Alguns números sobre a reforma da previdência

Shot008_thumb[2]

Há alguns dias eu divulguei o texto O que não te contaram sobre a Reforma da Previdência que apresentava algumas avaliações sobre os possíveis impactos da nova reforma da previdência. Uma das conclusões desse artigo que mais me chamaram a atenção está representada na figura abaixo, no qual o autor mostra que, se a idade mínima de aposentadoria fosse a proposta pelo governo (65 anos), brasileiros teriam aproximadamente 6 meses de vida saudável após a aposentadoria, enquanto os demais países usados como comparação teriam em média 6 anos.

 

1-D3jKZEYgu153F7tJLbzoUg

Porém algumas pessoas levantaram em resposta a esse texto, inclusive na sessão de comentários do artigo, que esta conclusão estava equivocada por se basear na expectativa de vida média com saúde chamada HALE (uma modificação da expectativa média ao nascer). O argumento é que, para saber quanto tempo de vida uma pessoa vai ter aposentada, o que importa é a expectativa de vida média na idade da aposentadoria, e não a no nascimento, que está influenciada por diversos fatores, como por exemplo moralidade infantil e morte na juventude em decorrência de violência.

E sim, de fato o Brasil é um dos países com mortalidade infantil mais elevada, o que parece impactar negativamente a expectativa média ao nascimento. No gráfico abaixo eu mostro a relação entre a expectativa de vida ao nascimento contra a expectativa de vida aos 65 anos (também chamada de expectativa de sobrevida) e é fácil ver que Brasil, Rússia e México tem uma expectativa de sobrevida muito superior a o que é esperado pela sua expectativa de vida ao nascimento.

exp
Relação entre expectativa de vida (ao nascimento) e expectativa de sobrevida (aos 65 anos). Reta representa uma regressão por quadrados mínimos ignorando os países mais divergentes (Rússia, México e Brasil).

 

Então me parece que, se “o que importa” é de fato a idade ao se aposentar, então deveríamos observar e comparar o Brasil em relação a outros países que tem aposentadoria minima de 65 anos e qual é a taxa de sobrevida média desses países e tirar daí nossas conclusões. Nos gráficos abaixo eu compilei a taxa de sobrevida aos 65 anos dos países da OCDE (os mesmo usados para justificar a proposta do governo) que fixaram a idade mínima de aposentadoria aos 65 anos .

plot_zoom_png
Expectativa de sobrevida de homens em países da OCDE que apresentam idade mínima de aposentadoria aos 65 anos.
plot_zoom_png-1
Expectativa de sobrevida de mulheres em países da OCDE que apresentam idade mínima de aposentadoria aos 65 anos.

Observando esses gráficos podemos observar duas coisas principais. 1- Dentro dos países escolhidos como critério de comparação, o Brasil se encontra entre os com taxa de sobrevida mais baixa. 2- A taxa de sobrevida é de 16.6 anos para homens e 19.7 para mulheres. Ou seja, enquanto é verdade que, uma vez que você se aposente, você vai ter mais de uma década e meia de sobrevida, o Brasil ainda está dentre um dos piores países com regras similares para a aposentadoria.

Se observarmos o caso dos homens (que apresenta muitos mais pontos de comparação, visto que a maioria dos países admite idades distintas para homens e mulheres), vemos que o Brasil se agrupa com países como México e Chile, o que me parece esperado visto que são ambos países latino-americanos com mais similaridades geopolíticas conosco do que os demais países listados. Vale também notar que essas diferenças são pequenas e que, para ambos os sexos, a expectativa de sobrevida brasileira difere da média em 1.25 anos para homens e 1.35 anos para mulheres.

Então, ao menos desse ponto de vista, não parece que a reforma da previdência é particularmente danosa, principalmente de quem já ganha o benefício mínimo. Porém me parece que um dos maiores receios das pessoas está na ideia de que você vai morrer sem se aposentar, e os dados expostos acima não resolvem essa questão. Afinal, se você já se aposentou, você está fora da demografia para qual esse medo é uma realidade. Me parece que uma avaliação mais precisa dessa questão deva ser feita não confrontando expectativas de vida, mas quantas pessoas de fato morrem antes de atingir 65 anos e que antes poderiam se aposentar. Se usarmos a idade média de aposentadoria no brasil como parâmetro (59 anos), vamos que entre a faixa etaria de 55-59 anos e a de 65-69 anos temos uma perda de aproximadamente 2 milhões de homens e 2 milhões de mulheres, o que totaliza 2% da população. Porém, isso é um cenário extremamente pouco conservador, visto que a maioria dos brasileiros já se aposentam por idade e não por tempo de contribuição. Se considerarmos apenas os aposentados por tempo de contribuição (que se aposentam em média com 55 anos), esse valor seria reduzido para menos de 1% da população. Esse valor é alto? Dificil dizer. Obviamente é má notícia para as pessoas diretamente afetadas, mas está longe de ser catastrófico.

