concorda,  admitindo que, apesar de achar que o universo é finamente ajustado, ele acredita que os argumentos para isso são péssimos, sugerindo ainda que usar ciência para sustentar a visão teísta é teologia ruim. E eu concordo 100% com ambos.

Bônus: ambos respondem qual é o maior desafio para sua visão de mundo e são bastante honestos sobre isso.

(In)Acreditável?: Um filosofo ateu e um teísta compartilham suas visões de mundo- Universidade de Cambridge
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=lGtSjqnzZHo”]

Esse é um debate bastante interessante, entre o filosofo ateu Arif Ahmed e o Reverendo e professor aposentado Keith Ward. Ward é um idealista, que acredita que a realidade da mente precede a realidade da matéria, e Ahmed defende uma posição empiricista ampla, onde qualquer crença deve ser considerada verdadeira apenas se tivermos evidencias para ela. Apesar desses pontos não serem necessariamente opostos, grande parte do debate se foca na operacionalidade dessa visão de Ahmed, com Ward obviamente discordando. 

Gosto bastante de ambos debatedores. Ward é bastante honesto e aberto sobre suas crenças e sobre como encara a filosofia como uma forma de racionalizar sua visão de mundo (nada diferente de o que um ateu deve fazer, na minha opinião). Ahmed é um pouco confuso, mas bastante lúcido em suas posições, conseguindo dissecar e apontar problemas na visão teísta com precisão, nenhum dos quais negados diretamente por Ward. Vale a pena adicionar que Ahmed também é conhecido como o cara que destruiu Willian Lane Craig em um debate que, infelizmente, não entra nessa lista por motivos óbvios.

Darwin, Vespas parasitóides e o problema do sofrimento natural

As religiões monoteístas são, discutivelmente, diversas em seus dogmas e crenças. Contudo, existam alguns aspéctos comuns a essa religiões, principalmente quando nos referimos ao ramo das religiões Abrâamicas, classicamente discriminadas entre judaísmo, cristianismo e islamismo, especificamente no que se refere à figura do deus único. Tal deus, via de regra, é descrito como um deus criador omnipresente, omnipotente e omnibenevolente, com interesse pessoal na vida dos indivíduos pertencentes à espécie humana. Porém, essa descrição tem levantado algumas sobrancelhas ao longo da história.

O paradoxo de Epícuro

Um problema óbvio com essa caracterização é que a existência de um deus que sabe de tudo e que pode tudo e que é o ser mais benevolente da existência parece em clara contradição com o a presença de sofrimento no mundo. Epícuro foi o primeiro a deixar essa objeção registrada no registro histórico da seguinte forma:

– [Deus], enquanto onisciente e onipotente, tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é onibenevolente.

– Enquanto omnipotente e onibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é omnisciente.

– Enquanto omnisciente e omnibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é omnipotente.

E essa é uma bela refutação para concepções mais ingênuas de deus, principalmente deuses monoteístas, que não tem outros deuses igualmente potentes com o quais competir. Essa idéia pode ser resumida de forma bem simples:

P1) Deus é definido como um ser omnipontente, omnipresente e omnibenevolente

P2) Existe sofrimento no universo

C) Deus não existe.

QED…?

 

Teodicidades e a Queda

The Fall of Adam and Eve, Hugo van der Goes 1470
“Tá tudo bem mor… aquela serpente com pernas disse que não vamos morrer se comer essa fruta, diferente do que o nosso Deus omnipotente, omnisciente e omnipresente disse….”

Para refutar esse argumento bem simples, a igreja católica (principalmente) desenvolveu uma área teológica especifica para lidar com o problema da existência do mal no mundo, e esses contra-argumentos são chamados teodicidades. A mais simples dessas teodicidades clama o livre-arbítrio como o salvador da benevolência divina, colocando que deus nos deu livre-arbítrio e com isso nós humanos escolhemos fazer coisas que trazem dor e sofrimento.

Ok, nessa altura você pode estar pensando “E terremotos, secas, vulcões? Nada disso é causado por humanos, então livre-arbítrio não explica esse tipo de sofrimento”. Fico feliz que você tenha convenientemente levantado esse ponto, interlocutor fictício, mas a gente tem que lembrar que o teísmo abraâmico prega (classicamente, ao menos) que nós humanos descendemos de um casal de adolescentes criados especialmente em um jardim que, ao comerem da arvore do conhecimento, condenaram toda a humanidade a um tipo de maldição hereditária que, de alguma forma, também amaldiçoou o resto do mundo, AKA “A Queda”.

Certo, ainda comigo?

Ok, então essa Queda resolveria tudo, pois todo o sofrimento viria após a Queda, resultado da aplicação do livre-arbítrio humano. Resolvido! Próximo argumento!

…bom, não tão rápido.

 

Como evolução arruina tudo

Hoje em dia sabemos que nada da narrativa do Genesis pode ser tomado como literal ou histórico, em grande parte devido aos achados da biologia evolutiva e áreas associadas. O registro fóssil mostra que humanos são recém chegados na história da vida da terra, que já foi rica em animais dos mais diversos tamanhos e formas, inclusive seres muito aparentados a nós, com cérebros de igualmente impressionantes. Além disso, biologia molecular nos mostra que os seres humanos nunca descenderam exclusivamente de dois indivíduos, o que impossibilita que qualquer maldição fosse geneticamente transferida a todos os membros atuais da nossa espécie.

Ou seja, durante grande parte da história da vida na terra tivemos animais sendo predados, sendo infectados, morrendo de fome e sede, muitas vezes em escalas mundiais em eventos possivelmente pontuais, que varreram grande parte de continentes ou mesmo do planeta inteiro, como o impacto que erradicou a maioria das linhagens de dinossauros.

Ou seja, o que quer que livre-arbítrio humano explique, ele explica uma quantidade muito pequena do que precisa ser explicado antes que aceitemos racionalmente o monoteísmo clássico. Mas o quanto é preciso explicar, exatamente?

