Criacionista da Terra Jovem distorce pesquisa de brasileiros para corroborar o Design Inteligente

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Esse é Dr. Marcos Nogueira Eberlin. Professor da Unicamp. Pesquisador. Membro da Associação Brasileira de Ciência. Criacionista. Eberlin é um daqueles espécimes raros que acredita na literalidade do livro Genesis. O que o torna mais raro ainda é o fato de ser um pesquisador de alto impacto, apresentando um índice de produtividade impressionante para qualquer área de conhecimento acadêmico (mais de 800 artigos publicados, citados mais de mil vezes).

Talvez por ser um daqueles poucos criacionistas com credenciais científicas, Dr. Marcos Ebelin se tornou um garoto propaganda do Design Inteligente, uma versão menos pretensiosa do criacionismo, que apenas busca demonstrar que algum aspecto da realidade (normalmente focando em organismos e estruturas biológicas) foi criado por uma inteligência divina superpoderosa. A despeito disso, Ebelin em todo o seu discurso se assemelha mais a um criacionista terra jovem, tomando como literal os relatos bíblicos da criação especial (mágica) das espécies e na historicidade do dilúvio universal de Noé.

Com o tempo, Dr.Eberlin perdeu toda e qualquer pretensão de sutileza ao defender suas crenças anti-científicas, utilizando-se do facebook como sua principal mídia. Dentre referencias abundantes a sites criacionistas como o answersingenesis.org, podemos encontrar posts como o abaixo:

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De onde saem informações como a de que somos mais similares a porcos do que a chimpanzés (chamados de “chimpas”) me é um mistério. Mas talvez o mais impressionante é o estilo de escrita e argumentação utilizado por um pesquisador que estaria dentre um dos mais produtivos do Brasil.

Recentemente o Dr. Eberlin resolveu argumentar, em uma série de posts em sua página pessoal, que algumas pesquisas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros corroborariam o Design Inteligente:

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Nesse post o Dr. Eberlin sugere que a pesquisa referida corroboraria a hipótese de Design Inteligente, e ainda sugere que isso não foi dito no texto do artigo pois tais especulações seriam proibidas dentro da academia (referida pelo Dr. Eberlin como Akademia, talvez como uma referencia à Nomenklatura, um meme usado por outro criacionista brasileiro).

Intrigado com essa afirmação, eu resolvi perguntar diretamente ao principal autor do trabalho, o Dr. Marcus Smolka, se seu trabalho poderia ser interpretado como uma corroboração do Design Inteligente. Abaixo reproduzo na integra a resposta do Dr. Smolka:

Olá Fabio,

Obrigado pela mensagem. Definitivamente NÃO concordo que minha recente publicação seja suporte, em qualquer maneira, para a idéia de DI. O Prof. Eberlin tem o direito de interpretar meu texto do jeito que quiser, porém, me parece que ele esteja fazendo um jogo equivocado de palavras para tentar vender a idéia de DI. Realmente não entendo a lógica dele. Pessoalmente, acho um desfavor a ciência.
Um abraço,
Marcus

Ou seja, nada no resultado reportado na revista Molecular Cell está sustentando a tese criacionista do design inteligente.

Pode parecer picuinha, mas esse caso evidencia o Modus Operandi dos criacionistas do DI: eles não produzem nada que corrobore sua tese, se limitando a canibalizar os esforços alheios, distorcendo os achados e interpretando-os de forma que os beneficie.

Isso não é uma prática honesta, e não é algo que um pesquisador do calibre do Dr. Eberlin deveria se reduzir a fazer. Mas é exatamente isso que ele faz.

Só nos resta perguntar o porque.

Em defesa do CFBio contra o Criacionismo

projeto de lei 8099 - criacionismo

 

Recentemente o Conselho Federal de Biologia (CFBio) publicou uma nota repudiando a PL8099 do Pastor e Deputado (nessa ordem de importância) Marcos Feliciano que tornaria o ensino do Criacionismo obrigatório em escolas. O projeto de Lei em si é um absurdo pelo festival de equívocos e imprecisões. Nesse sentido, o CFBio se adicionou a uma multiplicidade de associações acadêmicas e de ensino no repúdio dos avanços dos projetos criacionistas no Brasil, dentre elas:

Porém o que me chamou mais atenção foi a publicação do Maurício Tuffani no seu blog na Folha. Segundo Tuffani (divulgador que eu respeito bastante), a afirmação do CFBio foi equivocada, principalmente por conta da última frase na seguinte citação:

Ao contrário do que está exposto no PL 8099/2014, a Teoria da Evolução não é uma crença e, portanto, não tem nenhum fundamento dizer que ensinar evolução nas escolas é violar a liberdade de crença. O evolucionismo se baseia em observações fundamentais e em pesquisas científicas que surgiram com experimentos devidamente comprovados. A Evolução das espécies através da seleção natural não é uma teoria, mas uma coleção de fatos amplamente comprovados.

Segundo Tuffani, o texto se contradiz ao dizer que a teoria evolutiva é primeiramente uma teoria e depois que ela não é uma teoria, mas uma coleção de fatos. Além disso:

 Ao negar, em vez de corrigir, a falaciosa afirmação de que “a evolução é só uma teoria”, até mesmo alguns cientistas acabam afirmando uma grande bobagem, a de que a teoria da evolução é cientificamente comprovada. É uma bobagem porque nenhuma teoria científica pode ser comprovada. E a exploração dessa bobagem tem feito sucesso.

Tuffani aqui se refere à tática criacionista de tentar igualar o termo “Teoria” no seu uso cientifico, que é um conjunto de modelos que busca explicar uma coleção de fenômenos, com o seu uso informal, que seria algo como um chute ou uma opinião não corroborada. Segundo os criacionistas, o fato de a Teoria Evolutiva ser chamada de “teoria”, demonstra que ela não é corroborada, logo pode ser descartada em favor de outra teoria qualquer, como o Criacionismo. O Tuffani faz um bom trabalho de evidenciar essa questão, então sugiro ler o post dele para essa questão.

Porém eu não pude deixar de demonstrar espanto com o posicionamento do Tuffani, visto que a visão exposta no site do CFBio é idêntica a o que muitos biólogos e defensores da evolução defendem: de que evolução, além de uma Teoria, é um Fato. Se olharmos por esse lado, o texto do CFBio não é contraditório, pois primeiramente fala sobre a Teoria evolutiva, e depois se refere ao fato (ou fatos) da evolução. Nada de espantoso.

Agora, eu sou completamente contrário a essa ideia: nada pode ser um fato e uma teoria ao mesmo tempo. Já escrevi alguns posts sobre o assunto e pretendo retomar essa discussão algum dia:

Mas o ponto é, essa ideia de que evolução é um fato é extremamente difundida, e não é nem de longe algo que é obviamente errado para a maioria de pesquisadores e leigos que aceitam a evolução.