Enfim, o que tudo significa? Que a reforma proposta pelo governo é a melhor possível? Provavelmente não. Mas também não significa que todo argumento em favor ou contra ela é automaticamente bom.

 

“Rolezinho” e os Zumbis de Romero

zumbisnoshopping
Zumbis no shopping.

Zumbis sempre me intrigaram. Ao mesmo tempo que aparentam ser humanos, nada em seu comportamento evidencia isso: são maquinas de matar e comer incessantes, com preferencia especial pela carne humana. São monstros, pura e simplesmente, sem nenhum tipo de sentimento, exceto fome.

Dentro da escala de “coisas que podemos matar sem nenhum tipo de paradoxo moral”, zumbis provavelmente encabeçam a lista. Os jogos de videogame e filmes notaram isso rapidamente. Zumbis nutrem nossa necessidade por violência justificada: você pode explodir a cabeça de um zumbi sem remorsos, mas um vilão, mesmo o pior de todos, pode receber um pouco de compaixão. Afinal, como diria o Batman: “Escória, mas até escória tem família“.

620L
Batman não mata, nunca.

Mas o que isso tem a ver com os “rolezinhos”? Bom, hoje cedo fui ler o editorial na Folha da Elaine Cantanhede, no qual ela aponta diversos paralelos entre os “rolezinhos” e os protestos do ano passado contra as tarifas de ônibus. Ela aponta, entre outras coisas, que antes falávamos de um movimento de classe média politizada (de certa forma) e que, após ser reprimido, explodiu nacionalmente. Segundo Cantanhede, os “rolezinhos” são um movimento análogo, motivados pela alienação dos jovens de classe baixa do mundo consumista e ostentador, exemplificado na figura dos shoppings centers. O ponto central, eu acho, é que a não-compreensão das vontades dos indivíduos em ambos os casos levou a uma atitude do governo que só piorou as coisas, e isso falou diretamente para mim. Apesar de estar envolvido nos protestos contra o aumento das tarifas, e “entender” o movimento, eu não entendo o “rolezinho”. Eu estou de fora. E isso me lembrou de Romero.

George A. Romero é um dos meus maiores ídolos. Foi ele que concebeu essa idéia de zumbi que temos hoje em dia: sem mente, faminto, meio morto e em decomposição, que se arrasta lentamente atrás de suas vitimas. Esse conceito foi lançado inicialmente em seu filme “A Noite dos Mortos-Vivos”, um filme que chocou uma geração ao subverter a narrativa padrão de filmes de terror: “monstros aparecem, matam todo mundo, menos o herói, que mata os monstros e foge com a mocinha”. Não… nada termina bem. Sabe aquele tema comum em histórias de Zumbis, no qual os zumbis são ruins, mas são os humanos que te ferram no fim? Então, Romero começou isso, nesse filme.

Romero ainda explorou outros aspectos da idéia dos zumbis: sendo essas máquinas inumanas de matar, é impossível entender suas vontades (se é que eles tem alguma). Você só precisa se defender, matando de preferência, sempre lembrando que eles não são “gente como a gente”. Em “A Noite dos Mortos-Vivos”, os sobreviventes se escondem em uma casa de subúrbio americano (aqueles bairros onde a classe média vai para fugir da “violência da cidade”), mas na sequência, “A Madrugada dos Mortos-Vivos”, eles se escondem em um Shopping Center. E foi nesse filme que finalmente entendi a mensagem: enquanto a minoria privilegiada se esbanjava dentro do Shopping, a multidão faminta apenas olhavam pelas grandes vitrines. Mas Romero adverte: o equilíbrio é instável. Uma hora a pressão é grande, as portas quebram e os mortos invadem.

E eles invadiram.

Qual a constitucionalidade do “Dinheiro Laico”?

