ENTREVISTA: Thiago Barison

Entrevistas
Thiago Barison é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), advogado e autor de “A estrutura sindical de Estado no Brasil e o controle judiciário após a Constituição de 1988”. São Paulo: LTr, 2016. É também organizador e coautor, juntamente com Sayonara G. C. L. da Silva e Lilian B. Emerique, de “Reformas Institucionais de Austeridade, Democracia e Relações de Trabalho”. São Paulo: LTr, 2018.

O Engenho: Barison, eu gostaria que você pudesse começar dizendo qual a contribuição que o Direito tem a dar à Ciência Política. Pode sintetizar algo?

Thiago Barison:  O direito é mais que um objeto da ciência política. O direito é uma estrutura, uma forma social, própria das sociedades de tipo capitalista (o direito existe como proto-forma nas sociedades pré-capitalistas), no sentido que corresponde, depende e reproduz outras estruturas dessa sociedade, notadamente as relações de produção mediadas pelo contrato de trabalho. Mas essa estrutura, inseparável do Estado, se materializa num complexo de instituições, que comportam ampla variação conjuntural, dentro sempre dos limites estruturais. O ordenamento jurídico atravessa o conjunto das instituições estatais e ambos assumem um conteúdo mais ou menos social e democrático a depender da dinâmica política. Assim, a política é determinada por essas estruturas e instituições e, ao mesmo tempo, as modifica em seu conteúdo, por ação das classes, frações e grupos sociais. Portanto, dessa perspectiva, a filosofia do direito e a filosofia política pouquíssimo se distinguem. A teoria do Estado, a história de suas instituições jurídicas e políticas e de sua relação com a economia e as lutas sociais conformam um campo de objetos comuns. Mas essas duas disciplinas, a ciência jurídica e a ciência política, embora possuam objetos comuns, têm objetos particulares. A ciência do direito compreende a dogmática jurídica: o estudo das soluções lógicas que um ordenamento jurídico comporta, seja por seus princípios, seja pelas normas postas. Dito tudo isso, trata-se de mais do que uma “contribuição”: são pesquisas que caminham juntas ou, em que pesem as especificidades, caminham em constante diálogo.

 

“A Operação Lava Jato é uma ação política, levada a cabo por uma “camada de Estado”, uma parte da burocracia ou do pessoal de Estado ligada ao aparato repressivo e, mais especificamente, ao ramo Judiciário, ao qual orbitam o Ministério Público e a Polícia Federal. Essa ação política encontra apoio e promoção nos grandes meios de comunicação de massa, que a promovem. Aliás, sem a participação ativa desses meios de comunicação, é de se duvidar da eficácia dessa ação. Trata-se de uma ação política “externa” às regras do jogo democrático estabelecidas com o pacto que funda a Nova República.”

 

OE: Partindo do seu referencial teórico, qual a leitura que você tem hoje sobre a Operação Lava Jato?

TB: A Operação Lava Jato é uma ação política, levada a cabo por uma “camada de Estado”, uma parte da burocracia ou do pessoal de Estado ligada ao aparato repressivo e, mais especificamente, ao ramo Judiciário, ao qual orbitam o Ministério Público e a Polícia Federal. Essa ação política encontra apoio e promoção nos grandes meios de comunicação de massa, que a promovem. Aliás, sem a participação ativa desses meios de comunicação, é de se duvidar da eficácia dessa ação. Trata-se de uma ação política “externa” às regras do jogo democrático estabelecidas com o pacto que funda a Nova República. Isso porque segundo essas regras, a competição e a mudança política da Presidência da República e de sua base de apoio no parlamento se davam até então pela via das eleições, com regras de financiamento eleitoral e elegibilidade mais ou menos estáveis desde 1988. A Operação Lava Jato, em primeiro lugar, perseguiu a base de apoio parlamentar dos governos petistas, acuando-a em favor do impeachment de Dilma Rousseff. Em segundo lugar, deu aos movimentos de massa da alta classe média bandeiras de luta e um discurso coerente, que tiveram forte impacto popular, neutralizando, paralisando, dividindo e acuando as bases sociais de apoio aos governos petistas, seja entre os grandes grupos empresariais (previamente encarcerados), seja entre as classes trabalhadoras. E, em terceiro lugar, a Lava Jato perseguiu, prendeu e retirou Lula do jogo eleitoral, a principal liderança popular do período. Essa ação política foi decisiva na crise e na mudança política por que estamos passando.

 

OE: E quais são as implicações que você já identifica que essa Operação terá sobre as normas jurídicas no Brasil?

TB: Dissemos que se trata de uma ação “externa” ou extra-sistêmica em relação às regras da Nova República. No entanto, é preciso enfatizar que a Lava Jato parte de “dentro” do aparato de Estado e, especialmente, que se vale de um discurso e de métodos de ação coerentes com as instituições e a linguagem política do aparato repressivo judiciário: a luta contra a corrupção, contra a apropriação privada de recursos públicos, contra a interferência de interesses privados na política e na distribuição dos recursos públicos etc. Isso é o que especifica e o que dá força à Lava Jato. Comparando a Lava Jato com uma nossa experiência histórica parecida e anterior, o Tenentismo, vê-se que este último é uma ação ainda mais “externa” à lógica política que combate, já que recorreu às armas — muito embora o papel moderador do exército fosse uma constante na história republicana brasileira. Pois bem, a Lava Jato se desenvolve dentro da lógica da ideologia jurídica — dizemos “ideologia jurídica” porque a separação público-privado não impede, senão oculta, dissimula e organiza o modo pelo qual as classes e frações burguesas se apropriam dos recursos econômicos gerais por meio da política social e econômica de Estado. No entanto, embora esteja afinada com a ideologia jurídica, a Lava Jato para atingir seus objetivos recorre a uma série de torções e mesmo violações das normas legais e institucionais. É o que demonstram os próprios processos, mas sobretudo as recentes revelações de conversas privadas dos procuradores, policiais, fiscais da Receita Federal e, claro, o então juiz e hoje, nada casualmente, ministro Sérgio Moro — além de desembargadores e ministros de tribunais superiores. Portanto, melhor seria dizer que a Lava Jato parte de dentro mas “orbita” a lógica e o discurso jurídicos. “Orbita” porque o rompimento com a legalidade não é um “acidente” na ação política Lava Jato: é parte constitutiva dessa operação.