Eu concordo com Tuffani de que tal visão é equivocada e que o CFBio errou em não abordar o equivoco central na tese criacionista. Porém também compreendo que o CFBio não é uma entidade acadêmica, e que está apenas expressando o que eles acreditam ser uma tese correta, tendo em vista a difusão dessa ideia dentre biólogos.

Em outras palavras: pisaram na bola, mas é compreensível.

Não façam de novo.

Feio.

Deus é o ovo

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Cientificismo, segundo o filosofo Tom Sorell, é a “demasiada valorização da capacidades da ciência natural em comparação com outros ramos do aprendizado ou cultura”. Em outra palavras, é o uso inapropriado da ciência e das teorias científicas para explicar fenômenos que normalmente não são da alçada de uma área de conhecimento específica.

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“Hey, bob. Que tal a gente elaborar um construto social elaborado, com relações complexas com mitos de nossa cultura para que a gente possa, eventualmente, comer um bifão?”

Stephen Jay Gould deu um exemplo disso em seu artigo sobre o “adaptacionismo” nas ciências biológicas, que é a tentativa de explicar todo e qualquer fenômeno nos organismos vivos como sendo produto de seleção natural. Em seu artigo co-autorado por Richard Lewontin entitulado “The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique of the Adaptationist Programme” de 1979, Gould exemplifica a questão quando critica a sugestão de E. O. Wilson, pai da sociobiologia, de que o consumo de carne humana (canibalismo) em culturas astecas poderia ser um reflexo de uma falta crônica de proteína animal, ignorando toda uma literatura antropológica avaliando o significado e as possíveis causas culturais de tal fenômeno.

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O que acontece com um paleontólogo ao escutar que dinossauros são uma construção social.

 

Usualmente a acusação de “cientifismo” é aplicado ao uso de ciencias naturais (química, física, biologia, geologia, etc) em outras áreas, usualmente humanas. Mas não há nenhum motivo para que o emprego do termo seja assimétrico: muito do chamado “pós-modernimo” é o emprego de técnicas e conceitos provenientes das humanidades, principalmente crítica literária, em outras ciências. Nesses casos a validade de uma teoria científica deixa de ser avaliada de acordo com sua adequação às evidências empíricas (marca fundamental das ciências) e passa a ser avaliado quanto a sua adequação à ideologias e processos sociais. A validade da evolução deixa de ser seu escopo explicativo, mas um julgamento da cultura que permitiu o surgimento dessa teoria (européia, renascentista, branca e machista), e o significado dessa ideia para a sociedade.

Acusações de cientificismo também são comumente usadas por alguns religiosos e teólogos ao acusar cientistas de tentar “opinar” em assuntos religiosos do ponto de vista científico. Por exemplo, Victor Stenger, no seu livro “The Fallacy of Fine-tunning” afirma que

“(…) as observações da ciência e dos nossos sentidos não apenas mostram a ausência de evidencias para [a existência] de Deus mas também dão evidencias para além da qualquer dúvida razoável de que um Deus que tem um papel tão importante e cotidiano no universo como o Deus Judaico-Cristão-Islamico não existe”

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“Meus super-sentidos não detectam a presença de nenhuma entidade omnipontente, omniciente e omnibenevolente no universo. Parece que sou a única divindade solar por aqui mesmo…”

Segundo alguns religiosos, usar a ciência para analisar afirmações sobre o supernatural e o divino são exemplos de cientificismo, visto que é a utilização da ciência (natural, normalmente) em uma área na qual ela não se adequa, que seria a teologia.

Visto que a acusação de cientificismo é tão rotineiramente utilizada por intelectuais religiosos para defender sua fé de intelectuais ateus, me soa particularmente irônica a utilização de achados científicos como base para afirmações de fé. Um exemplo claro disso é no chamado “Argumento Cosmológico para a Existência de Deus”. O argumento tem a seguinte forma:

  • [P1]- Tudo que que começa a existir tem uma causa
  • [P2]- O universo começou a existir
  • [C]- o universo tem uma causa (que é Deus, por sinal)

A validade da conclusão depende da validade das premissas, e o que é usualmente utilizado para corroborar a segunda premissa, é a teoria do Big-Bang, que afirma que o universo visível atual teve uma origem em um ponto específico de nosso passado, aproximadamente a 15 bilhões de anos atrás.

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Bom, acho que isso explica o período inicial de inflação cósmica…

 

Obviamente eu não estou sugerindo que teólogos não deveriam se basear em ciência e fatos conhecidos para tirar suas conclusões sobre o universo. Porém essa empreitada é fútil quando todos os argumentos baseados em ciência são necessariamente provisórios e tentativos, o que está em claro desacordo com a necessidade do teólogo de se comprometer com uma conclusão específica.

Robert M. Price brilhantemente exemplificou essa questão durante durante um debate com o filosofo e apologeta cristão William Lane Craig sobre a existência da figura histórica de Jesus Cristo:

Historiadores críticos não estão engajando em epistemologia metafísica como se eles pudessem saltar em uma máquina do tempo e pontificar “‘A’ não aconteceu, ‘B’ sim!”. De novo, Craig e seus irmãos estão apenas projetando. São eles, e não os historiadores críticos que querem poder apontar para resultados absolutos. Imagine um credo “Se tu confessar da tua própria boca ao Senhor Jesus e acreditar em seu coração que Deus provavelmente ressuscitou-o dos mortos, tu provavelmente serás salvo”. Na cara de quem está a piada aqui?

No caso do Big Bang e do argumento cosmológico, a piada é mais óbvia ainda. Quando em 1951 o papa Pio XVII quis alardear que o Big Bang era comprovação de que o catolicismo era verdade (justamente pelo Argumento Cosmológico), Georges Lemaître, o primeiro proponente desse modelo cosmologico e padre o impediu, afirmando que sua teoria era neutra a respeito da existência de Deus. E ele obviamente deveria ter que fazer isso. Caso o contrário, se Deus fosse uma conclusão com base em um modelo científico, se tal modelo cai, Deus cai também. E visto que Lemaître (assim como qualquer outro católico e cristão no mundo) provavelmente não estava preparado para abandonar a crença em um Deus apenas pela refutação de uma teoria científica, ele argumentou contra a associação de ambos. Defensores do Design Inteligente e criacionistas não tem essa clareza: uma vez que suas hipóteses foram refutadas (e todas elas foram), tudo o que lhes resta é negar a ciência. É o cientificismo levando ao anti-intelectualismo.

