O esporte pode ensinar valores?

O sociólogo Zigmund Bauman chama de Modernidade Líquida as relações que vivemos nos dias de hoje, marcadas pelas mudanças nos valores, relacionando as características dos líquidos às condições contemporâneas como a instantaneidade, superficialidade , instabilidade,  que, por sua vez, estimulam outras particularidades como a busca por prazer imediato, egoísmo, egocentrismo, consumismo, individualismo, indiferença.

E o esporte, fenômeno  que cresceu vertiginosamente e se faz presente em todas as dimensões da humanidade, também sofre com a Modernidade Líquida. A ganância, por exemplo, comprova a crise nos valores dos ambientes esportivos, como os escândalos dos dirigentes da FIFA envolvendo propina ou de comissões técnicas e atletas nos diversos e constantes casos de doping.

Mas ao mesmo tempo que casos desta natureza denigrem o ambiente esportivo, há também, e não se sabe bem sua origem, um senso geral atribuído ao poder que o esporte possui em desenvolver valores que colaboram para a formação da personalidade moral e ética dos praticantes. Refiro-me a atributos como superação, engajamento, esforço, cooperação, solidariedade.

No entanto, esta potencialidade aparece como algo naturalmente agregado, até mágico! É como se, ao garantir que crianças ou adolescentes pratiquem alguma modalidade,  compulsoriamente elas desenvolvessem valores adequados para uma boa convivência dentro e fora do ambiente esportivo.

Diante do cenário de crise nos valores, a discussão nos mais diferentes ambientes educacionais envolvem, logicamente, as possibilidades de atuação para o desenvolvimento moral dos educandos. E, retornando ao ensino do esporte como meio propício para contribuir com este intuito, torna-se necessário superar esta visão simplória de que basta fazer os jovens jogar, nadar, lutar… para que se fomente valores considerados convenientes e evite os inconvenientes.

Para tanto, defende-se prioritariamente a intencionalidade nas ações, ou seja, ao se ensinar esporte e desejar colaborar com a formação da personalidade moral dos praticantes é necessário intervir de forma planejada e proposital.

Mas, ao se pensar em planejar ações, defronta-se  com outros elementos que devem ser considerados.

Basta instituir regras e impor condutas para que as sigam rigorosamente?

Aplicar os antigos e longos sermões em ocasiões de conflitos são eficientes para estimular a auto-regulação dos alunos ou atletas?

Mas e a própria conduta moral do professor? O que ele não é capaz de demonstrar ele não ensina? Ou vale a célebre frase: “Faça o que eu falo, não faça o que eu faço”.

Será possível planejar atividades que envolvam o desenvolvimento moral sem se perder  o foco no ensino do esporte ou melhor é tratar este último apenas como meio ou ferramenta para atingir o primeiro?

Estas são algumas das muitas questões que me fiz, faço e devo continuar a fazer, (mesmo já tendo alguma ideia do caminho a ser percorrido) ao defender que o professor de esportes tem a obrigação de atuar como agente formador da personalidade moral de seus alunos e atletas.

Estas e outras questões serão tratadas neste blog, via de regra, a partir de situações corriqueiras do esporte, mas referenciadas pelos estudos em moralidade e nas pesquisas que venho desenvolvendo. No entanto, a ideia desta divulgação científica não é a de propor receitas do tipo “como fazer“, e sim, colocar estas proposições em discussão com os pares, proporcionando, espero, discussões e reflexões que colaborem para o aprofundamento de uma dimensão tão impactante na vida de todos, mas tão pouco estudada e vivenciada,  quando tratamos de intervenções intencionais em qualquer espaço educativo, especialmente no esportivo.

O desafio está proposto. Espero que mais colegas se motivem a enfrentá-lo comigo! E a quem se motivou, convido a comentar, colocando suas opiniões abaixo.

Grande abraço!

Sobre Leopoldo Hirama 9 Artigos
Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB), formado em Educação Física pela FEF-Unicamp, mestre em Ciências do Esporte e doutorando na mesma instituição. Atua na temática da Pedagogia do Esporte, mais especificamente nos esportes coletivos e lutas e as possibilidades do fenômeno esportivo na educação de crianças e adolescentes em comunidades periféricas. Atualmente pesquisa as características do ambiente de ensino do esporte para a formação da personalidade moral de jovens praticantes.