Darwin e Vespas Parasitóides

Há alguma controvérsia sobre sobre se Darwin era de fato ateu ou não, mas não há dúvidas que, ao longo de sua vida adulta, ele abandonou o teísmo clássico criacionista tanto por motivos pessoais (a perda de sua filha) e por algumas considerações vagas sobre o sofrimento natural no mundo. Uma dessas considerações mais famosas diz respeito as vespas parasitóides.

“Eu não posso me convencer que um Deus benevolente e onipotente poderia ter criado um Ichneumonidae com a única intenção de suas larvas se alimentarem dos corpos de lagartas vivas, ou criado gatos para brincar com ratos”

Ichneumonidae são uma família de vespas parasitóides, que são animais que implantam ovos no interior de outras espécies que, ao eclodirem, levam a morte do hospedeiro, algo muito similar a o que acontece nos filmes do universo dos Aliens.

2154563-chestburster
-Viva! Sou biologicamente verossímil!

Porém, diferente do que ocorre em Aliens, nem todos hospedeiros tem a sorte de morrer imediatamente. Muitas larvas parasitoides consomem lentamente seus hospedeiros que são mantidos vivos e imobilizados durante todo o processo. O exemplo mais extremo é o caso da vespa-esmeralda Ampulex compressa. Essa vespa é tão especializada que usa seu veneno não apenas para matar ou imobilizar sua presa (uma barata), mas sim para modificar seu comportamento, transformando-a em uma espécie de “zumbi” complacente que é primeiro conduzido à toca da vespa e depois consumido, ao longo de semanas, pelas larvas recém nascidas.

[youtube_sc url=”http://www.youtube.com/watch?v=cyd8NmLJwcM”]

Para piorar tudo, não estamos falando de uma, duas, ou um punhado de espécies que fazem isso. São aproximadamente dois milhões de diferentes espécies de parasitóides que, apenas em insetos, podem compor até 10% da diversidade conhecida para o grupo, incluindo não apenas vespas (hymenoptera), como também moscas (diptera) e também algumas espécies de besouros (coleoptera)!

Se focarmos apenas em vespas, estimativas recentes mostram que as famílias desse grupo se diversificaram inicialmente durante o Permiano:

F9.large
Clique aqui para a definição formal de “bagarai”

Ou seja, a no mínimo 250 milhões de anos presas de vespas sofrem desnecessariamente para que as espécies parasitóides consigam colocar uma nova geração no mundo. E afirmo que seu sofrimento é desnecessário não apenas porque um deus bondoso poderia magicamente fazer vespas que não necessitassem dos corpos alheios para a sobrevivencia de sua prole, mas porque essas possibilidades são reais e acontecem na maioria das espécies de vespas. Ou seja, não é biologicamente impossível fazer espécies de vespas não-parasitóides: elas existem. Mas por algum motivo um deus bondoso achou que seu plano perfeito só estaria completo com animais que parecem ter sido concebidos num pesadelo lovecrafteano.

Ou, sei lá… talvez Epícuro tivesse certo.

Uma boa definição de ciência

card
Card do Massimo, da coleção Skeptic Trumps

Acabo de ler um artigo pelo cientista-tornado-filosofo Massimo Pigliucci sobre o movimento Neo-Ateista. Pigliucci, que é um crítico do movimento, argumenta que a principal diferença entre os ateus clássicos e os neo-ateus, é o que ele chama de “uma virada ao cientismo”. Ele define cientismo como:

“A atitude de considerar ciência como o ultimo critério e arbitro de todas as questões interessantes; ou alternativamente que busca expandir a definição e escopo da ciência para abranger todos os aspectos do conhecimento humano”

Para sustentar essa idéia, Pigliucci leva em consideração os livros publicados pelos autores considerados ícones do neo-ateísmo, especificamente Richard Dawkins, Victor Staiger, Daniel Dannet, Christopher Hitchens e Sam Harris (com quem ele parece ter um problema em particular).

Suas avaliações são justas na sua maioria (pelo menos nos livros que eu li), mas em quase todo parágrafo fiquei estarrecido com algumas afirmações de Pigliucci, principalmente nas suas avaliações dos livros de Sam Harris. Ele chega a afirmar, por exemplo, que não chegamos ao consenso sobre princípios da geometria euclidiana através de nenhuma evidência empírica (no caso ele usa o exemplo de que a soma dos ângulos de um triângulo é sempre 180o), o que me parece em clara contradição de como professores de fato demonstram esses princípios aos alunos em sala de aula*. Outra afirmação intrigante foi a de que o dilema de Eutifron demonstra com sucesso que Deuses e moralidade não tem nada a ver um com a outro, coisa que até onde sei é no mínimo… discutível (mas vou poupar vocês o trabalho de ver um ateu defendendo um argumento para a validade da moralidade divina).

No entanto, a questão que me deixou mais intrigado foi o foco central do artigo, que é a acusação de cientismo por parte dos neo-ateus. Não porque eu discorde dela (em partes), mas porque, ao justificar isso, Pigliucci constrói uma definição de ciência que não parece contribuir para sua tese:

Ciência é melhor concebida como uma família, no sentido Wittgensteiniano, de atividades que tem uma variedade de pontos em comum, incluindo (mas não se limitando a) a realização sistemática de observações e/ou experimentos, o teste de hipóteses, a construção de teorias gerais sobre o funcionamento do mundo, a operação de um sistema de revisão-por-pares pré e pós-publicação, e a existência de uma variedade de fontes de financiamento públicos e privados para projetos que são considerados válidos”

Eu gostei bastante dessa definição, mas como isso exclui necessariamente questões morais, metafísicas ou espirituais me é um mistério. Pigliucci não argumenta com sucesso sobre isso, sendo que o máximo que ele faz é indicar o leitor ao seu novo livro sobre critérios de demarcação em ciência, pseudociência e filosofia. Posso ser só eu, mas não me soa de bom tom deferir um dos principais pontos do seu artigo para um livro, sem maiores explicações.

De forma geral, esse ensaio me decepcionou muito. Durante o artigo todo, e apesar dos protestos do Pigliucci, não pude deixar de ter a sensação que grande parte das suas críticas são motivadas por briguinhas entre áreas acadêmicas, na qual filósofos parecem estar especialmente ofendidos pelo fato de que ciência tem um reconhecimento social maior do que filosofia, que ainda soa como abobrinha para as orelhas do público.