Para quem ainda não sabe, o Ministério Público Federal está movendo uma ação para a remoção do dizer “Deus seja louvado” das cédulas de real. O principal argumento da ação é sobre a laicidade do estado, e como o estado não pode dar preferências para nenhuma religião, mesmo que seja um conjunto de religiões. Segundo o trecho da ação:

Imaginemos a cédula de real com as seguintes expressões: ”Alá seja louvado”, ”Buda seja louvado”, ”Salve Oxossi”, ”Salve Lord Ganesha”, ”Deus Não existe”. Com certeza haveria agitação na sociedade brasileira em razão do constrangimento sofrido pelos cidadãos crentes em Deus.

Ou seja, a ideia é: faça com os outros o que gostaria que fizessem com vocês. Soa familiar, não?

De qualquer forma, tal ação foi rejeitada em primeira instancia pela juíza Diana Brunstein, da 7ª Vara Federal Cível de São Paulo. Na sentença, a juíza diz que a afirmação de que a frase seria uma afronta à liberdade religiosa e a laicidade do estado

não veio acompanhada de dados concretos, colhidos junto à sociedade, que denotassem um incômodo com a expressão “Deus” no papel-moeda.

Achei muito curiosa essa colocação, visto que sabia do abaixo-assinado proposto pela LiHS após a primeira rejeição da ação (falo um pouco sobre isso aqui). Não tardou e a LiHS resolveu reiterar a existência do abaixo assinado, para que possamos assim juntar massa crítica o suficiente para que sejamos ouvidos. Eles convocaram blogueiros, vlogueiros e grupos seculares para ajudar na divulgação (atualização: convocação ignorada, aparentemente, pela ATEA). Como apoio a ideia desde que foi inicialmente rejeitada, fica aqui registrado meu endosso. Para assinar a petição, clique na figura abaixo ou aqui.

Mas tem uma coisa que me tem incomodado bastante nessa história, e ela se refere a relação entre a laicidade do estado e o dizer na nota. Apenas para deixar claro, vamos ver o que seria exatamente a laicidade do estado. Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 19

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

II – recusar fé aos documentos públicos;

III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Até onde sei, é esse artigo que é usado para estabelecer o estado brasileiro como sendo laico.

A pergunta é: como o dizer na nota fere o primeiro item do artigo 19 da constituição? Na minha opinião não parece ferir, ou se fere, fere muito pouco. Notem que a linguagem do artigo não parece focar em discurso ideológico, mas em práticas. Então fica a minha pergunta para os que acreditam que o dizer fere o principio constitucional: como? Acho que é uma pergunta justa e que merece resposta. Não nego que o “Deus” da nota é o Deus judaico-cristão, e que isso denota uma preferencia em detrimento de não-religiosos, por exemplo. Mas como isso estabelece um culto, ou subvenciona eles ou estabelece uma relação de dependência ou aliança? Que evidencias nós temos de que isso acontece através dessa frase?

Isso não quer dizer que um estado laico pode (ou deve) expressar preferencia por um segmento religioso da sociedade, não é isso que estou dizendo. Apenas estou colocando que essa defesa em particular do estado laico não parece ter respaldo constitucional.

Então, porque defender a remoção? Bem, primeiro porque a constituição não foi divinamente inspirada (sic). Ela pode ser imperfeita, incompleta e mesmo estar errada. O principio da laicidade, em um sentido mais amplo, pode não estar completamente incluido na constituição, mas isso não significa que o princípio não tem valor.

O outro ponto é mais pragmático: a questão pode ser um termometro para a aceitação social de argumentos laicos no cenário publico. Se um caso aparentemente tão irrelevante for indeferido, então talvez ainda estejamos em um ambiente bastante inóspito para o secularismo. Por outro lado, se obtivermos uma vitória, isso pode abrir precedentes (e talvez, jurisprudencia?) para casos mais relevantes no futuro.

Então… assine a petição e dê uma forcinha para o estado laico.

Qual a política do politicamente incorreto?

A muito tempo essa história de “politicamente (in)correto” vem me incomodando. Desde que ele começou a ser usado rotineiramente por comediantes, ou em associação a esses comediantes, eu não pude deixar de ficar com um gostinho ruim no fundo da boca. Afinal, eu associava ser “politicamente incorreto” com trasngressão do status quo. Tanto foi que, até antes mesmo de saber o porque do debate, eu fui inadvertidamente me associando com os defensores do politicamente incorreto: afinal, transgressão do status quo político sempre me soou algo muito atraente e válido.

