Você não comemorou uma volta em torno do Sol no Ano Novo.

Ano Tropical e Ano Sideral. CDF - Ciência de Fato.

Por Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos

No último dia 01/01/2021, o mundo comemorou o início de um novo ano com a esperança de renovação e fim da atual pandemia. Muitas pessoas afirmaram “a Terra deu mais uma volta”. Sem querer estragar o prazer dessas pessoas, a Terra não completou uma volta exata em torno do Sol em um ano. 

O nosso calendário

O calendário adotado pelo Brasil e por quase todos os países é o gregoriano. O calendário gregoriano veio do juliano, criado pelo imperador romano Júlio César (100 a.C-44a.C.). 

Júlio César e os antigos romanos não acreditavam que a Terra girasse em torno do Sol, portanto, o calendário juliano não poderia definir um ano como uma volta da Terra em torno do Sol. Antes de Copérnico (1473-1543), poucos filósofos descreviam a Terra como um corpo em movimento, como por exemplo, o grego Aristarco de Samos (310a.C-230a.C.). 

Se os antigos romanos não criaram a noção de ano com base no movimento de translação da Terra ao redor do Sol, o que eles comemoravam?

O Sol se move?

A menção ao movimento do Sol não deve ser interpretada como negação do heliocentrismo. Todo movimento depende do referencial. No referencial da Terra, o Sol se move. Se alguém está em algum lugar no espaço sideral onde vê o Sol fixo, a Terra se move. Os cálculos astronômicos dos movimentos dos outros planetas do Sistema Solar ficam muito simplificados em um referencial imaginário onde o Sol está em repouso. Os cálculos das órbitas planetárias calculadas com o Sol em repouso foram essenciais para a origem da própria Física.

O ano tropical e os trópicos.

Um movimento do Sol no céu da Terra bem perceptível é o seu trajeto de Leste para o Oeste com seu reaparecimento no Oriente. Esse movimento é o dia. Mas há um segundo movimento, mais sutil, mas não menos importante. A trajetória do Sol no céu não é a mesma todos os dias, mas desloca-se entre Norte e Sul. Esse ciclo do Sol entre o Norte e o Sul é o “ano tropical”.

As linhas do céu que marcam os extremos sul e norte do caminho solar são denominadas respectivamente “Trópico de Capricórnio Celeste” e “Trópico de Câncer Celeste”. Entre os trópicos celestes, está a linha do Equador Celeste. O Ano Tropical pode ser entendido como um ciclo entre os trópicos celestes (ver figura 1).

Figura 1: trajetórias do Sol no céu ao longo do ano. Fonte: COSTA, Ivan Ferreira da; MAROJA, Armando de Mendonça. Astronomia diurna: medida da abertura angular do Sol e da latitude local. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo , v. 40, n. 1, e1501, 2018

A projeção das linhas celestes dos trópicos na Terra corresponde aos trópicos terrestres ou simplesmente, trópicos. Os Trópicos de Capricórnio e Câncer ficam respectivamente nos hemisférios sul e norte. A linha do Equador é a projeção terrestre do Equador celeste e divide a própria Terra nos hemisférios sul e norte (ver figura 2).

Figura 2. Representação da Terra e as linhas do Equador e os Trópicos de Capricórnio e Câncer. Crédito da Imagem: CDF – Ciência de Fato

Os dias em que o Sol passa pelos Trópicos Celestes são denominados “solstícios”. O Sol passa pelo Trópico de Capricórnio Celeste entre os dias 20 e 21 de dezembro, o que corresponde ao solstício de verão no hemisfério sul, e de inverno no norte. No hemisfério sul, o dia é o mais longo do ano, enquanto no norte, o mais curto. Após passar pelo Trópico de Capricórnio Celeste, as trajetórias do Sol no céu deslocam-se para o Norte, atingindo o Equador por volta dos dias 20 ou 21 de março. Neste dia, a duração do dia (no sentido da parte clara do dia) é igual a da noite. Este fenômeno é chamado de “equinócio”, termo originário do latim equinox, “noite igual” em uma tradução livre. O equinócio de março marca o início do outono e da primavera nos hemisférios sul e norte,  respectivamente. 