Talvez precisemos de um Big Bang Theory para a filosofia… algo como “The Hume’s club”. Será que a Sony compra?

De qualquer forma, veja o ótimo blog do Massimo, o Rationally Speaking. Vale a pena conferir.

* Pigliucci aqui parece estar adotando uma postura puramente racionalista, onde “verdades matemáticas” são exercícios meramente racionais e não empíricos. Até onde sei, essa posição não é inequivoca dentro da filosófica da matemática. Consigo pensar em pelo menos duas outras linhas que discordariam dessa interpretação.

Os Jesuitas eram os Novos-Ateus do Cristianismo?

A Primeira Missa no Brasil, por Victor Meirelles
A Primeira Missa no Brasil, por Victor Meirelles

Ontem comecei a ler o livro The Christian Delusion: Why Faith Fails (“O Delírio Cristão: porque a fé falha”, tradução minha) um livro que, segundo um dos autores, foi inspirado pelas críticas feitas ao livro análogo do Richard Dawkins, Deus, um delírio. Visto que Dawkins foi amplamente criticado por sua superficialidade teológica, filosófica e antropológica, os organizadores desse volume resolveram reunir experts nessas áreas para atacar o cristianismo desses pontos de vista. Agora, eu não gostei do livro do Dawkins, e acho que muitas das críticas sobre sua superficialidade são válidas, mas visto que esse livro reúne diversos autores que admiro, achei que valia a pena dar uma verificada.

O tema central do primeiro capítulo é antropologia social, por David Eller, e parece ter como foco central uma avaliação antropológica dos cristianismos: o autor defende que não existe “um” cristianismo, mas vários cristianismos locais, adaptados à culturas regionais. Ele ainda explica que religião, como qualquer aspecto cultural, não é algo que pode ser rejeitado através de debate ou argumento racional: culturas (e visões de mundo) são normalmente herdadas e assumidas como verdades absolutas.

Esses fatos, aparentemente, estavam muito claro para os missionários cristãos, que tinham como objetivo difundir o cristianismo e o evangelho. A estratégia de tentar convencer estrangeiros da veracidade de sua religião só pode ser eficiente se você entende como uma pessoa pode adotar um novo aspecto cultural e aparentemente argumentos lógicos e racionais não são o caminho para faze-lo.

Como exemplo de um grupo que compreendia a dinâmica da assimilação cultural da crença, Eller cita um artigo por Michael Welton (link para o pdf) sobre a estratégia pedagógica dos jesuítas nas Américas:

A pedagogia de ataque dos Jesuitas tinha como principal objetivo fragilizar as fundações do modo de vida dos Indios. Essas fundações são as bases para significado e ações sociais, e várias praticas espirituais-religiosas presentes no dia-a-dia dos nativos[…]. Os Jesuítas buscaram deslocar [o shaman] de seu lugar na supremacia no mundo através do ridiculo, zombaria e competição […] e se inserir no lugar dele. Essa era uma estratégia pedagogica brilhante e inescrupulosa […]. Eles usaram seu conhecimento científico dos eclipses solares e lunares, marés, e o poder mágico da imprensa para deslegitimar o shaman. Eles marcharam suas próprias fundações de mundo (agora cada vez mais enriquecidas com formas científicas de conhecimento) para minar os fundamentos culturais dos ameríndios, e criar espaço para a coroa e Deus no Império do Demônio (povos nativos, no caso).

Usar zombaria e ridículo, recheado de conhecimentos científicos para deslegitimar autoridades religiosas… soa familiar? Pois até onde consigo avaliar, essas são exatamente as mesmas estratégias normalmente atribuídas aos chamados “neo-ateus”. E visto que a diferença entre um “ateu convencional” (seja lá o que isso for) e um “neo-ateu” normalmente se resume à forma que eles expressam suas crenças, e não o que eles acreditam, poderíamos dizer que os jesuítas eram os “neo-ateus” do cristianismo.

Brincadeiras aparte, eu não sei dizer se isso é bom ou ruim. Por um lado, esses ateus estão usando as mesmas estratégias imorais que os jesuítas usaram contra os Ameríndios, o que pode ser um indicativo de que esse não é o caminho correto a ser seguido. Por outro lado, o que os jesuítas fizeram parece ter funcionado, então… qual o caminho mais apropriado? Me parece ser uma questão de objetivos finais e estratégia: queremos apagar uma cultura e outorgar outra, ou permitir que as culturas se adaptem a um novo paradigma?

Fé não é um processo epistemológico válido

Feature-570x300
Peter Boghossian

Esses dias relendo o texto “Investigações estatísticas na eficiência da prece”, do Francis Galton, e me deparei com a seguinte passagem:

Existe um motivo para esperar que um homem devoto e supersticioso seja irracional; pois uma pessoa que acredita que seus pensamentos são inspirados, necessariamente certifica seus preconceitos com autoridade divina. Ele é, assim, pouco vulnerável à argumentação, e é intolerante em relação àqueles que apresentam uma opinião distinta da sua, especialmente em princípios fundamentais. Consequentemente ele é um mal parceiro em questões de negócios. É uma opinião corriqueira no mundo de que pessoas que rezam não são práticas.

Parece duro, mas eu acredito que a crítica continua bastante válida. Não porque eu de fato acredite que religiosos são maus parceiros, ou que algo na sua religiosidade os impede de serem bons profissionais, longe disso. Acredito que o fato de a maioria esmagadora da sociedade, inclusive em países desenvolvidos serem religiosos, argumenta contra essa ideia. Entretanto, ainda acho que esse ponto, de certa forma, procede.

Recentemente, o filósofo Peter Boghossian resolveu fazer disso o foco central de seu livro “Um Manual Para Produzir Ateus”. Segundo Boghossian, o ataque às religiões é contra-producente, e a ideia que precisa ser passada é que existem processos para a geração de conhecimento (ou, processos epistemológicos) que não são confiáveis, isso é, eles diminuem a probabilidade de se ter crenças que são verdadeiras. Ele ainda identifica duas comunalidades entres processos epistemológicos pouco confiáveis. Via de regra, tais processos 1) não se baseiam em evidências e/ou 2) se baseiam em coisas que são consideradas evidências, quando na verdade não são. E fé, afirma Boghossian, apresenta ambas as características.