Para meu horror, no entanto, eu vi que o que era chamado de “politicamente incorreto” era uma reafirmação do direito de ofender minorias, enquanto o “politicamente correto” se associava a rejeição desse discurso. Tinha algo muito errado nessa história, e eu não conseguia identificar  o porque disso.

Bom, isso até hoje de manhã.

Lendo mais uma vez o Trials of the Monkey (sim, eu sou um leitor esporádico e muito lerdo) me deparei com a seguinte passagem, na qual Matthew Chapman está comentando sobre suas frustrações como roteirista de Hollywood:

“Mesmo sem McCarthy, 95% dos filmes de Hollywood são no máximo sentimentais, no mínimo violentos e sentimentais. Na nação mais tecnologicamente avançada do mundo, um número extraordinário de seus habitantes é também trivialmente supersticioso como cartas de tarot. Existem filmes duros, não-sentimentais, caricaturas noir, mas seu cinismo é superficial, apolítico, um exercício de estilo que não desafia nada. Uma minúscula porcentagem dos filmes lida com assuntos complexos, mas quase sempre chega a conclusões aceitavelmente sentimentais e politicamente corretas. (…) Sugira que pode ter algo distorcido e brutal no paraíso capitalista, e não importa o quão dramática e convincente sua história é, você vai conseguir escutar a descarga do banheiro antes de você conseguir dizer adeus, e a coisa mais importante que você pode aprender é que um FINAL FELIZ é quase que mandatório. Quanto mais ousado você é em inspecionar os cantos mais feios da Vida Americana, mais é importante que você tenha um FINAL FELIZ ou pelo menos -com licença enquanto vomito- um final que sugira que a vida vale a pena. Tragédia, uma forma de drama que funcionou perfeitamente pelos últimos dois mil anos, é absolutamente tabu, e você não deixar de pensar o porque disso. Porque a nação mais rica e poderosa do mundo é tão insegura ao ponto que qualquer coisa remotamente crítica ao status quo é tão bem vinda quanto alguém vomitando sangue em um comercial de cigarros?”

E na minha concepção, isso é o que sempre foi ser politicamente correto. É o filme de terror (ou melhor, splatter) que todos os comportamentos considerados errados (a fornicadora, o medroso, o drogado) são mortos em decorrência direta ou indireta de seus pecados (sic), como quem diz “Viu? Quem faz sexo antes do casamento tem uma chance muito maior de ser morto por um palhaço-demônio com um gancho no lugar da mão”. Ou o filme de ação onde o vilão é o arquétipo do cientista maluco (ou engenheiro maluco) e o herói é o bom-moço do interior, simples, estóico e verdadeiro aos princípios de livre-comércio e completamente ignorante. É o filme onde o feio nunca é o herói, onde a mocinha é sempre salva, onde o gordo é sempre o alivio cômico, onde o vilão é um nazista, ou um russo ou um muçulmano. É o entretenimento fácil, que preda nossos preconceitos mais primitivos. “Ainda bem que sobreviveram um mocinho e uma mocinha. Agora eles podem repovoar o mundo, depois que todos forem mortos pelo palhaço.” Melhor ainda se eles forem cristãos neo-pentecostais e loiros.

E, nesse caso, eu não vejo outra alternativa a não ser me posicionar como “politicamente incorreto”, pois identifico o alinhamento político e ideológico por trás dessas ideias e me oponho, mesmo que seja em um assunto tão trivial quanto cinema.

O mais estranho dessa história toda é que o termo “politicamente correto” parece ter uma história relativamente longa, e foi usado por segmentos de esquerda e de direita ao longo dos anos de forma pejorativa. Não estou bem certo o porque disso. Provalmente porque todos temos uma vontade subconsciente de sermos transgressores e combater o que está politicamente estabelecido (até, ironicamente, os conservadores), ou talvez porque nossa visão leiga de “política” como um jogo sujo de poder nos força a nos opor a qualquer coisa que faça referencia a ela.