Depois do equinócio de março, o Sol continua indo ao norte, atingindo o Trópico de Câncer Celeste por volta de 20 ou 21 de junho, começando as estações inverno e verão respectivamente nos hemisférios sul e norte. Após essa data, o Sol repete os caminhos rumo ao Sul, retornando ao Equador Celeste em um novo equinócio entre 21 e 22 de setembro, início da primavera e outono nos hemisférios sul e norte respectivamente. Enfim, o Sol retorna ao Trópico de Capricórnio Celeste e um ano tropical se completa.

Mas quando o ano começava?

Os antigos romanos marcavam o início do ano no começo da primavera do hemisfério norte, ou seja, em um dos equinócios. No calendário atual, o início do ano seria por volta de 20 ou 21 de março. Para os romanos, as estações do início para o fim do ano eram primavera (prima vera, primeiro verão), verão, outono e inverno. Mas o imperador romano Júlio César criou em 46 a.C. o já mencionado calendário juliano. O ano começaria no primeiro dia de seu reinado, não mais em uma posição do Sol no céu. Este seria o dia 1 de janeiro. 

Séculos depois, o Papa Gregório criou o calendário gregoriano, fazendo com que o dia 4 de outubro de 1582 fosse sucedido por 16/10/1582. Com a omissão destes 10 dias em outubro de 1582 e da não contagem de 1700, 1800 e 1900 como anos bissextos, o dia 1 de janeiro de 2021 do calendário juliano corresponde a 13/01/2021 do gregoriano. Mas por que esses dias foram suprimidos do calendário gregoriano?

Adaptando o calendário

A base do calendário juliano são os cálculos astronômicos egípcios. De acordo com os sacerdotes africanos do Egito, se o ano tropical durasse 365 dias, a cada 4 anos os solstícios e equinócios atrasariam em um dia. Por exemplo, se o início do outono no hemisfério sul em 2021 fosse no dia 20/3, em 2025 seria em 19/03, 18/03 em 2029, etc. Tal fenômeno mostrava que o ano tropical não durava exatamente 365 dias. Com o atraso de 1 dia=24 horas no começo das estações a cada 4 anos, a conclusão era que o ano tropical tinha 365 dias e 24/4=6 horas. Uma solução para a correção do Ano Novo seria colocar essas 6 horas extras na contagem do ano. Por exemplo, o ano de 2021 começaria às 00h00min, 2022, às 06h00min, 2023, ao meio-dia, 2024, às 18h00min, etc. 

A solução encontrada foi mais simples e prática. A cada 4 anos se acrescenta um dia extra no ano, corrigindo a falha. O imperador Júlio César escolheu fevereiro como o mês que recebe o dia extra.

Anos seculares e bissextos

Os anos de 365 dias são denominados “anos seculares”. Os anos com um dia extra, os chamados “anos bissextos”, possuem 365+1=366 dias. O termo bissexto é uma referência ao par de algarismo “6” no número “366”.  

O calendário juliano começou com um erro na implementação dos anos bissextos, uma interpolação de 1 dia a cada 3 anos. O imperador Augusto (63a.C-14d.C) corrigiu a falha, decretando que entre 12a.C e 8d.C os anos bissextos não fossem contados. Assim, desde 8d.C, os anos bissextos foram colocados como os múltiplos de 4. Os anos bissextos foram herdados pelo calendário gregoriano “quase totalmente”. Por exemplo, 2020, 2024, 2028, 2032 são anos bissextos. Mas de 1582 para cá, o calendário gregoriano omitiu como bissextos apenas três anos múltiplos de 4, 1700, 1800 e 1900. A razão dessa omissão será explicada a seguir.