A ideia de Boghossian é que, ao ensinar pensamento crítico e baseado em evidência, as pessoas irão aprimorar sua capacidade de adquirir crenças verdadeiras, levando à exclusão da fé como um processo epistemológico, o que eventualmente levaria a rejeição de religião.

É válido notar que nem sempre religiosos aplicam fé como base epistemológica universal. Quando em âmbito profissional, muitos religiosos recorrem a pensamento crítico baseado em evidências para direcionar suas ações: um empresário religioso não vai esperar inspiração divina para fechar um negócio, mas sim recorrer à analise de custo/benefício e do ambiente do mercado para tomar suas decisões. Sendo assim, a crítica de Galton nos dias de hoje pode ser mais encarado como um reductio ad absurdum do o que aconteceria se as pessoas aplicassem fé como um jeito especial de entender a realidade em todas as esferas da sua vida, algo que é comumente apontado por críticos de religião.

Claro, muitos podem apontar a ironia na citação de Galton, visto que esse era um fervoroso crítico das teorias de Mendel, que era um monge e, em qualquer avaliação, um “homem devoto”. Mas de qualquer forma, nós sabemos que Mendel está correto, e não Galton, por causa das evidências da genética e hereditariedade, e não por inspiração supernatural.

Ateus literalistas bíblicos

Critica biblica sempre foi uma passagem importante do arsenal retórico dos ateus. Isaac Asimov disse

“Quando lida apropriadamente, a Biblia é a força mais potente para ateísmo jamais concebida”

Eu não conheço nenhuma estatística, mas acredito que isso seja verdade para um grande numero de pessoas. Ao menos, foi o que funcionou para mim. Me recordo claramente de ler com entusiasmo as primeras passagens do Gênesis, apenas para me deparar com uma representação gráfica de como o mundo deveria ser:

Representação do Universo segundo o Genesis

Duas coisas me vieram a cabeça: inicialmente pensei em como a descrição da cosmologia Bíblica era pobre em comparação com outras cosmologias gregas e até cosmologias ficcionais (na época estava lendo a saga de Dragonlance). A outra foi o quão inverossímil era essa representação: eu sabia que a Terra não era plana, que não existia nenhum firmamento, que a Terra girava entorno do Sol e não o contrário, que depois do céu tinha o espaço, que o centro da terra tinha magma e não o submundo de Sheol, etc. Talvez o mais absurdo fosse a representação das comportas do Céu, as que presumidamente se abriram durante o diluvio. Eu podia ver os parafusos das dobradiças. Que deus usaria parafusos?!

Mas enfim, quase ninguém pensa que o mundo é assim. Até criacionistas são esclarecidos o suficiente para saber que não vivemos em um mundo descrito dessa forma, e inclusive inventam histórias bastante… criativas para explicar o porque disso estar descrito assim na Bíblia (a teoria do dossel é de fato a mais divertida). Religiosos moderados vão obviamente dizer que essas passagens não devem ser tomadas literalmente, mas interpretadas segundo alguma linha que tornam a Bíblia compatível com o que nós sabemos da realidade, inclusive evolução.

Crônicas de Nárnia: Cosmologia
fortemente influenciada por
mensagens cristãs.

Eu não tenho um problema com isso, na verdade. Tratando a Bíblia como um livro qualquer, não existe nenhum motivo para imaginar que as narrativas do Gênesis devam ser tomadas literalmente. São textos fortemente carregados de conteúdo poético e, aparantemente, copiados de diversas fontes distintas para construir uma narrativa com a intenção de passar uma mensagem. Não acredito que o Gênesis tenha sido construído para dizer como o mundo é e como ele foi criado, mas mais para dizer como o que existe e o que todos entendiam como a realidade era obra da intenção divina (com umas e outras mensagens subliminares escondidas). Nada diferente do que cristãos fazem hoje em dia.

Porém me parece que alguns ateus não aceitam isso de forma tão simples. Muitos deles parecem exigir que a única interpretação bíblica válida é a literalista (e, sim, literalismo é uma linha de interpretação), e que essa interpretação é a intenção dos autores (presumidamente o Deus bíblico, no caso). Porém, como uma prima minha me ensinou recentemente, você tira de um livro o que suas limitações permitem que você tire. Não há necessidade alguma de que a intenção do autor guie a sua capacidade de assimilação de uma obra literária ou filosófica. Eu não sou obrigado a virar religioso apenas porque li “Crônicas de Nárnia”, apesar de existir um componente fortemente religioso nas ideias de C. S. Lewis (que era, por sinal, um apologeta cristão). E sim, muitas linhas de crítica literária rejeitam a ideia de intenção autoral como sendo relevante.

Vida de Pi e Contato: livros falam de religião,
mas não demandam que o leitor chegue a uma
unica conclusão


O significado de muitas obras (não apenas literárias, mas artísticas) emergem da interação da obra com o observador. Obviamente a obra é influenciada fortemente pelas ideologias e ideias do autor, porém isso não restringe a interação com o receptor da obra. Adicionalmente, nem sempre o que o autor pensa sobre o assunto determina a conclusão do leitor. Podemos ver isso claramente em filmes/livros como Contato e A vida de Pi. Nenhuma conclusão sobre teísmo/ateísmo é obvia nem necessária a partir desses textos, porém ambas são possíveis. A intenção dos autores não podem ser de passar uma mensagem ou outra, pois não podemos ser ateus e teístas ao mesmo tempo, mas sim de fazer pensar sobre um assunto, no caso religião.

Eu entendo a resistencia em aceitar interpretações não-literais da Bíblia por parte de muitos ateus, pois já senti ela. Afinal, interpretação literal da Bíblia foi o que me expulsou do cristianismo, e eu adoraria acreditar que eu estava sendo lógico e racional quando isso aconteceu. Mas isso é uma ilusão: eu tinha 12 anos, o quão racional essa escolha pode ter sido? Fora isso, acredito que parte da resistência de se admitir a possibilidade de interpretações não-literais venha da ideia de que isso abre a porta para que qualquer interpretação seja feita. Mas isso também não é verdade: a interpretação de que o Gênesis dá a sequência do surgimento evolutivo das espécies na Terra é claramente equivocada, assim a de que Adão e Eva foram os primeiros Homo sapiens. Ou seja, é possível estabelecer que algumas interpretações são falsas e outras não.