O que me parece, entretanto, é que a “retidão politica” ou a falta dela depende de… bem… de que tipo de política está em jogo. Estamos falando da politica de segregação racial, ou a proposição de leis com motivações unicamente religiosas, então eu claramente prefiro ser politicamente incorreto. Mas quanto a políticas de inclusão social, ou a valorização do ensino público, eu prefiro ser politicamente correto. Afinal, se vamos ser politicamente incorretos em relação a tudo, não vamos apoiar politica alguma. Como será que alguém que é politicamente incorreto (sic) entende sua posição em relação a liberdade de expressão? De forma a-política? Dificilmente.

Então, quando um politicamente incorreto fala que “Só disse que preto é ladrão porque era engraçado” (como se alimentar preconceitos para ganhar uns trocados fosse algum tipo de desculpa), me vem a pergunta: a que tipo de politica essa pessoa está se opondo ou satirizando?

Food for thought!

————————

Atualização: segundo a sugestão da Gabi, fica aqui a dica para o filme “O Riso dos Outros“, que de fato é excelente. Não havia referenciado ele, pois acredito que a maioria já tenha visto. Mas de qualquer forma ele é uma ótima exposição da retórica do “politicamente incorreto”. Cookie-points para as contribuições de André Dahmer, que é o cara.

Sam Harris: defendendo a discriminação?

Eu gosto de muito o que Sam Harris diz. Sua abordagem consequencialista sobre moralidade e sua visão sobre livre-arbitrio são ambas muito similares a o que penso e é sempre muito bom ver alguém com algum tipo de voz no cenário internacional difundindo ideias compatíveis com as suas sobre questões tão importantes como ética e moralidade. E é por esse motivo que fiquei profundamente decepcionado com um recente post em seu site.

Ele inicia comentando sobre o teatro que os passageiros tem que passar quando são aleatoriamente selecionados em aeroportos para serem revistados (muitas vezes de forma bastante invasiva) e terem seus sapatos removidos para a procura de material explosivo. Ele conta o caso de um casal de idosos e uma garotinha apavorada de três anos que teve que remover sua sandália para que fossem investigadas. Concordo que muitas dessas medidas são abusivas e desnecessárias, mas para Harris, o buraco é mais embaixo:

Existe algo que podemos fazer para parar essa tirania de justiça? Algum semblante de justiça faz sentido- e, desnecessário dizer, as malas de todos deveriam ser revistadas, apenas porque é possível colocar uma bomba na bagagem de outros. Mas a TSA [segurança dos aeroportos] tem uma quantidade finita de atenção: Cada momento revistando o Coral Góspel Mórmon subtrai do escrutínio destinado à ameaças mais prováveis. Quem poderia falhar em compreender isso?

Imagine o quão fátuo seria lutar uma guerra contra o IRA e mesmo assim se recusar à discriminar [para a revista] os Irlandeses? E mesmo assim é assim que nós estamos lutando nossa guerra contra o terrorismo Islamico.

Confesso, eu não tenho que passar pela experiência de ser continuamente discriminado. Sem dúvida seria frustrante. Mas se alguém vagamente parecido com o Ben Stiller fosse procurado por crimes contra a humanidade, eu entenderia se eu virasse algumas cabeças no aeroporto. Entretanto, se eu fosse forçado a esperar atrás de uma fila para uma revista desnecessária de mais pessoas, eu certamente iria ressentir a adicional perda do meu tempo.

Nos deveríamos descriminar muçulmanos, ou qualquer pessoa que concebivelmente possa ser um muçulmano e deveríamos ser honestos a respeito disso.

Yep, é isso mesmo. Ele não disputa a paranoia (que me parece obvia) ou mesmo sequer a inutilidade operacional de tais revistas, coisa que ele reconhece. Não… o problema é que não estão revistando quem deveria ser revistado: os muçulmanos, ou pessoas que se pareçam com um. E, aliás, o que diabos é “se parecer com um muçulmano”? Alguém de pele escura e de barba?

Isso sem contar a justificativa dada por Harris para a discriminação é absurda. Claro que se você parece com alguém que está sendo procurado pela polícia, é esperado que você seja abordado mais frequentemente. Mas os muçulmanos que seriam presumidamente parados nessas revistas não se parecem com ninguém: eles apenas se parecem com um estereótipo de muçulmano, um grupo que presumidamente tem maior chances de conter terroristas por algum motivo esdrúxulo. Ver alguém como Sam Harris defendendo uma prática claramente discriminatória por nenhum bom motivo é bastante embaraçoso.