Mas caso nada disso tenha ficado claro, aqui vai um exemplo mais simples: sabe aquela história de que em uma semana os médicos e pesquisadores afirmam que ovo faz mal, e em outra eles afirmam que ele faz bem, nunca chegando a um consenso, se contradizendo e refutando um ao outro recorrentemente?

Imagina que Deus é o ovo.

O melhor argumento para o “Evolucionismo Teísta”

No post anterior eu argumentei que a evolução convergente de peixes cegos de caverna é um tanto esquisita, se avaliada a luz da evolução teísta, visto que seria necessário postular um deus caprichoso ou enganador para se conformar com as observações. A solução seria, então, propor um designer interventor que produzisse um efeito no mundo natural puramente indistinguível de processos materiais. Como isso pode ser feito?

Ao meu ver, a melhor proposta para como solucionar isso é a defendida por Elliott Sober:

A idéia pode ser resumida da seguinte forma: Deus interfere na evolução manipulando algumas mutações genéticas. Quantas, você pergunta? Bem, o suficiente para serem imperceptíveis.

Uma analogia pode ajudar a entender. Suponha que você tem um número muito grande de eventos aleatórios como, digamos, lançamentos de uma moeda não-viciada. De todos os lançamentos, aproximadamente 50% deram cara e 50% deram coroa. O evolucionismo teísta seria o equivalente a chegar na 457o lançamento, que deu por acaso coroa e dizer “Deus fez com que esse lançamento desse coroa”. Ou seja, uma mutação ou outra é causada por Deus, como por exemplo a que causou o surgimento dos tetrápodes, ou que me de um esmalte dentário praticamente imune a caries.

A parte boa da ideia, é que é completamente infalseável, como qualquer boa ideia religiosa deve ser para não cair nas garras da “ciência materialista” (sic). A parte ruim é que a intervenção divina é totalmente irrelevante para entender qualquer padrão geral e, de quebra, torna Deus impotente frente as forças materialistas que geram todo o resto das mutações. Deus pode ter sido responsável por criar uma mutação benefica que foi varrida de uma população por deriva, ou mesmo que uma mutação puramente natural foi melhor do que mutação causada divinamente. Lembrando que Deus não poderia fixar uma mutação desvantajosa (isso seria contra a seleção natural e distinta da evolução materialista) ou causar uma pletora de mutações improváveis para criar uma estrutura complexa (isso seria Design Inteligente e fácil de diagnosticar).

A única “contribuição” dessa ideia é permitir aos seus defensores dizer que, em algum momento da história da vida na terra, Deus pode ter interferido através de uma mutação. Talvez. Ninguém pode saber ao certo.

Agora, Sober não é nenhum tonto: ele é um dos mais importantes filósofos contemporâneos da evolução, mas eu acho que ele está numa empreitada quixotesca nesse ponto, e pelos motivos errados. E os motivos não são nem sequer religião, visto que Sober é ateu. O problema dele é com os “novos ateus” e sua retórica. Especificamente, com o fato deles afirmarem (ou darem a entender) que religião e evolução são incompatíveis ou, mais especificamente, que uma concepção neo-darwinista da evolução implica na inexistência de um designer capaz de guiar as mutações.

O argumento que Sober tenta rebater é o seguinte:

P1) Até onde os cientistas puderam observar mutações são aleatórias.
P2) Mutações aleatórias não podem ser mutações guiadas.
P3) Temos modelos deterministicos de todos os outros fatores envolvidos na evolução das espécies
C) Não é possível ter mutações guiadas, ou não é possível que Deus esteja intervindo na evolução através de mutações.

Sober argumenta que tal linha de raciocínio é falaciosa, se baseando na equivocação da palavra “aleatória”. Quando um biólogo fala de mutação como sendo aleatória, ele não quer dizer que as mutações são não-causadas, mas sim que a probabilidade de uma mutação ocorrer é independente de se ela é benéfica ou deletéria. Então quando um teólogo diz que deus guiou a evolução por mutações aleatórias, os termos “guiada” e “aleatórias” não estão em contradição pelo simples fato de que elas não são ideias opostas nesse contexto.

E ele está absolutamente correto nesse ponto: a teoria evolutiva moderna não implica a inexistência de forças guiadoras conscientes, apenas limita seu escopo à quase irrelevância (quaisquer que sejam elas). O teísta ainda pode tentar enfiar seu deus em alguma dessas mutações aleatórias (mas não em todas) se ele quiser.

Nada disso, claro, é um argumento realmente a favor do evolucionismo teísta: afirmar que deus fez X ou Y durante a evolução ainda continua sendo um argumento de ignorância similar aos proponentes do Design Inteligente (e para esse ponto, volto a indicar o post do Giuliano). O que Sober está fazendo é apenas apontar como Evolução e intervencionismo divino são compatíveis. As evidências para isso ainda são zero.

Peixes cegos, Elliott Sober e “A Farsa da Evolução Teísta”

Quem me conhece sabe que considero a noção de “Evolução Teísta” uma grandessissima bobagem.

A alcunha “evolução teísta” foi popularizado pela Eugene Scott (uma agnóstica até onde sei) da NCSE, uma instituição voltada para a defesa de ciência, especificamente evolução e aquecimento global, por serem ideias as científicas mais politicamente atacadas por motivos ideológicos e religiosos. Em seu artigo, Eugene coloca que evolução teísta seria:

“(…) a posição teológica na qual Deus cria através das leis da natureza”

o que estaria em claro contraste com a evolução ateia (sic) ou puramente materialista, que não contaria com nenhuma intervenção divina. Agora, como essa noção de compatibilização entre evolução e teísmo é possível não foi abordado por Scott. Seu único objetivo é fazer com que o máximo de pessoas aceitem em entendam evolução, mesmo que isso se dê através de aceitação de alguma noção idiossincrática. E eu não tenho nenhum problema com isso: é um motivo nobre, defendido também por instituições religiosas como o Biologos do Dr. Francis Collins. O meu problema começa quando eu vejo os argumentos que defendem essa compatibilidade, e noto que eles são completas bobagens. Por exemplo, o teólogo e bioquímico Alister McGrath, ao discutir a posição de Santo Agostinho sobre o Gênesis, afirma que

“Para Agostinho, Deus trouxe tudo à existência, em um único momento de criação. No entanto, a ordem criada não é estática. Deus dotou-a com a capacidade de se desenvolver. Agostinho usa a imagem de uma semente adormecida para ajudar seus leitores compreender este ponto. Deus cria sementes, que irão crescer e se desenvolver no tempo certo. Usando uma linguagem mais técnica, Agostinho pede a seus leitores para pensar na ordem criada como contendo causalidades divinamente embutidas que surgem ou evoluem em um estágio posterior.”