Até onde vejo, exigir que religiosos moderados aceitem o literalismo como “única posição intelectualmente honesta”, apenas para criticar essa posição é tentar encaixar uma pessoa em um estereótipo que seja fácil de ser atacado. Não é apenas uma falácia, como é preconceito. Então… vamos parar com isso, que tal?

Sério.

Matthew Chapman fala sobre o sincretismo religioso brasileiro.

Estou começando a ler o livro “Trials of the Monkey” (O Julgamento do Macaco), de Matthew Chapman, autor, roteirista de cinema e descendente direto de Charles Darwin. Menciono esse ultimo não porque acredito que a grandeza de seu ancestral tenha reverberado ao longo das gerações. Pelo contrário: Chapman é, de muitas formas a antítese de Darwin, um homem pouco intelectualizado, pragmático, ateu e perdido, características certamente influenciadas pelo nome de seu ancestral. Segundo ele próprio:

[…] Foi quando fui levado para o zoológico aos seis anos de idade e ao observar os macacos enfiando o dedo no nariz, se coçando e tentando fazer sexo em público que tive certeza: evolução era um io-io e, no meu caso, o io-io tinha quase atingido o fim da corda. Ele tinha que ser puxado alguns centimetros para subir novamente. Se Charles Darwin era o topo, eu seria o fundo. […] Simples mediocridade acadêmica não seria o suficiente. Eu tinha que ser pior que isso. Eu tinha que batalhar contra a educação com tudo que eu tinha.   Assim como Charles era obstinado e diligente na sua coleção de fatos, eu o seria em rejeita-los. Essa seria a minha defesa contra o esmagador peso da história da familia.

Assim como seu ancestral, entretanto, ele parece carregar consigo um enorme amor por sua filha e sua esposa religiosa. Curiosamente, a esposa de Chapman é Denise Dummont, ex-atriz brasileira. Chapman se refere a ela de forma incrivelmente amorosa e com grande admiração, inclusive quando comenta de sua fé supersticiosa, característica que inicialmente ele repudiou, para depois aceitar e admirar. Ao comentar sobre a fé de Denise, Chapman acaba falando sobre a fé brasileira de uma forma interessante e distanciada:

Essa fé é a fonte de tudo que eu amo nela e de tudo o que discutimos. Denise se identifica como Católica, e ainda sim acredita no direito da mulher de escolher [aborto], contracepção, e direitos dos homossexuais. A madrinha brasileira de nossa filha é uma lésbica. Mesmo sendo Católica, Denise acredita – tão casualmente e naturalmente quanto você e eu acreditamos na previsão do tempo – em Candomblé, a mais Africana de todos os sectos de Macumba. Trazida por escravos, o Candomble foi sincreticamente combinado com Catolicismo de tal forma que as fitas de boa sorte africanas  que Denise usa ao redor do pulso veem de uma igreja na Bahia onde foram abençoadas por um Padre [Fitas do Senhor do Bonfim]. De todas as deidades na religião do Candomble temos Iemanja, a deusa–ou santa– do mar, para quem nós jogamos oferendas de flores no Ano Novo; Oxalá, o pai de todos os santos; e Oxum, a deusa da água doce, que é uma das santas de Denise. Todo mundo tem pelo menos dois santos, determinados pelo auto-sacerdote, ou Pai de Santo, através dos búzios. 

No Brasil, ninguém é tido como primitivo, ou insano ou excêntrico por acreditar em tudo isso. Uma noite eu jantei com o Chefe do Protocolo do Presidente do Brasil. Ela falava um inglês perfeito e francês e tinha graduação em ciências políticas em uma universidade europeia.  Na noite seguinte, andando na praia, eu a vi dançando ao redor de uma fogueira, enquanto um sacerdote vestido de branco da Bahia conjurava encantamentos ao som de vinte tambores. Intelectuais, empresários, políticos, doutores, qualquer um pode visitar um Pai de Santo e fazer sacrifícios de animais para trazer boa sorte, ou espantar os maus-augúrios e depois ir em uma igreja católica para acender um vela. Um amigo meu, que é um dos mais poderosos homens da TV brasileira, me disse que se ele dobra o dinheiro dele de uma maneira particular, isso iria assegurar sua contínua prosperidade. Ele dobra o seu dinheiro dessa forma. Denise acredita que se ela acender uma vela na frente das fotos de minha mãe morta e do seu pai morto, isso os estimulará a trabalhar em nosso benefício e nos trazer boa sorte.  Fé supersticiosa é o sine qua non da vida Brasileira em diversos níveis.

Não posso deixar de evidenciar o romantismo nessa passagem. Afinal, mesmo com nosso sincretismo religioso, religiões africanas sempre foram, de uma forma ou outra, discriminadas. Porém me parece um ideal interessante de espiritualidade: a assimilação sincrética soa avessa ao fundamentalismo religioso. Se esse de fato é o caso, talvez o sincretismo e a diversidade sejam um bom ideal para a causa humanista secular.

20 perguntas que os ateus têm dificuldade em responder


Semana passada Peter Saunder compilou uma lista de 20 perguntas a ateus que, segundo ele, não tiveram respostas decentes nos últimos 40 anos. Decentes para Saunder, pelo menos. De qualquer forma, eu falho em ver o ponto dessas perguntas. Afinal, a incapacidade ou dificuldade de ateus responderem tais perguntas não torna uma alternativa supernatural necessariamente uma resposta válida. Adicionalmente, muitas dessas perguntas tem cunho científico. Qual é a suposição oculta aqui? Que apenas ateus são cientistas (ou que ciência é ateia?).

Não tenho a pretensão de responde-las completamente, principalmente porque algumas delas requerem o mínimo de pesquisa (e acreditem ou não, eu tenho outras coisas para fazer). De qualquer forma acho válido registrar minha opinião sobre esses assuntos.