Enquanto no início do calendário juliano a primavera na Europa começava em 21 de março aproximadamente, no séc. XVI, o equinócio estava ocorrendo por volta do dia 11 do mesmo mês. Isso significava que o ano tropical tinha menos do que 365 dias e 6 horas porque a contagem do calendário estava 10 dias adiantados. O mesmo adiantamento de 10 dias ocorria com o outro equinócio e com os solstícios.

É interessante lembrar que o erro do calendário gerava um problema religioso. Desde a reunião conhecida como Concílio de Niceia em 325, os católicos comemoravam a Páscoa no primeiro domingo de Lua Cheia após o começo da primavera no hemisfério norte. Como a data estimada para o início da primavera era 21/03, os católicos escolhiam a primeira Lua Cheia após este dia para a Páscoa. Mas como a estimativa de 21/03 para o equinócio da primavera tinha um atraso de 11 dias, os católicos estavam errando a data correta da Páscoa.

Distribuindo estes 10 dias desde a implementação do ano bissexto a cada 4 anos em 8 d.C., os astrônomos do Papa Gregório XVI estimaram que o ano tinha 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, ou em termos fracionários, 365,2422 dias. Ao considerar o ano como tendo 365 dias, o erro acumulado em 4 anos era 0,2422×4=0,9688 dia, ou seja, 23 horas, 15 minutos e 4 segundos. Colocar um dia a mais a cada 4 anos significa um excesso de 1- 0,9688=0,0312 dia, ou seja, 44 minutos e 56 segundos. Esse excesso a cada 4 anos parece não ser nada, mas em 400 anos ele fica 0,0312×100=3,12 dias. A decisão do Papa e de sua equipe de estudiosos foi retirar 3 dias a cada 400 anos. Ainda sobrariam 0,12 dias não corrigidos a cada 400 anos, o que resulta em 0,12×10=1,2 dias em 4.000 anos. Mesmo acreditando na vida eterna, os astrônomos papais não corrigiram esse erro. Isso será problema para futuras gerações se a humanidade não acabar antes.

A regra para a retirada de 3 dias a cada 400 anos é baseada em uma propriedade matemática dos múltiplos de 4. Todo número terminado em 00 é múltiplo de 4, portanto deveria ser bissexto. Em 4 números seguidos terminados em 00, 3 não são múltiplos de 400. Por exemplo, no intervalo 1600, 1700, 1800 e 1900, os 3 últimos números não são múltiplos de 400. A regra do calendário gregoriano é não contabilizar como bissextos os anos terminados em 00 que não são múltiplos de 400. Assim, 1700, 1800 e 1900 foram contados como anos seculares. Já os anos de 1600 e 2000 foram bissextos porque terminam em 00 e são múltiplos de 400. O próximo ano terminado em 00 é 2100, que não será bissexto por não ser múltiplo de 400.

O ano sideral

No referencial do Sol, o ano sideral é o tempo de uma volta completa da Terra em torno do Astro Rei. Um ano sideral dura 365,2564 dias ou 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 10 segundos.

No referencial da Terra, à noite, as estrelas percorrem o céu de Leste a Oeste. A cada dia, as trajetórias das estrelas no céu noturno mudam, fazendo com que algumas estrelas desapareçam e reapareçam. Após um ano sideral, o mapa estelar do céu noturno será exatamente o mesmo. No referencial do Sol, o céu noturno corresponde a parte do Universo que a face sombreada da Terra está voltada. Após uma volta em torno do Sol, a Terra se dirige a mesma região do Universo. Isso explica a relação entre a volta da Terra em torno do Sol no referencial solar e a repetição das posições das estrelas no céu noturno.  