Como isso é uma posição sobre “evolução” (fala sobre origem do universo) e teísmo (tá mais para deísmo), me foge completamente! Agora, meu desprezo mais profundo por essa concepção vem da premissa implícita de que existe alguma distinção entre a teoria evolutiva moderna, como aceita por um materialista, e a teoria evolutiva como aceita por um teísta. Porque se existe, um dos dois está errado. E adivinha qual é a teoria aceita pela comunidade científica e quantas vezes ela se vale de um deus teísta?

Giuliano Thomazini Casagrande

Talvez motivado por um similar desprezo, Giuliano Thomazini Casagrande, do blog “Materialismo-Filosofia”, publicou um fantástico post intitulado “A Farsa da Evolução Teísta”, no qual ele ataca de forma voraz a idéia. Sugiro a leitura. O Giuliano tem uma erudição impressionante e uma língua ferina que não poupa ninguém:

O exemplo da produção de variedades domésticas é bastante esclarecedor. As mutações aleatórias fornecem aos criadores de plantas e de animais a matéria bruta para a elaboração de uma imensa variedade de novas linhagens. O método utilizado – de forma consciente ou inconsciente – pelos criadores é a seleção cumulativa, durante sucessivas gerações, de ligeiros desvios anatômicos ou comportamentais de natureza hereditária. Ora, as mutações que surgem aleatoriamente nada têm de milagrosas: um focinho um pouco mais curto, uma pelagem mais densa, um temperamento mais dócil, flores mais vistosas etc. A prática dos cruzamentos seletivos, ao longo de séculos ou de milênios, permitiu aos criadores, por exemplo, a transformação do lobo (Canis lupus) em centenas de raças caninas tão diferentes quanto o chihuahua, o são-bernardo e o buldogue. Quanto à maioria das plantas domesticadas, um leigo não faz ideia das diferenças que as separam de suas ancestrais selvagens. Em poucos séculos, os horticultores obtiveram, por exemplo, variedades como o repolho doméstico, o brócolis, a couve-flor e a couve-de-bruxelas a partir de um único ancestral, o repolho selvagem (Brassica oleracea); e somente um idiota diria que essas variedades foram produzidas por Deus.

Darwin observou que, em estado natural, as pressões ambientais desempenham o papel dos criadores humanos. No notório caso das Ilhas Galápagos, prosperaram as mutações aleatórias que conferiam aos tentilhões (migrados do continente sul-americano) um incremento adaptativo a condições de vida distintas: bicos de diversos tamanhos e formatos, úteis para as dietas mais variadas.

De modo análogo, peixes não relacionados de diferentes regiões do globo são isolados em cavernas e apresentam as mesmas respostas adaptativas (evolução convergente): uma progressiva atrofia do aparato visual, por exemplo. O cenário proposto pelos acomodacionistas é ridículo. A cada vez que uma população de peixes fosse isolada num ambiente trevoso, um designer inteligente operaria uma sequência correspondente de mutações que resultaria na redução do aparato visual. Com a mesma razão um teólogo poderia afirmar que Deus está por trás de um fenômeno como a deriva continental. Na Antiguidade, relâmpagos e trovões eram atribuídos a Zeus, e terremotos, à fúria de Posídon. Isso faz pensar que o discurso “sofisticado” de um Plantinga não passa de superstição ancestral apresentada sob a cobertura de ouropel de um jargão acadêmico embolado.

ouch!

Mas, claro, nenhum evolucionista teísta de fato liga para espécies insulares, ou para raças de cachorro, repolhos ou peixes cegos. O que importa somos nós -seres bípedes, de telencefalo desenvolvido- e como nos encaixamos no plano divino, qualquer que seja ele. Mas para alcançar o status da evolução materialista, a evolução teísta tem que tratar também desses fenômenos. E quando fazemos isso, evidenciamos a futilidade da empreitada.

Agora, eu acho que o Giuliano deu pouca atenção para o que eu considero talvez o melhor argumento “evolucionista teísta” que, não coincidentemente, é o que parece estar menos presente na cabeça dos advogados dessa ideia. Queria também explorar um pouco mais o exemplo sobre peixes cegos, um assunto que considero fascinante.

Visto que isso ficaria longo demais para um único post eu dividi o assunto em 2 posts a serem colocados a seguir, um tratando sobre peixes de cavernas e outro sobre as visões de Elliott Sober sobre essa questão. Ambos podem ser tomados como posts independentes sobre esses assuntos.

1o Post: Devolvendo a visão aos cegos, Mendel-style!

2o Post: O melhor argumento para o “Evolucionismo Teista”

Porque existem tão poucos evolucionistas negros?

Recentemente me deparei com o canal do youtube “Evolution: This View of Life” (A.K.A. EvolutionTVOL) comandado pelo David Sloan Wilson (que também tem um blog no ScienceBlogs). Aparentemente o canal consiste de entrevistas com pesquisadores da área de biologia evolutiva e exibe um formato muito interessante. A entrevista que mais chamou atenção foi a intitulada “O mito da Raça, diferenças raciais em saúde e porque temos tão poucos evolucionistas negros“, com o biólogo evolutivo Joseph L. Graves.

Greves trabalha em uma área da biologia evolutiva muito interessante, tentando responder porque organismos envelhecem. Fora isso, ele também apresenta um interesse muito grande na interface de questões raciais e biologia evolutiva. Durante a entrevista Graves esclarece o porque ele acredita que raças humanas são um mito (basicamente porque temos pouquíssima divergência genética entre grupos) e explica brevemente sobre as causas evolutivas de problemas de saúde ligadas a adaptações alimentares de nossos antepassados (basicamente que quanto mais próxima é sua alimentação da dos seus antepassados, melhor para você).

Joseph L. Graves, primeiro PhD em biologia evolutiva
Negro dos Estados Unidos

Mas o que me chamou muita atenção foi a última questão, brevemente respondida no fim da entrevista, que é: Porque existem tão poucos biólogos evolutivos negros? De fato, em toda minha vida acadêmica só me recordo de ter conhecido um biólogo evolutivo negro (um pesquisador de Harvard, que não me recordo o nome). Graves, que foi o primeiro norte-americano negro a receber o PhD na área, estima que não existam mais do que 10 biólogos evolutivos negros nos EUA, e que biologia evolutiva é, de fato, a área acadêmica na qual os negros são menos representados.

Mas então, qual é a resposta para a questão? Bem, religião. Segundo Graves (que é religioso, por sinal), a comunidade negra norte-americana adotou o cristianismo de uma forma muito mais intensa e fervorosa do que os brancos. Especificamente, que eles adotaram uma perspectiva literalista e fundamentalista da bíblia, o que claramente contradiz os achados da biologia evolutiva.