1) O que causou a existência do universo?

Eu não estava ciente que já haviam demonstrado que o universo tinha tido uma causa. Afinal, a pergunta não é se o universo tem uma causa, mas qual é ela. Essa pergunta pode ir para qualquer lado. Afinal, se formos igualar “universo”=”o que teve inicio com o Big Bang”, então existem muitas respostas possíveis, incluindo a resposta dada por Lawrence Krauss. Note que a resposta de Krauss não responde “por que existe algo e não nada”, mas responde o porque o que existe assume a configuração que vemos, sendo que essa configuração é o que “teve inicio com o Big Bang”. Outra possibilidade é simplesmente que o universo não teve uma causa, seja porque ele é eterno, ou seja porque ele tem uma origem a-causal.

Responder porque existe algo e não nada é uma pergunta diferente.

2) O que explica o ajuste fino das constantes universais?

O ajuste fino das constantes universais, até onde me consta, é a descrição de um padrão visto nas leis usadas para descrever o comportamento dos sistemas físicos. Ou seja, o ajuste fino é apenas um padrão das nos parâmetros de modelos descritivos. Visto que tais leis lidam com contextos muito específicos e livres de erros, o “ajuste” dos parâmetros é uma simples função da ausência de erro nesses sistemas (ou erro nos experimentos criados para testa-las).

Perguntar o que causa o ajuste fino das constantes universais me soa como uma falácia de equivocação, na qual substituímos os modelos descritivos do universo pelo universo e assumimos que, visto que números variam em uma escala, e tais modelos tem parâmetros (constantes) numéricas, logo tais constantes  poderiam assumir quaisquer valores. Eu não estou certo de que isso é possível.

3) Porque o universo é racional?

Até onde sei, racionalidade é uma propriedade de cérebros, e não de universos. Talvez a pergunta seja “porque o universo pode ser descrito racionalmente?”. Se de fato a pergunta for essa, me parece que nossa capacidade de entender o universo é uma função do fato de que o universo é ordenado e que nossos cérebros evoluíram nesse contexto, nos fornecendo ferramentas para interpreta-lo.

Um exercício interessante é tentar imaginar como seria um universo que não é descritivel de forma racional. Tal “universo irracional” impediria qualquer tipo de inferência racional, o que me parece o mínimo necessário para o surgimento de seres racionais. Ou seja, se existisse vida em tal universo (o que eu também acho que seria impossível, visto que não haveria transferencia de informação), ela simplesmente nunca evoluiria para ser “racional”, pelo menos não da maneira que nós somos. Porém imagino que existiria a possibilidade de algum tipo de processamento axiomático eficiente e extrapolável, basicamente porque parece um jeito eficiente e versátil de exploração da realidade.

4) Como DNA e aminoácidos surgiram?

Através de processos químicos. Os aminoácidos são a parte mais fácil, obviamente. Desde os experimentos de Urey-Miller que sabemos que é possível criar aminoácidos através de processos químicos. Muito se fala que as condições ambientais simuladas nesses experimentos não refletiam as condições reais da Terra primordial, porém normalmente se deixa de fora o fato de que experimentos recentes, com condições mais próximas dos modelos atuais para atmosfera primitiva, conseguem produzir mais aminoácidos que os experimentos originais.

No caso do DNA a questão é um pouco mais complicada, porém tanto a origem de nucleotídeos quanto a polimerização de polinucleotideos pode ser atingida naturalmente. A formação de cadeias mais longas e codificantes provavelmente envolveu algum tipo de processo biológico.

5) De onde veio o código genético?

Existem 3 principais teorias da origem do código genético. A primeira é a teoria estero-quimica, na qual a associação entre códon, anti-codon e amnoácidos se dá por afinidades fisicoquímicas. A segunda é a teoria coevolutiva, que postula que a estrutura do código co-evoluiu com as rotas catalíticas dos amnoácidos. A terceira é a teoria do “acidente congelado”, na qual o fato de todos os organismos terem o mesmo código simplesmente por compartilhar um ancestral comum. Tais teorias não são mutualmente exclusivas.

6) Como cadeias de enzimas complexamente irredutíveis evoluem?

Vale lembrar que complexidade irredutível é definido de diversas formas, porém a mais usual é “uma estrutura complexa que deixa de exercer uma função se uma de suas partes é removida”. Disso normalmente se infere que é impossível evoluir tal estrutura por seleção natural, visto que é impossível exercer seleção para a melhora de uma função, sendo que o estado anterior hipotético não poderia ter essa função. Nesse contexto, basta termos rotas metabólicas que exercem outras funções sendo coaptadas para exercer uma nova função. Basta que o passo anterior seja levemente mais benéfico para o organismo que o anterior. Na verdade, acredito que muito da questão da complexidade irredutível vem do fato de que criacionistas avaliam as rotas metabólicas individualmente, ignorando que elas estão em organismos em um contexto ecológico. Mesmo uma pequena queda de aptidão para dada função pode ser compensada por um incremento maior de aptidão em outra característica. O que importa é a aptidão total do organismo e, consequentemente, a aptidão média da população.

Isso torna a dinâmica evolutiva bastante complicada e não linear, visto que não podemos traçar a evolução de dado sistema simplesmente avaliando a função atual do sistema. Mas o fato de ser complicado não significa que é impossivel, como os criacionistas costumam achar.

7) Como nós podemos explicar a origem de 116 famílias linguisticas distintas?

Suponho que através de algum principio de evolução cultural. Afinal, as famílias podem ser construtos artificiais que reconhecemos como discretos apenas porque as informações que agrupavam distintas famílias em grupos mais inclusivos foram superescritas por um longo processo de desenvolvimento cultural. As evidências parecem apontar para o fato de que a origem linguística é única e que processos culturais e padronização geográfica são essenciais para entender a evolução da linguagem.

De qualquer forma, as distintas linguagens não necessariamente surgiram de apenas uma linguagem ancestral. A capacidade para a linguagem parece estar presente em primatas não-humanos, assim como indícios de diferenciação cultural entre populações. Origem independente e fluxo cultural podem ter dominado o inicio da história da comunicação linguística humana.