—————————————————————————
Atualização (04/05/2012)

Sam Harris publicou um adendo em seu blog sobre o assunto. Não é uma desculpa, é uma explicação sobre o porque de sua postura não ter se desviado do que ele já defendia. Ou seja, quem ficou impressionado, assustado ou decepcionado com sua postura na verdade não havia parado para pensar nas consequências do seu tipo de discurso. Eu posso aceitar isso e confesso que eu sou um dos que não parou para pensar, aparentemente.

Ele ainda reitera que ele não está defendendo discriminação racial (apenas discriminação, por assim dizer), mas aqui eu acredito que ele está sendo insincero. Ele sabe muito bem que muçulmanos são normalmente associados à um estereotipo racial, e defender o “profiling” com base em primeiras impressões é apelar para esse estereótipo ou qualquer outro aspecto fenotípico, estético ou estilístico. Estereótipos esses que falham, obviamente, como indicadores de inclinações terroristas. Harris então compara o “profiling” que ele ele advoga, com o “profiling” psicológico, algo que é obviamente impossível de ser feito em um aeroporto em uma fila de espera.

Ao meu ver, ou Harris está realmente confuso sobre o que ele de fato está defendendo, ou ele notou que foi descuidado em suas colocações e está tentando remediar da melhor maneira possível sem ferir profundamente seu ego.

Crivella, criacionista “arroz-com-feijão”, tenta criticar a evolução e acaba criticando sua própria religião.

Desde que foi nomeado, foram levantados vários alertas para o fato de que ministro Marcelo Crivella (PRB-RJ), membro da bancada teocrática, talvez fosse uma péssima escolha para gerir um ministério da pesca. O video abaixo, que mostra Crivella falando sobre a teoria evolutiva, demonstra que tais preocupações estavam corretas.

Criacionista, Crivella filosofa sobre origem da ameba

A passagem é tão recheada de erros-por-minuto que proponho a criação de uma métrica: o Crivella. A seguir transcrevo na integra a fala para que possamos apreciar toda vossa regurgitância:

Há 150 anos, o inglês naturalista, Charles Darwin, propôs uma teoria na qual haveria, segundo ele, a evolução de todos os seres vivos a partir de uma ameba.

Bom, talvez não todos os seres vivos, apenas organismos pluricelulares e alguns unicelulares. Nem estou certo de que a ameba (ou um ancestral dela) foi proposta por Darwin como ancestral comum de toda a vida. O que ele colocou foi que a vida na terra teria uma ou poucas formas de vida originais. Visto que Darwin tinha alguma idéia de filogênese e da possibilidade do aumento da complexidade por seleção natural, é justo assumir que ele tinha em mente algum tipo de organismo unicelular mais primitivo que bactérias atuais. Definitivamente algo diferente de uma ameba.

E de que as especies iriam não só evoluir no seu gênero, mas também criar novas espécies. Ele falava também em uma transformação evolutiva de invertebrados para vertebrados. Todas essas teorias no mundo científico foram debatidas em 150 anos. Não passam de teorias.

Mas é obvio que não passam de teorias. Afinal, é uma das teorias mais bem corroboradas da ciência. A unica coisa que ela poderia ser, se não uma teoria, é uma hipótese descartada.

Infelizmente pessoas em geral, e criacionistas em especial, acreditam que existe uma progressão de idéias cientificas, que começam como teorias (ou hipóteses) e, se são comprovadas, evoluem para leis. Essa noção não poderia estar mais distante da realidade. Em ciência, uma teoria não é uma “mera especulação”, mas um conjunto teórico de postulados, modelos e hipóteses destinados à explicar e estudar um certo tipo de fenômeno natural. E são dentro das teorias que as leis se encaixam: como modelos formais (não necessariamente matemáticos, apesar dos mais conhecidos serem) que buscam explicar algum aspecto abordado por aquela teoria, como o movimento de objetos ou a herança de caracteres. Se existe algum tipo de hierarquia, leis estão subordinadas às teorias.

E portanto, sr. Presidente, não há provas conclusivas de que haja qualquer indicio na natureza de que uma espécie possa gerar outra espécie. Se a teoria de Darwin fosse uma realidade, teria o consenso da comunidade científica, como tem as leis de Newton. Ou as leis de Einstein, mais recentemente.