Graves não deixa muito claro se essa é sua opinião ou se ele tem algum tipo de evidencia para corroborar esse cenário. Ele cita sua experiência pessoal lecionando para alunos negros, e o reconhecimento que eles rejeitam diversos achados da ciência por estes confrontarem com sua fé. Isso é de fato consistente com algumas evidencias sobre a influencia da religião no conhecimento científico (aqui e aqui), então me parece um cenário razoável. Graves ainda coloca que enquanto não reconhecermos essa fonte de conflito não poderemos resolver essa e outras questões relacionadas de forma satisfatória.

Eu confesso que essa talvez seja a minha maior bronca com os que afirmam que ciência e religião são compatíveis: na sua vontade de provar o seu ponto, eles convenientemente ignoram os casos onde o conflito é evidente. Ao argumentar sobre o que é possível, eles deixam de lado o que de fato é realidade. Afinal, sabemos que teológos são muito bons em inventar cenários que tornam a Biblia compatíveis com qualquer coisa, até com física quantica! Mas para cada tese teológica maluca existem centenas de milhares de crentes que acreditam na literalidade do Gênesis.

Então, onde deveríamos estar focalizando nossa atenção?

Ateus literalistas bíblicos

Critica biblica sempre foi uma passagem importante do arsenal retórico dos ateus. Isaac Asimov disse

“Quando lida apropriadamente, a Biblia é a força mais potente para ateísmo jamais concebida”

Eu não conheço nenhuma estatística, mas acredito que isso seja verdade para um grande numero de pessoas. Ao menos, foi o que funcionou para mim. Me recordo claramente de ler com entusiasmo as primeras passagens do Gênesis, apenas para me deparar com uma representação gráfica de como o mundo deveria ser:

Representação do Universo segundo o Genesis

Duas coisas me vieram a cabeça: inicialmente pensei em como a descrição da cosmologia Bíblica era pobre em comparação com outras cosmologias gregas e até cosmologias ficcionais (na época estava lendo a saga de Dragonlance). A outra foi o quão inverossímil era essa representação: eu sabia que a Terra não era plana, que não existia nenhum firmamento, que a Terra girava entorno do Sol e não o contrário, que depois do céu tinha o espaço, que o centro da terra tinha magma e não o submundo de Sheol, etc. Talvez o mais absurdo fosse a representação das comportas do Céu, as que presumidamente se abriram durante o diluvio. Eu podia ver os parafusos das dobradiças. Que deus usaria parafusos?!

Mas enfim, quase ninguém pensa que o mundo é assim. Até criacionistas são esclarecidos o suficiente para saber que não vivemos em um mundo descrito dessa forma, e inclusive inventam histórias bastante… criativas para explicar o porque disso estar descrito assim na Bíblia (a teoria do dossel é de fato a mais divertida). Religiosos moderados vão obviamente dizer que essas passagens não devem ser tomadas literalmente, mas interpretadas segundo alguma linha que tornam a Bíblia compatível com o que nós sabemos da realidade, inclusive evolução.

Crônicas de Nárnia: Cosmologia
fortemente influenciada por
mensagens cristãs.

Eu não tenho um problema com isso, na verdade. Tratando a Bíblia como um livro qualquer, não existe nenhum motivo para imaginar que as narrativas do Gênesis devam ser tomadas literalmente. São textos fortemente carregados de conteúdo poético e, aparantemente, copiados de diversas fontes distintas para construir uma narrativa com a intenção de passar uma mensagem. Não acredito que o Gênesis tenha sido construído para dizer como o mundo é e como ele foi criado, mas mais para dizer como o que existe e o que todos entendiam como a realidade era obra da intenção divina (com umas e outras mensagens subliminares escondidas). Nada diferente do que cristãos fazem hoje em dia.

Porém me parece que alguns ateus não aceitam isso de forma tão simples. Muitos deles parecem exigir que a única interpretação bíblica válida é a literalista (e, sim, literalismo é uma linha de interpretação), e que essa interpretação é a intenção dos autores (presumidamente o Deus bíblico, no caso). Porém, como uma prima minha me ensinou recentemente, você tira de um livro o que suas limitações permitem que você tire. Não há necessidade alguma de que a intenção do autor guie a sua capacidade de assimilação de uma obra literária ou filosófica. Eu não sou obrigado a virar religioso apenas porque li “Crônicas de Nárnia”, apesar de existir um componente fortemente religioso nas ideias de C. S. Lewis (que era, por sinal, um apologeta cristão). E sim, muitas linhas de crítica literária rejeitam a ideia de intenção autoral como sendo relevante.

Vida de Pi e Contato: livros falam de religião,
mas não demandam que o leitor chegue a uma
unica conclusão


O significado de muitas obras (não apenas literárias, mas artísticas) emergem da interação da obra com o observador. Obviamente a obra é influenciada fortemente pelas ideologias e ideias do autor, porém isso não restringe a interação com o receptor da obra. Adicionalmente, nem sempre o que o autor pensa sobre o assunto determina a conclusão do leitor. Podemos ver isso claramente em filmes/livros como Contato e A vida de Pi. Nenhuma conclusão sobre teísmo/ateísmo é obvia nem necessária a partir desses textos, porém ambas são possíveis. A intenção dos autores não podem ser de passar uma mensagem ou outra, pois não podemos ser ateus e teístas ao mesmo tempo, mas sim de fazer pensar sobre um assunto, no caso religião.

Eu entendo a resistencia em aceitar interpretações não-literais da Bíblia por parte de muitos ateus, pois já senti ela. Afinal, interpretação literal da Bíblia foi o que me expulsou do cristianismo, e eu adoraria acreditar que eu estava sendo lógico e racional quando isso aconteceu. Mas isso é uma ilusão: eu tinha 12 anos, o quão racional essa escolha pode ter sido? Fora isso, acredito que parte da resistência de se admitir a possibilidade de interpretações não-literais venha da ideia de que isso abre a porta para que qualquer interpretação seja feita. Mas isso também não é verdade: a interpretação de que o Gênesis dá a sequência do surgimento evolutivo das espécies na Terra é claramente equivocada, assim a de que Adão e Eva foram os primeiros Homo sapiens. Ou seja, é possível estabelecer que algumas interpretações são falsas e outras não.

Até onde vejo, exigir que religiosos moderados aceitem o literalismo como “única posição intelectualmente honesta”, apenas para criticar essa posição é tentar encaixar uma pessoa em um estereótipo que seja fácil de ser atacado. Não é apenas uma falácia, como é preconceito. Então… vamos parar com isso, que tal?

Sério.

Porque a síntese evolutiva não é uma festa do pijama – Uma resposta zangada a um anti-darwinista

Bom, eu já havia previsto que isso iria acontecer em algum momento.