9 Comentários

  1. Bom dia, Leo!
    A priori, queria parabenizar pela iniciativa, tenho certeza que contribuirá com formação de muitos educadores e profissionais afins.
    Este mês assumi o trabalho em uma escola no estado e me deparei com um senário "caótico" com alunos desmotivados e desoreitandos, um quadro de colegas desmotivados e uma estrutura precária e logística que não funcionam. Tudo isso vem a contribuir para a manutenção dessa situação, sendo que essa questão relacionada a ensino de valores atrelados ao ensino de esportes é uma temática de meu interesse, ainda mais agora me deparando com essa situação. Fico quebrando a cabeça tentando criar alternativas que atraiam os alunos e que eles consigam ver significado neste espaço, hoje visto apenas como um ponto de encontro de colegas. São inúmeros os dificultadores, ainda mais se tratando de alunos advindos de regiões menos favorecidas e com problemáticas sociais agravantes. Porém acredito essas indagações apontadas em seu texto são bem pertinentes, assim como acredito que não exite "fórmula mágica" para a resolução deste problema, entretanto penso que, para superar está situação, primeiramente tem que se perder a diplomacia dentro da escola e encontrar os agravantes internos e agir inicialmente neles, a exemplo podemos citar: cumprimento dos horário por parte de todos integrantes do núcleo (professes, alunos e funcionários); ações planejadas e que tornem os alunos agentes construtores quabrando com a mediocridade da mera reprodução visando benefício direto e acima de tudo estimular a ação reflexiva dos alunos, fazer com que eles entram que os espaços, grupo e instituições serão aquilo que os envolvidos fizerem dela, o processo de osmose não irá funcionar. Estes valores não estão intrínseco, mas sim desenvolvidos com ações planejadas levando em consideração o público, as condições, as possíveis consequências e o impactos das mesmas.
    Espero que possamos dialogar mais sobre a temática.
    Grande abraço, professor!

    • Caro Kleibson, que bom receber notícias suas! Você inaugurou a possibilidade dos comentários do blog, obrigado!
      Os estudos que propõem intervenções em moralidade na escola afirmam ser necessário a criação de um clima socio-moral favorável para que se estabeleçam valores como pertencimento, proximidade e profundidade, algo que já conversamos bastante, não é mesmo?
      Mas para que este clima seja estabelecido há a necessidade do envolvimento de todos, a começar pelos profissionais, professores, direção e demais funcionários. E todos necessitam atuar conforme um eixo norteador comum, que deve ser construído coletivamente, e se possível, com a participação dos alunos desde o início. Imagino que não deva ser nada fácil isto acontecer de imediato, pela descrição que fez de sua instituição.
      Portanto, sugiro atuar de forma a tentar agregar gradativamente as pessoas, profissionais e alunos, por meio do diálogo e do exemplo. A esperança é a de que seu desempenho demonstre aos demais suas conquistas e estimule-os a fazer parte.
      Vamos mantendo o contato!
      Abraço e obrigado novamente!
      Léo

      • Prezado Leo,

        De fato a discussão é pertinente, por isso, parabenizo sua iniciativa.

        Acho que a palavra chave da problemática lançada está bem no meio do seu artigo: intencionalidade.

        Por isso, se me permite uma afirmação de caráter absoluto, eu não tenho dúvidas de que o esporte ensina valores. Ou melhor, não existe nenhuma prática de ensino do esporte desprovida de valores.

        Nesse sentido, o que acredito que podemos acrescentar ao desafio que brilhantemente você nos oferece, é justamente o problema: quais valores estão instalados nessa ou naquela prática e ensino do esporte? E quais valores pretendo, ideológica ou politicamente, assumir no processo de formação ensejado pelo esporte?

        Dessa forma, retomo o destaque que fiz no início. Precisamos assumir e alimentar nossa prática do compromisso intencional com os valores que julgamos pertinentes.
        Acrescento, ainda, que sem o professor como mediador, planejando e intervindo concretamente no espaço-tempo que lhe é conferido, não se garante os valores sociais que deveriam confrontar a logica citada por Bauman (no post acima).