8) Porque cidades surgiram subitamente por todo o mundo entre 3000 e 1000 AC?

Até onde sei, 2000 mil anos não é “súbito”, principalmente em termos de história humana. De qualquer forma, eu não sei se isso é verdade. Até onde sei, as primeiras cidades datam de até 7500 AC (Eridu – 5400AC; Uruk- 4000AC; Ur- <3000AC; Çatalhöyük-7500AC), o que é consistente com a idea de que a construção de ocupações mais permanentes e do estabelecimento de grandes áreas agricultáveis só foram possíveis com o aumento da temperatura após o ótimo climático do Holoceno.

9) Como é possível a existência de pensamento independente em um mundo governado por acaso e necessidade?

O que essa pergunta quer dizer exatamente, eu não tenho certeza. Saunder parece querer insinuar que necessidade implicam em ausência de escolha e que acaso implica em acausalidade e que pensamento independente (presumidamente livre-arbítrio) ocorre. Porém se minha interpretação está correta, essa pergunta é igual a uma que veem a seguir (explicitamente sobre livre-arbitrio).

Acho que nesse momento não é possivel responder a pergunta sem entender exatamente o que “pensamento independente” é.

10) Como explicamos a auto-consciência?*

Provavelmente como uma função superior de um cérebro complexo e modular, surgido através de evolução. Até onde sabemos, autoconsciência (“self-awareness”) está presente não apenas em humanos, chimpanzés, orangotangos e até alguns macacos. Apesar disso indicar que existe uma origem evolutiva comum para a consciência, nem todos grandes primatas apresentam a capacidade de auto-reconhecimento (usado como indicio de consciência), o que sugere que as bases para a consciência podem estar presentes em diversos graus em diferentes linhagens de primatas, mas as condições específicas para o seu surgimento possam envolver mais fatores, como capacidade de aprendizado, por exemplo.

11) Como o livre-arbítrio é possível em um mundo determinista?

A resposta é fácil: ele não é. Ou ao menos o livre-arbítrio libertario. Agora, se formos usar a definição de livre-arbítrio compatibilista, pela própria definição, o livre-arbítrio seria compatível com determinismo (não que eu entenda o ponto do livre-arbítrio compatibilista como sendo um tópico para discussão).

12) Como explicamos a consciência?*

Sabemos que pessoas com lesões cerebrais tem capacidades de raciocínio moral modificadas ou prejudicadas, como no famoso caso do Phineas Gage. Ou seja, a capacidade de pensamento moral são contingente em características estruturais de nosso cérebro. Curiosamente, muitas características típicas do comportamento de culpa estão presentes em outros animais sociais , e são usados como reforço de relações sociais e para minimizar os efeitos das transgressões contra parceiros de grupo, o que estabelece um continuo natural entre o comportamento visto nesses animais e o nosso comportamento moral.

13) Qual é a base de nossos julgamentos morais?

Nossas vontades, nossa capacidade de empatia e, sobretudo, razão. Não é nada mágico se você para pensar. Todos nós queremos coisas e sentimos obrigações morais para com outros membros de nosso grupo social. Não apenas isso, tais coisas que queremos normalmente são realizadas por intermédio da sociedade (que seja comprar uma Ferrari, afinal, você não tem uma manufatura de Ferraris no seu quintal), o que torna a transformação da sociedade um instrumento essencial para que possamos conseguir essas coisas. Claro, outros membros de nossa sociedade despertam nossa empatia, mas também nosso medo, é isso que significa ser parte de uma espécie de animais sociais. Sendo assim, regras gerais de conduta são estabelecidas para um convívio social menos tenso. 

Na minha opinião, a regra de ouro continua sendo o melhor ideal de conduta social, porém isso nem sempre leva em conta o fato de que os outros membros da sociedade podem ser cretinos e simplesmente fazer com você exatamente o que não querem que seja feito com eles.

14) Porque sofrimento importa?

Bom, ele não importa, ao menos para a grande maioria do universo. Ele importa para nós. O porque disso decorre, como falei acima, de nossa natureza (como um animal) social e nossos desejos para uma sociedade melhor (que está implícito em nossa busca por coisas boas). Nesse tipo de sistema, sofrimento é um indicativo relativamente forte de que as coisas andam mal e que, se um numero grande de pessoas sofrem no seu convívio social, é bem provável que você venha a sofrer também. 

15) Porque seres humanos importam?

De novo, eles importam para nós, que somos humanos pelos mesmos motivos colocados acima. Nós vivemos em um meio social: sem isso, até o mais desfavorecido dos seres humanos seria apenas um louco no meio do mato sem a capacidade de articular um pensamento coerente, se muito. Até em nossos estados mais primitivos nós dependíamos de nosso bando. Ou seja, imaginar um ser humano isolado do resto de seu convívio social é quase como remover do sistema qualquer pessoa que possa vir a se importar com algo.

16) Porque ligar para justiça?

Porque ela faz parte de uma sociedade funcional onde é possível (ao menos em tese) conseguir as coisas que desejamos, através da transformação da sociedade, como já coloquei. A justiça é o mecanismo que tenta impedir que cretinos (ou sociopatas) sejam cretinos.

Porém se a palavra justiça está relacionada à “retribuição”, então a resposta é que devemos ligar para ela porque algumas pessoas precisam disso para fazer algum tipo de racionalização de injustiças cometidas contra elas ou contra entes queridos. Retribuição, na forma de punição estatal, parece apenas funcionar como um dispositivo de coesão social, nesse sentido. Minha opinião é que, na maioria dos casos, não precisamos deles.

17) Como explicamos a quase universal crença no supernatural?

Através de predisposição cognitiva humana à pensamento teleológico e intencional (referencias aquiaqui e aqui). O que isso significa é que nós temos uma capacidade inata de reconhecer propósito e intencionalidade na natureza, mesmo quando essa não existe. Tal predisposição é independente de nossa bagagem cultural (principalmente por estar presente antes de que qualquer aprendizado expressivo ocorra), o que significa que não é religião que a perpetua, mas que ela é um dos mecanismos através da qual nossas crenças supernaturais se expressam. Tais mecanismos parecem ser exatamente os mesmos por trás do reconhecimento de design na natureza. Tais predisposições inatas parecem correlacionar negativamente com o nível de instrução até mesmo em idades pouco avançadas, sendo substituídas aos poucos por raciocínio mediado por regras (aprendidas). Não tão espantosamente, parece haver uma influencia negativa de religiosidade em grau de escolaridade científica.