Já a alguns meses venho acompanhando uma discussão no Research Gate (link para me seguir lá aqui) sobre as alternativas ao neo-darwinismo para a compreensão da evolução biológica. Como esperado, essa pergunta foi um imã de criacionistas, com a participação especial do nosso querido Enésio, falando o que ele sempre fala: em algum momento no futuro não-tão distante será lançada uma nova síntese evolutiva, que não será “selecionista” e blablabla. Só faltou a distinção entre fato, Fato e FATO, ou seja lá qual é o chavão que ele sempre usa.

Mas esse não é exatamente sobre o que quero falar no momento. Meu problema principal com essa discussão tem sido com o Dr. Emilio Cervantes, que até onde pude notar é um pesquisador daqui da Argentina, que parece ser algum tipo de botânico*. Desde o começo da discussão, ele tem batido na mesma tecla: neo-darwinismo está errado porque se baseia em um “fantasma semântico”, que é seleção natural. E o porque isso, exatamente? Oras, porque a natureza não tem uma mente para selecionar, logo o termo é contraditório. Obviamente, os criacionistas de plantão bateram palma, sem notar que a ausência de uma mente selecionadora na natureza não é lá uma coisa muito boa para o criacionismo. Ademais, segundo o Dr. Cervantes, Darwin confundiu criação de variantes domesticadas com o que acontece na natureza, e isso fere mais ainda a ideia de seleção natural como tendo qualquer significado.

Enfim, não entrarei em detalhes do resto da discussão, mas colarei abaixo minha última resposta. Em seu comentário anterior, depois de ignorar minhas respostas ou responde-las com ad hominem, Dr. Cervantes alega que é necessário testar a evolução de grupos caso-a-caso, e que não existe uma teoria que explica tudo em biologia. Eu concordo com esses pontos, mas discordo do discurso que ele apresentou. Acho que a minha resposta em si explica muito do que eu penso sobre o assunto e talvez resuma minhas impressões do debate, e da posição anti-darwinista do Dr. Cervantes.

Sem mais delongas:


Bom, eu na verdade concordo com isso, mas por motivos completamente diferentes.

A síntese evolutiva não foi uma festa-do-pijama entre paleontologos, taxonomistas e geneticistas, onde eles calharam de deixar os embriologistas de fora porque eles eram meio estranhos, e na qual eles decidiram “Puxa vida! Vamos apenas dizer que tudo funciona bem em conjunto e ver se cola”.

Ela foi uma unificação precisa de duas teorias (genética mendeliana e neo-darwinismo, sensu Weismann) através dos desenvolvimentos teóricos de genética de populações, e o entendimento de que essas teorias eram consistentes com o que se observa na natureza (incluindo o registro fóssil). Ela não é uma coleção de narrativas adaptacionistas não-testadas, como muitos dos críticos E defensores da síntese costumam acreditar.

O outro lado da moeda é que, sendo um corpo de conhecimento teórico especifico, ele só se aplica em casos nos quais suas premissas são verdadeiras. Então, ela não é onipotente, e todo mundo que usa esse arcabouço teórico sabe para que ele serve, como testar previsões com ele e que tipo de dado é necessário para que ele possa funcionar. Quando premissas e demandas teóricas falham, o mesmo ocorre com a teoria.

E é verdade que provavelmente não existe uma teoria unificadora em biologia. Por exemplo, qualquer teoria de ontogenia não vai se aplicar a organismos sem ontogenia, como bactérias. Mas isso não significa que teorias ontogenéticas são desprovidas de valor, longe disso. Ela explica o que ela pode de fato testar em cenários que se adequam à suas premissas.

O poder da síntese é ter premissas gerais como “herança genética mendeliana”, algo que é verdade para bactéria e para humanos. Mas fora isso, esses dois grupos diferem em quase tudo (ex: bactéria tem consideravel transferencia genética horizontal, humanos são diploides, etc) o que nos faz reconhecer que talvez existam mais premissas que podem ser incluidas em nossos modelos para melhorar seu poder explanatório.

Geralmente, todos os proponentes da síntese estendida não estão chamando por uma rejeição da síntese evolutiva. O que eles estão fazendo é chamar para a inclusão de mais fenômenos que não se adequam aos modelos clássicos. Essa inclusão não é apenas “vamos simplesmente colocar tudo nos livros texto e encerrar o dia”, mas o desenvolvimento teórico que está voltado à integração da síntese com esses fenômenos  Alguns são relativamente fáceis de integrar, como topologias adaptativas multidimensionais e construção de nicho, outras não são tão fáceis, como ontogenia. Se isso mudar nossas equações e previsões teóricas, que assim seja! Mudança baseada em evidencia é melhor que estagnação por negação de evidencias. Conscientização para essas questões é importante, iconoclastia má-orientada não.

E, não importa o que façamos, qualquer teoria vai ser necessariamente limitada. Mesmo que nós achemos um modelo que seja útil para todas as espécies que tenhamos estudado, existem potencialmente centenas de milhares mais que ainda não descobrimos, muito menos estudamos. As recentes estimativas são que conhecemos apenas 13% da biodiversidade presente. Jogar fora qualquer teoria biológica porque ela tenta ser ampla e defender o estudo de casos isolados é, na melhor das hipóteses, contraditório no presente contexto.

Mas, se o ponto é mesmo que “seleção natural” é um conceito vazio, então eu sugeriria direcionar a sua análise semântica para temos como “buracos negros” (que não são nem buracos, nem negros), o uso de “evidente” em matemática (nada que é evidente precisa de demostração) e “afinidades” em química (elementos não tem preferências). Na verdade, esse ultimo exemplo foi levantado por Darwin, quando a mesma objeção que você levantou chegou a ele: que seleção natural era contraditória, porque apenas criadores podem selecionar. Palavras podem ter mais de um significado e, sim, isso pode ser confuso (veja a ambiguidade do termo “singularidade” e “Big Bang” em cosmologia). Isso é tudo verdade. Mas dizer “por isso elas estão erradas”, é falacioso.

Darwin também apontou que sua idéias foi derivada da observação de criadores, mas ele dispendeu uma grande quantidade de páginas explicando como isso poderia ser atingido na natureza, e é ai que dinâmicas Maltusianas entrem na jogada. A relação entre seleção natural e artificial é, para mim, evidente partindo de uma leitura do Origens das Espécies. É uma relação de analogia, e não de identidade. Os principais filósofos da evolução parecem concordar comigo.

Nós podemos ter uma discussão produtiva sobre o uso de termos, e quais seriam os melhores de serem usados. Isso é difícil, pois linguagem é uma coisa complicada. Ela evolui por si próprio. Mas nós tivemos sucessos moderados com termos como “macaco” e “mais evoluído”. Mas termos e teorias são coisas diferentes.