        Portanto, concordo com a sua afirmação Leo, não há magica, o esporte não é uma entidade com vida própria recheada de valores a priori... E acrescento, que o esporte é conhecimento que pode assumir a concepção hegemônica de determinada sociedade e qualquer pretensão de neutralidade nesse processo, certamente, corrobora com o reforço dos valores dessa concepção.

        Tiago

        • Caro Tiago, obrigado pelo comentário que enriquece o tema.
          Penso que talvez muitos professores, por acreditarem neste sentido de que basta oferecer esporte que valores adequados serão desenvolvidos, deixam em segundo plano a intervenção intencional na formação moral. E deixando, valores (e como vc colocou, eles existem em qualquer prática esportiva) que não contribuem para uma vida democrática e justa podem ser os evidenciados.
          Grande abraço!

          Leopoldo

  2. Léo,
    Parabéns pela inciativa, fico ainda mais orgulhoso de vê-lo também no ambiente virtual nos ensinando. Obrigado.
    Em relação ao assunto do post, é importante mesmo ampliar essa discussão. Conseguir esse espaço para discutir que o esporte pode ser muito mais abrangente do que simplesmente, tirar a criança da rua, é um grande avanço. Os "comos" desse processo passam a ser questionados e isso pode nos levar a novos conhecimentos.
    Fico muito feliz com essa possibilidade de discussão!
    grande abraço,
    Beto.

    • Obrigado Beto pelas palavras de incentivo. Muito do que discutimos nas nossas conversas deverão ser postadas aqui.
      Grande abraço!
      Léo

  3. Leo, estamos juntos nessa caminhada por dar significado e valor à nossa prática docente! Embarco com você nessa jornada de blogs, mesmo que ainda de forma muito iniciante. Vamos discutir aquilo que por vezes intriga a cabeça de professores, mas que não é externado por se pensar "é assim mesmo que faz" ou "desse jeito é mais fácil". Que a pedagogia do esporte nos dê sustentação para discutir e propor inúmeras mudanças das quais o campo da educação física necessita, nos seus diferentes cenários. Parabéns por seu trabalho e por todas as reflexões que li no seu blog! Passou da hora de democratizarmos e possibilitarmos a aplicação e reflexão do que nós produzimos no mundo acadêmico com aqueles que vivem somente na prática!

    • Cara Paula, obrigado pelo comentário motivador!
      Esta experiência no blog tem sido em duas vias. Ao mesmo tempo que procuro divulgar alguns aspectos que estudamos no mundo acadêmico e que podem ser novidade ou tabus nas beiras das quadras, piscinas, dojôs... o contrário também é verdadeiro. Se experimentam processos incríveis no cotidiano do ensino do esporte, que por vezes espantam professores da academia, com algo que aparentemente pode ser contrário a tudo que já se produziu na área, mas que de fato tem efeitos incontestáveis na vida de crianças, jovens e adultos praticantes do esporte.
      Um grande e forte abraço! Seguimos juntos!

  4. Boa noite Leopoldo, tudo bem?
    Acabei de ter contato com este material interessantíssimo nas buscas de melhorias para nosso projeto.
    Este é nosso projeto: https://www.facebook.com/EscoladeBasketball
    Uma escola de basketball, trabalho independente, voluntário e gratuito para crianças e adolescentes. Nós, gestores, somos profissionais de outras áreas, mas amamos o esporte e o utilizamos como ferramenta transformadora de valores. Cobramos dedicação dos alunos/atletas para o esporte, mas fazemos trabalho paralelo de orientação para a vida.
    E podemos dizer que o esporte realmente transforma! A mudança comportamental dos alunos melhorou desde o início do projeto. A exigência do esporte por disciplina, dedicação e compromisso caem como sementes em solo jovem e fértil.
    Vejo o sistema educacional público falido, onde grande parte dos profissionais não empregam suas habilidades e conhecimentos para educar os mais novos. Mas, acredito que as sementes aqui plantadas (em nosso projeto) possam gera bons frutos posteriormente.
    Queria poder conversar mais e sempre sobre o assunto, e se quiser conhecer melhor nosso trabalho, visite nossa página e 'curta'...e compartilhe!

    Obrigado!

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