O movimento do Sol no céu visto da Terra “deveria” corresponder a translação da Terra em torno do Sol no referencial solar. Afinal, após uma volta completa da Terra em torno do Sol, o Astro Rei visto da Terra percorreria a mesma linha no céu no sentido norte-sul. O ano sideral “deveria” coincidir com o tropical. Se o eixo da Terra apontasse em uma direção fixa, o ano tropical e o sideral coincidiriam. No entanto, o eixo da Terra gira como se o planeta fosse um pião. Esse movimento é denominado “precessão”. Esse giro faz com que a orientação da Terra em relação ao Sol se repita um pouco antes de uma volta completa, fazendo com que a trajetória solar vista da Terra se antecipe um pouco antes de um ano sideral. Esse “um pouco antes” corresponde a diferença entre os anos sideral e tropical, 20 minutos e 27 segundos. O movimento completo de precessão da Terra dura 25.770 anos tropicais. Assim, 25.770 anos tropicais equivalem a 25.771 tropicais (ver figura 3).

Figura 3: Movimento da Terra em torno do Sol com precessão do eixo terrestre, fenômeno responsável pela diferença entre os anos tropical e sideral. Crédito da Imagem: “Precessão do eixo terrestre”, Kepler de Souza Oliveira Filho e Maria de Fátima Oliveira Santana

O fato do ano sideral ser quase idêntico ao tropical faz com a trajetória do Sol de dia corresponda a uma certa constelação à noite. Mas a precessão da Terra no referencial do Sol faz com que o céu “gire” para quem está na Terra. Esse giro altera a Terra ao longo de séculos e é conhecido como “precessão dos equinócios” porque o Equador Celeste relacionado aos equinócios rotaciona junto com o céu. Na verdade, os Trópicos Celestes também sofrem essa rotação junto com o Equador Celeste. Por exemplo, nos tempos do Império Romano, no solstício de dezembro, a trajetória diurna do Sol correspondia a uma linha noturna que cruzava a constelação de Capricórnio. Devido a isso, o Trópico de Capricórnio recebeu esse nome. Devido à rotação dos céus em 25.770 anos tropicais, atualmente, o Trópico de Capricórnio Celeste no dia do solstício de dezembro cruza a constelação de Sagitário à noite (ver figura 4)

Figura 4: Trajetória do Sol de dia com a noite correspondente. A linha percorrida pelo Sol, o Trópico de Capricórnio, cruza a constelação de Sagitário. Crédito da Imagem: “Efemérides astronômicas: de 21 a 31 de dezembro 2017”, Fernando Munaretto.

A escolha pelo Ano Tropical.

Como a produção de alimentos, a locomoção e toda a vida humana está condicionada pela temperatura, umidade e iluminação, o ciclo das 4 estações foi considerado mais importante do que o aparecimento das estrelas. Assim, o ciclo mais importante para os antigos egípcios que inspiraram os romanos era o ano tropical, não o sideral. É por isso que o calendário gregoriano, herdeiro do juliano, é baseado no ano tropical, não no sideral. 

A comemoração do ano novo é de um ciclo do movimento do Sol no céu entre os Trópicos Celeste visto da Terra. Mais exatamente, o ano gregoriano é um período de 365 ou 366 dias ajustados para ter em média um ano tropical.

Na próxima comemoração de ano novo, em 2022, quando o leitor disser “Feliz ano Novo”, lembre que está comemorando mais um movimento solar no céu no sentido Norte-Sul, não uma volta da Terra em torno do Sol.

Para saber mais:

Astronomia diurna: medida da abertura angular do Sol e da latitude local. COSTA, Ivan Ferreira da; MAROJA, Armando de Mendonça. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo , v. 40, n. 1, e1501, 2018 . 

Trópicos, meridianos e círculos, entenda as linhas que cortam a Terra. Entrevista com Enios Picazzo.

Precessão do eixo terrestre. OLIVEIRA Filho, Kepler de Souza; SANTANA, Maria de Fátima Oliveira.

Efemérides astronômicas: de 21 a 31 de dezembro 2017. MUNARETTO Fernando.

Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos é um eterno estudante e professor de Física da UNIFESP Diadema. Apaixonado pela Física, Matemática e Divulgação Científica.

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