Resumindo, sim, nós devemos ser específicos sobre o que nós estamos falando e tornar bem claro o que a teoria sintética é, o que ela deve explicar e o como ela faz isso. Na prática, isso deve levar a mais cautela no pronunciamento de afirmações não-substanciadas sobre adaptação (ou sobre qualquer outra coisa), e isso é bom. Pelo menos é isso que espero.


* Quando comentei o caso para um colega, que permanecerá inominado, ele comentou “aposto meu pinto que ele é ecologo ou botanico“. Não é preciso dizer que ele manteve o pinto dele.

Referência

Mora, C., Tittensor, D., Adl, S., Simpson, A., & Worm, B. (2011). How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biology, 9 (8) DOI: 10.1371/journal.pbio.1001127

Criacionistas: Proponham ou Calem-se

Segue abaixo um video do antigo usuário do youtube cdk007. Nele, ele convida os criacionistas a enviarem artigos científicos revisados por pares que corroborem suas crenças criacionistas. A idéia é, acima de tudo, tentar desmistificar a noção de que a ciência é uma conspiração atéia com o objetivo de avançar algum tipo de ideologia naturalista, anti-menino Jesus, mas sim é uma área séria e sistemática. Não é a festa da uva, onde qualquer um pode se safar dizendo “é apenas minha opinião”.

Cruzei com esse vídeo a primeira vez a tempos, durante a época de discussões no orkut com criacionistas. Na ocasião, um criacionista dizia ter um teste científico em favor do criacionismo, e o vídeo me pareceu extremamente adequado.

Na época ainda adicionei uma proposta minha. Visto que muitos criacionistas acreditam que existe uma conspiração ateia na ciência, eu me comprometi em facilitar o contato de criacionistas tupiniquins com agencias internacionais que financiam (ou pelo menos dizem financiar) pesquisas que tem como o objetivo demonstrar o criacionismo (como o Discovery Institute) ou que tentam integrar aspectos religiosos na ciência (como a Templeton Foundation). Não que eu ache que nada disso é de fato necessário: um criacionista comprometido conseguiria descobrir instituições nacionais que apoiam esse tipo de empreitada e que seriam muito mais comprometidos com os interesses dos criacionistas. Mas a oferta ainda é válida e por isso reitero ela.

Segue abaixo o video e uma transcrição do conteúdo.

Caros Criacionistas,

Ultima vez que conversamos, eu lhes acusei de, acima de tudo, desonestidade intelectual.


Eu disse que vocês não tem nada a oferecer à comunidade científica. No entanto, muitos de vocês continuam a afirmar que não há provas diretas e verificáveis que a Evolução está errada e a Criação está correta: vocês tem alegado que a sua religião não é baseada em fé, mas em provas reais e irrefutáveis.


Vocês afirmam ter provas, bem, aqui está a sua chance: nós somos todos ouvidos.

Ao longo dos anos, seus sites, videos e livros ofereceram centenas, senão milhares de argumentos supostamente em favor da criação e contra a evolução. A unica regra pela qual vocês tem jogado é que vocês assumem que estão corretos até que todos os seus argumentos sejam provados falsos.
Nós mostramos evidências contra argumentos de 1 a 10, vocês oferecem o argumento 11. Nós mostramos evidências contra o argumento 11, vocês oferecem o argumento 12. Com uma quase ilimitada pilha de ignorância de onde constroem seus argumentos, esse processo pode continuar indefinidamente. Mesmo se refutassemos um milhão de argumentos que poderiam ser construidos, vocês ainda assim não aceitariam a derrota, e sim vocês poderiam construir o argumento um milhão e um.
Sendo assim, proponho o seguinte: Vocês afirmam ter provas, observações irrefutaveis, razões lógicas sólidas. Bem, se isso é verdade, então certamente um argumento, apenas um dos milhares que foram propostos poderia sobreviver ao processo de revisão por pares.

O que é revisão por pares? É um processo pelo qual os especialistas de um campo, as pessoas mais qualificadas para avaliar um trabalho, anonimamente revisão revisam um manuscrito antes de sua publicação. É a “revisão por pares” perfeita? Não. Mas pelo menos é um filtro que separa o lixo sem sentido de coisas que provavelmente são verdade.

Na ciencia dizemos “Publique ou morra!”. Todas as ideias devem ser capazes de passar pela revisão por pares ou devem ser descartados. Então, ao invés de copiar e colar o Answers in Genesis, citando Ken Ham, ou “linkando” para o museu da criação, eu peço para um unico trabalho revisado por pares que sustenta a criação e desmente a evolução. 

Agora eu já posso ouvi-los reclamando que a ciencia é uma gigantesca conspiração de ateus odiadores de Deus que esconde todas as evidências contra a evolução. Sim, isso mesmo, uma conspiraçào envolvendo milhoes de pessoas, de todos os países, culturas e religiões, que se estende por mais de um século no passado…

Apenas no meu laboratório temos 3 auto-proclamados cristãos, um judeu, um muçulmano, um sikh dentre 10 indivíduos. Realmente não soa como um bando de ateus odiadores de Deus para mim.
Mas tudo bem, se você ainda quer alegar que nenhum dos seus trabalhos podem passar a revisão por pares por que um auto-proclamado grupo religiosamente diverso de pessoas são, na verdade, todos ateus enrustidos, tudo bem! Eu vou aceitar no lugar de um artigo revisado por pares, um manuscrito que foi apresentado e rejeitado acompanhado pelos comentários dos revisores e editores da revista
De-me o melhor que você tem. Você não pode afirmar que há uma conspiração se nunca submeteu um artigo pra começar. Uma vez que eu receber um artigo revisado por pares, ou um manuscrito rejeitado com comentários dos revisores eu vou linkar para ele na descrição do vídeo.

Vocês são os que clamam ter provas, então Proponham, ou Calem-se.

Se vocês quiserem que suas ideias sejam respeitadas, você precisa jogar segundo um conjunto de regras justas. Até lá, irei continuar a refutar cada argumento criacionista, um por um. Vou continuar a trazer verdadeiros resultados científicos para um forum público. vou continuar a encoraja as pessoas a fazer aquilo que vocês mais temem: Pensar.

Nota: infelizmente o cdk007 parou de produzir videos, mas a sua lista disponível na internet é bastante completa e muito bem referenciada. Vale a pena assistir.

Crivella, criacionista “arroz-com-feijão”, tenta criticar a evolução e acaba criticando sua própria religião.

Desde que foi nomeado, foram levantados vários alertas para o fato de que ministro Marcelo Crivella (PRB-RJ), membro da bancada teocrática, talvez fosse uma péssima escolha para gerir um ministério da pesca. O video abaixo, que mostra Crivella falando sobre a teoria evolutiva, demonstra que tais preocupações estavam corretas.