Mas ela tem consenso na comunidade científica: seus detratores ou são pesquisadores de outras áreas não correlacionadas (medicina, matemática, engenharia, filosofia) ou são uma minoria de biólogos que não trabalham na área de diversificação da vida. Ou sequer pesquisadores são.

Mas ciência não é concurso de popularidade. Mesmo que apenas um indivíduo discordasse, e apresentasse conclusões sólidas para sua discordância, a ortodoxia científica iria ter que mudar. Porém não é isso que acontece: Não existem publicações científicas que refutem a teoria evolutiva moderna e, mesmo os seus detratores mais radicais (dentro da área) propôem apenas a emenda da teoria com novos processos evolutivos que melhorem nossa compreensão da diversificação da vida.

Esse consenso, que o ministro ignora existir, não é o que causa a aceitação da teoria científica no meio acadêmico. É o fato de que a evolução é uma teoria sólida, com 150 anos de corroboração, que a torna quase que predominantemente aceita. É o reconhecimento do valor científico de uma ideia, e não uma posição ideológica.

Ironicamente, o exemplo dado pelo ministro de leis [sic] que são predominantemente aceitas, as Leis de Newton, não são mais predominantemente aceitas, pelo fato de que foram substituidas pelas teorias de Einstein.

Ela também é uma lei que depende das pessoas acreditarem em um milagre. Porque o surgimento da vida a partir de uma ameba, traz o primeiro questionamento: “e a ameba, surgiu da onde?” 

Se entendo corretamente o que o ministro quer dizer, ele está sugerindo que o surgimento da vida só pode ser explicado por um milagre, fato que é necessário para se aceitar a teoria evolutiva. Mas essa linha de raciocínio me intriga profundamente. Afinal, se todo sistema de crenças que necessite da crença em milagres é, de alguma forma, invalido, o que diríamos de um que pregue que o filho de Deus veio a Terra, se sacrificou e ressuscitou dos mortos? Devemos acreditar que o ministro repentinamente virou ateu, ou que talvez ele não tenha parado para pensar antes de abrir a boca?

A insistência de criacionistas em tentar transformar ciência em religião é sintomática. É uma admissão freudiana de que há algo fundamentalmente errado na forma que eles pensam mas, tudo bem! Desde que todos pensem de formas fundamentalmente erradas também, todos podemos sair por ai nos sentido justificados em nossas crenças. Não é apenas uma evidência de negação psicológica: é uma ode à ignorância.

De qualquer forma, essa é uma questão totalmente fora do escopo da teoria evolutiva. Afinal, evolução trata sobre a diversificação da vida, não da sua origem, assim como a teoria de gravidade não trata de sua origem, apenas de sua mecânica.

Ora, e se a doutrina do evolucionismo está correta, se um gênero se transforma em outro, e a natureza assim evolui, porque não se encontrou até hoje um fóssil sequer, em que seja metade anfíbio e metade ave, ou peixe? Ou um fóssil sequer que traga características metade homem, metade macaco? Aonde está esse elo perdido?

Mas tais fósseis foram achados! Na verdade a transição entre anfibios e aves não necessita sequer de fósseis, pois temos grupos vivos que são transicionais entre esses grupos: os lagartos e, principalmente, os crocodilos. De qualquer forma, temos uma infinidade de dinossauros (transição répteis-aves), tetrapodas basais (transição peixe-anfíbio) e uma multitude de interemediários meio-homem, meio-macaco que o ministro tão indignadamente demanda, sendo que inclusive falei em outro post sobre o mais recente deles: Ardi. É óbvio que o ministro, assim como a maioria dos criacionistas, conhecem esses fósseis, e sabem que eles são considerados transicionais. Eles sabem, mas negam de qualquer forma.

Tal festival do absurdo não é exatamente surpreendente. Afinal o ministro é evangélico pentecostal, o que torna a probabilidade dele ser criacionista um tanto quanto mais elevada. Seu comando sobre o ministério da pesca seria preocupante, visto que evolução desencadeada por pressão de pesca é um problema real para os estoques naturais de peixes. Não apenas isso: o ministro demonstra não entender nada de ciência. Porém o histórico do ministério e a recente nomeação do ministro apenas sustentam minhas suspeitas que ele (o ministério) não passa de mais um cordeiro político que foi sacrificado na tentativa de apaziguar a bancada teocrática.

Alias, 1 Crivella = 5 erros/minuto.