18) Como sabemos que o supernatural não existe?

Eu não sei se tal pergunta sequer faz sentido. Em quase qualquer definição de “supernatural” que eu consiga conceber, a detecção dele implicaria que tal coisa que foi detectada não é supernatural, apenas desconhecida. Se o supernatural “real” existe de fato, ele não é apenas indetectável, como também não influencia nada em nossa realidade. Ou seja, o supernatural pode existir de forma que não ajude em nada o argumento teísta.

19) Como podemos saber se existe uma existência consciente após a morte?

Da forma que vejo, através de ciência. Afinal, basta descobrir um procedimento pelo qual nossa mente pode ser transmitida através de algum tipo de meio para tal tipo de existência. Existe um pequeno porém ai: sabemos que nossa mente é uma função fisiológica de nossos sistema nervoso central, que é amplamente influenciada não apenas pela conformação específica de sinapses de cada cérebro individual, assim como outros sistemas do nosso corpo. O que entendemos por “mente” é um aspecto de nosso corpo físico. Tal aspecto poderia ser transmitido para esse outro meio (não vejo nenhum tipo de impossibilidade lógica em isso acontecer), porém isso me parece que envolveria algum tipo de transferência de massa/energia para esse outro sistema (afinal, nossas mentes são materiais). E mesmo assim, não vejo como isso necessariamente implicaria em “consciência”. Afinal, a mente age através do corpo, e remover um aspecto apenas e dizer que aquilo apresenta as mesmas propriedades que o todo possuía (pelo menos a propriedade que nos importa) não me parece muito justificado. Seria como fazer um backup de um GPS de um carro e ainda assim achar que o seu pendrive pode te levar até Ubatuba.

20) Como explicar a tumba vazia, as aparições de Jesus após a morte e o crescimento da Igreja?

Eu não estou sequer convencido que Jesus realmente foi uma pessoa real (como acho que deixei a entender nesse post). A tumba vazia, assim como as aparições podem ser explicadas por qualquer outro mecanismo que gerou outros mitos equivalentes. Mesmo um cristão pode entender isso, a não ser que ele também aceite a ressurreição de Hercules, Apolônio de Tiana, Julio Cesar ou, em um exemplo mais recente, Elvis Presley. De forma equivalente, o crescimento da Igreja cristã pode ser explicado igualmente pelo mesmo processo que promoveu o crescimento de outras igrejas que apresentaram uma rápida expansão como o Islã.

Ou seja, a não ser que alguém advogue algum tipo extremo de sincretismo religioso (todas as religiões são verdadeiras ao mesmo tempo), todos nós vamos usar argumentos similares e naturalistas para explicar qualquer um desses fenômenos.

*Autoconsciência é do original “self-awareness” e consciência é do original “conscience”. Apesar de ambos serem traduzidos como “consciência”, o significado (pelo contexto e pelas discussões) parecia ser diferente: 1) capacidade de introspeção e de se reconhecer como aparte de outros e do meio e 2) guia moral interno, para autoconsciência e consciência, respectivamente.

——————————————

Nota: Peter Saunder já respondeu 6 perguntas, tentando mostrar como o teísmo faz um trabalho melhor em responder essas perguntas. Ele reiterou que não sabemos a resposta (o que é conveniente, quando você ignora ela), logo Jesus.

Chomsky chama Harris e Hitchens de fanáticos religiosos

Hoje Daniel Dannett publicou em sua página no Facebook um vídeo do Noam Chomsky, linguista e intelectual de esquerda, dando sua opinião sobre Sam Harris e Christopher Hitchens:

Em primeiro lugar eu acho que eles [Harris e Hitchens] são fanáticos religiosos. Eles por acaso acreditam na religião do Estado, que é muito mais perigosa do que outras religiões […]. Ambos são defensores da religião do Estado, a religião que diz que precisamos apoiar violência e atrocidades do nosso próprio governo porque está sendo feita por todos estes maravilhosos motivos, que é exatamente o que todo mundo diz em todo Estado.

Acho um tanto estranho chamar qualquer tipo de posição ideológica extremista como “religiosa”. Afinal, se religião é qualquer coisa, a ausência dela (secularismo) deveria ser algo que não pode ser classificado como religião. De qualquer forma, não posso dizer que discordo da crítica do Chomsky: o endosso que Hitchens ofereceu à invasão do Iraque sempre me foi desconfortável e as justificativas que ele ofereciam sempre me soavam boas o suficiente apenas se você assumia que intervencionismo militar era algo aceitável.

Essa crítica do Chomsky não é nova. De fato, ele parece ver o movimento “neo-ateísta” como inútil (por apenas oferecer uma mensagem à pessoas que já concordam) ou danoso (por endossar o tipo de violência que ele critica), opinião essa fortemente enviesada pela sua opinião sobre Harris e, principalmente, Hitchens. Tal discórdia parece ter começado logo após 11 de Setembro, quando Chomsky publicou um comentário sobre o atentado que foi interpretado por Hitchens e Harris como uma tentativa de justificar o ocorrido como consequência da política intervencionista Norte-Americana. O debate que se desenrolou não foi nada amistoso, sendo que umas das acusações mais sérias que Chomsky fez a Hitchens é que ele estava sendo deliberadamente enganoso.

Nos comentários do meu post passado, meu colega Xis indagou o porque dos “neo-ateus” tenderem para a direita. Meu chute foi que o 11 de Setembro teve um impacto grande na geração do movimento, e que a defesa de ações intervencionistas e autoritárias eram algo esperado dentro do movimento, visto que a motivação para a crítica à religião e para tais ações é a mesma (terrorismo muçulmano). O debate de Chomsky e Hitchens me parece consistente com essa narrativa, assim como o fato de Harris ter colocado que nenhuma de suas posições era particularmente nova.