Criacionista, Crivella filosofa sobre origem da ameba

A passagem é tão recheada de erros-por-minuto que proponho a criação de uma métrica: o Crivella. A seguir transcrevo na integra a fala para que possamos apreciar toda vossa regurgitância:

Há 150 anos, o inglês naturalista, Charles Darwin, propôs uma teoria na qual haveria, segundo ele, a evolução de todos os seres vivos a partir de uma ameba.

Bom, talvez não todos os seres vivos, apenas organismos pluricelulares e alguns unicelulares. Nem estou certo de que a ameba (ou um ancestral dela) foi proposta por Darwin como ancestral comum de toda a vida. O que ele colocou foi que a vida na terra teria uma ou poucas formas de vida originais. Visto que Darwin tinha alguma idéia de filogênese e da possibilidade do aumento da complexidade por seleção natural, é justo assumir que ele tinha em mente algum tipo de organismo unicelular mais primitivo que bactérias atuais. Definitivamente algo diferente de uma ameba.

E de que as especies iriam não só evoluir no seu gênero, mas também criar novas espécies. Ele falava também em uma transformação evolutiva de invertebrados para vertebrados. Todas essas teorias no mundo científico foram debatidas em 150 anos. Não passam de teorias.

Mas é obvio que não passam de teorias. Afinal, é uma das teorias mais bem corroboradas da ciência. A unica coisa que ela poderia ser, se não uma teoria, é uma hipótese descartada.

Infelizmente pessoas em geral, e criacionistas em especial, acreditam que existe uma progressão de idéias cientificas, que começam como teorias (ou hipóteses) e, se são comprovadas, evoluem para leis. Essa noção não poderia estar mais distante da realidade. Em ciência, uma teoria não é uma “mera especulação”, mas um conjunto teórico de postulados, modelos e hipóteses destinados à explicar e estudar um certo tipo de fenômeno natural. E são dentro das teorias que as leis se encaixam: como modelos formais (não necessariamente matemáticos, apesar dos mais conhecidos serem) que buscam explicar algum aspecto abordado por aquela teoria, como o movimento de objetos ou a herança de caracteres. Se existe algum tipo de hierarquia, leis estão subordinadas às teorias.

E portanto, sr. Presidente, não há provas conclusivas de que haja qualquer indicio na natureza de que uma espécie possa gerar outra espécie. Se a teoria de Darwin fosse uma realidade, teria o consenso da comunidade científica, como tem as leis de Newton. Ou as leis de Einstein, mais recentemente.

Mas ela tem consenso na comunidade científica: seus detratores ou são pesquisadores de outras áreas não correlacionadas (medicina, matemática, engenharia, filosofia) ou são uma minoria de biólogos que não trabalham na área de diversificação da vida. Ou sequer pesquisadores são.

Mas ciência não é concurso de popularidade. Mesmo que apenas um indivíduo discordasse, e apresentasse conclusões sólidas para sua discordância, a ortodoxia científica iria ter que mudar. Porém não é isso que acontece: Não existem publicações científicas que refutem a teoria evolutiva moderna e, mesmo os seus detratores mais radicais (dentro da área) propôem apenas a emenda da teoria com novos processos evolutivos que melhorem nossa compreensão da diversificação da vida.

Esse consenso, que o ministro ignora existir, não é o que causa a aceitação da teoria científica no meio acadêmico. É o fato de que a evolução é uma teoria sólida, com 150 anos de corroboração, que a torna quase que predominantemente aceita. É o reconhecimento do valor científico de uma ideia, e não uma posição ideológica.

Ironicamente, o exemplo dado pelo ministro de leis [sic] que são predominantemente aceitas, as Leis de Newton, não são mais predominantemente aceitas, pelo fato de que foram substituidas pelas teorias de Einstein.

Ela também é uma lei que depende das pessoas acreditarem em um milagre. Porque o surgimento da vida a partir de uma ameba, traz o primeiro questionamento: “e a ameba, surgiu da onde?” 

Se entendo corretamente o que o ministro quer dizer, ele está sugerindo que o surgimento da vida só pode ser explicado por um milagre, fato que é necessário para se aceitar a teoria evolutiva. Mas essa linha de raciocínio me intriga profundamente. Afinal, se todo sistema de crenças que necessite da crença em milagres é, de alguma forma, invalido, o que diríamos de um que pregue que o filho de Deus veio a Terra, se sacrificou e ressuscitou dos mortos? Devemos acreditar que o ministro repentinamente virou ateu, ou que talvez ele não tenha parado para pensar antes de abrir a boca?

A insistência de criacionistas em tentar transformar ciência em religião é sintomática. É uma admissão freudiana de que há algo fundamentalmente errado na forma que eles pensam mas, tudo bem! Desde que todos pensem de formas fundamentalmente erradas também, todos podemos sair por ai nos sentido justificados em nossas crenças. Não é apenas uma evidência de negação psicológica: é uma ode à ignorância.

De qualquer forma, essa é uma questão totalmente fora do escopo da teoria evolutiva. Afinal, evolução trata sobre a diversificação da vida, não da sua origem, assim como a teoria de gravidade não trata de sua origem, apenas de sua mecânica.

Ora, e se a doutrina do evolucionismo está correta, se um gênero se transforma em outro, e a natureza assim evolui, porque não se encontrou até hoje um fóssil sequer, em que seja metade anfíbio e metade ave, ou peixe? Ou um fóssil sequer que traga características metade homem, metade macaco? Aonde está esse elo perdido?

Mas tais fósseis foram achados! Na verdade a transição entre anfibios e aves não necessita sequer de fósseis, pois temos grupos vivos que são transicionais entre esses grupos: os lagartos e, principalmente, os crocodilos. De qualquer forma, temos uma infinidade de dinossauros (transição répteis-aves), tetrapodas basais (transição peixe-anfíbio) e uma multitude de interemediários meio-homem, meio-macaco que o ministro tão indignadamente demanda, sendo que inclusive falei em outro post sobre o mais recente deles: Ardi. É óbvio que o ministro, assim como a maioria dos criacionistas, conhecem esses fósseis, e sabem que eles são considerados transicionais. Eles sabem, mas negam de qualquer forma.

Tal festival do absurdo não é exatamente surpreendente. Afinal o ministro é evangélico pentecostal, o que torna a probabilidade dele ser criacionista um tanto quanto mais elevada. Seu comando sobre o ministério da pesca seria preocupante, visto que evolução desencadeada por pressão de pesca é um problema real para os estoques naturais de peixes. Não apenas isso: o ministro demonstra não entender nada de ciência. Porém o histórico do ministério e a recente nomeação do ministro apenas sustentam minhas suspeitas que ele (o ministério) não passa de mais um cordeiro político que foi sacrificado na tentativa de apaziguar a bancada teocrática.

Alias, 1 Crivella = 5 erros/minuto.