 

OE: É possível identificar se há e qual o impacto nas diferentes classes sociais?

TB: Fizemos, brevemente, uma análise institucional e política. Essa hipótese só se completa, ao nosso ver, ao articularmos essa análise institucional e política com a análise das lutas entre as classes e frações de classe no período. Neste ponto, acompanho os trabalhos de Armando Boito Jr. e outros/as pesquisadores/as, segundo quem os governos petistas representavam e organizavam uma frente política heterogênea, chamada “neodesenvolvimentista”, liderada pela grande burguesia interna (grande capital com base de acumulação em território nacional, com conflitos seletivos em relação ao capital estrangeiro), que se apoiava nas classes trabalhadoras. A política social e econômica de Estado neodesenvolvimentista (política externa, de crédito e investimentos, de distribuição de recursos etc.) favorecia a grande burguesia interna em primeiro lugar, muito embora mantivesse o tripé macroeconômico neoliberal, sendo, por isso, o “desenvolvimentismo possível dentro do modelo econômico neoliberal”. E, assim, gerando empregos e renda, pôde a política neodesenvolvimentista melhorar a distribuição de recursos às classes trabalhadoras, notadamente com a política de valorização do salário-mínimo, que vincula os benefícios previdenciários, entre outras medidas. Por uma série de razões, que não podemos aqui retomar, mas dentre as quais está certamente a ofensiva restauradora neoliberal, essa frente entra em crise e a ação política da camada de Estado na forma da operação Lava Jato, articulada às mobilizações de massa da alta classe média, logram derrubar o governo de Dilma Rousseff e abrir caminho para a frente neoliberal, liderada pela fração burguesa associada ao capital externo e ao imperialismo dos EUA. Assim, a operação Lava Jato perseguiu e encarcerou uma fração das classes dominantes, levando seus líderes à prisão, de modo talvez inédito — mas em proporção certamente inédita. Empresas foram destruídas, alguns setores econômicos então importantíssimos, arrasados. E deu o tom da orquestra de autoritarismo contra as classes e frações dominadas: cada ilegalidade praticada contra Lula e outros processados pode e já está sendo replicada contra qualquer liderança popular. No entanto, embora fosse responsável por ação tão importante na conjuntura política, a camada de Estado e a alta classe média que se organizam na Lava Jato não dirigem o processo: como pudemos ver pelos governos Temer e Bolsonaro, o programa estatal resultante da ação política da Lava Jato pouco ou nada tem que ver com combate à corrupção; tal discurso e as suas bandeiras morais não dão conta da totalidade complexa que é a política social e econômica de Estado, entregue, após o estrago feito, à ofensiva neoliberal da grande burguesia associada ao capital externo e do imperialismo dos EUA. Um último comentário, já que comparamos com o Tenentismo enquanto ação política de camada média de Estado. O “republicanismo tenentista” resultou num programa nacionalista e industrializante, embora autoritário. O “republicanismo da Lava Jato”, igualmente autoritário, resulta num programa antinacional e anti-industrial.

 

OE: Você acha que as novas normas anticorrupção e seu uso, tal como tem se dado, podem alterar a estrutura do Estado brasileiro?

TB: A Lava Jato deu discurso e bandeiras consequentes para as forças sociais de caráter fascista existentes na sociedade brasileira. A Lava Jato tem uma lógica de facção política, instalada dentro do aparato de Estado e usando-o com métodos paralelos à legalidade — conduções coercitivas, quebras de sigilo bancário e de comunicações, prisões antecipadas com suspensão na prática do habeas corpus etc. No entanto, o fato de estar dentro do aparato de Estado e falando em nome da legalidade cria uma série de contradições e obstáculos, que já estão aparecendo e se fazendo sentir — veja-se as posições assumidas pela cúpula do judiciário, notadamente as do ministro, insuspeito de “petismo”, Gilmar Mendes. Após as revelações do “The Intercept Brasil” e das contradições criadas com diversos setores do aparato estatal e das diversas classes sociais, a Lava Jato começa seu ocaso. Acredito que a Lava Jato e as normas e métodos que criou podem alterar o tipo de Estado, mas a depender, agora, de um outro fator: do movimento neofascista, que, por sua vez, depende de muitos outros fatores, relacionados as lutas de classes — note-se que na agenda atual do movimento neofascista está justamente o combate ao STF. Entretanto, como dissemos, a Lava Jato, seus métodos, práticas e normas já alteraram senão a forma geral ou o regime pelo menos o conteúdo do Estado brasileiro, distanciando-a do que fora pactuado em 1988.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *