Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de escolha?

Publicado por Diego Pansani em

Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de escolha? (1)

Resumo

O objetivo do texto é tratar sobre a educação doméstica. Haveria, na atualidade, pelo
menos duas perspectivas relacionadas ao assunto: uma ligada ao projeto neoliberal de
sociedade, de manutenção de privilégios e escolhas individuais possibilitadas pela
condição socioeconômica e a outra perspectiva ligada à educação como direito, e que
portanto, necessita de políticas públicas e plena construção da cidadania, como projeto
coletivo. O tema é abordado considerando a perspectiva norte-americana porque,
segundo a autora, o Brasil é bastante influenciado por essa corrente. O artigo conclui
afirmando haver uma tensão entre a tendência de desescolarização e o declarado direito
dos pais na decisão sobre a educação dos filhos.

Comentários:
O texto resenhado traz um panorama sobre a educação doméstica na atualidade. O
principal lastro ideológico é o neoliberalismo. O debate envolve a discussão de
liberdade individual ou das famílias e a responsabilidade e qualidade do ensino
enquanto responsabilidade coletiva, protagonizada pelo Estado. O homeschooling é uma educação realizada na casa dos aprendizes e é realizada pelos próprios pais, parentes, ou profissionais contratados. Segundo a autora, mesmo sem prescrição legal no Brasil, há um aumento do interesse e de práticas nesse sentido. Partindo dessa evidência empírica a autora inicia o diálogo com entusiastas e críticos ao modelo.

Após mais de meio século de hegemonia do sistema de escolarização, Canário localiza a “crise da escola” nos anos de 1960, resultante, entre outros fatores, do fato de ela estar “desarmada perante a massificação” e sem outra ideologia justificante que não fosse o “prometido destino profissional dos alunos”. Tais dificuldades encontram, a partir dos anos de 1990, as ilimitadas possibilidades tecnológicas de acesso ao conhecimento, o que delineia um cenário ideal de ruptura com a institucionalização do ensino e coroa uma tensão que já se arrastava por décadas.

Conjuga-se assim a agenda da “nova gestão pública”, proposta ligada ao neoliberalismo
e o homeschooling: uma meta de descentralização no gerenciamento dos sistemas
educativos, sem precedentes, após o advento da escolarização (Paraskeva & Au, 2010;
Torres Santomé et al, 2003).

O argumento contrário ao homeschooling é contundente ao afirmar que, mais do a
escolarização formal, a escola é o espaço de socialização por excelência, local que
superaria as limitações do ambiente doméstico, sua homogeneidade e complexa relação
de alteridade.

Além de citar países que já estariam educando formalmente crianças no ambiente
doméstico (EUA, Canadá, México, País de Gales, Inglaterra, Alemanha, Polônia, Suíça,
Japão, Austrália e África do Sul (2)), a autora salienta:
1) Os recursos tecnológicos como grandes legitimadores da discussão, uma vez que
seriam instrumentos fundamentais no deslocamento do espaço educacional;
2) A oposição à leis e sistemas oficiais de educação, uma vez que muitas famílias
estariam em desacordo à formação das escolas, “seja por motivos religiosos,
filosóficos, contextuais, especiais ou circunstanciais”

Teóricos incisivos dessa concepção, Ivan Illich e John Holt, ressaltam medidas políticas
e instrumentais para o fortalecimento do homeschooling, como interromper
investimentos e repasses governamentais para o sistema educacional vigente (3).

O apelo midiático é agraciado por aproximações entre o homeschooling e a contracultura, onde “os pais dedicados têm alcançado seus objetivos sem muitos aplausos e sem um centavo de financiamento do governo”. Para legitimar tais posicionamentos, os entusiastas utilizam a definição de educação pública como sistema de coação e de monopólio estatal, que subsiste através de receitas compulsórias oriundas dos cidadãos.

Muito já se escreveu sobre a escola como reprodutora de comportamentos obedientes,
tediosos. Aliado a essa postura filosófica entronizam os testes padronizados e a obtenção de notas maiores pelas crianças expostas ao homschooling para fortalecer o ponto de vista liberal, de emancipação dos indivíduos e de suas escolhas. Num primeiro momento, a ideia concentraria uma crítica ao setor público e privado, uma vez que a maior parte das famílias que flertam ou já trabalham nessa perspectiva, são oriundas de camadas mais ricas da sociedade. Porém, a demonização é trabalhada apenas no setor público, enaltecendo as investidas do mercado e da livre iniciativa como alternativas à obrigatoriedade de ensino em escolas. O dado empírico que fortalece essa demonização apenas do setor público é que muitas famílias tem contratados professores da rede privada, alinhados à suas concepções ideológicas e as próprias instituições privadas de ensino tem se movimentado em ralação ao oferecimento à distância e na regulamentação de tecnologias e flexibilização de currículo para melhor envolver as demandas.

Do lado oposto, além da preocupação pedagógica que afastaria ainda mais as crianças umas das outras, dificultando a construção de empatia e alteridade, pela impossibilidade da relação social dentro da escola, o movimento da “escola em casa contribuiria para reforçar a estratificação social, econômica, política e cultural, ou seja, incrementaria as
desigualdades (4)” Por trás do homeschooling estaria a ideia, promovida pela imprensa sensacionalista, de um pânico moral diante de conteúdos e perspectivas que a escola tradicional transmitiria às crianças, como questionamentos aos valores tradicionais, discussões de gênero, raça, classe, religião, e isso entraria em conflito com as ideologias partilhadas pelo casal ou pela família das crianças.

Conclusões

Considerando os interesses diversos, pessoais e empresariais, do Estado e de grupos
heterogêneos envolvidos na questão, a autora é cautelosa mas sugere algumas
conclusões: Aponta para o papel da imprensa e da difusão de exemplos e modelos de educação, com a satanização da esfera pública e destaque para casos isolados de “sucesso”. Aponta o setor privado como o grande interessado no dilema, pois com o aumento da força do homeschooling, o Estado diminuiria sua interferência no controle e fiscalização sobre a educação, enfraquecendo assim o seu papel num dos temas mais relevantes para a sociedade, senão o mais relevante. Atrás da ideia de que “tudo que é privado é bom e tudo que é público é ruim” estaria a estratégia de privatização dos benefícios e socialização dos custos.


(1) Pro-Posições vol.28 no.2 Campinas maio/ago. 2017, ISSN 1980-6248, DOSSIÊ: HOMESCHOOLING E O DIREITO À EDUCAÇÃO, Maria Celi Chaves Vasconcelos ,Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. maria2.celi@gmail.com

(2) No Brasil, por exemplo, onde o ensino domiciliar não tem regulamentação específica na legislação vigente, os resultados do Censo Escolar, datado de 2013 (INEP, 2013), oferecem números significativos a serem incorporados nesse debate: “nos 190.706 estabelecimentos de educação básica do País estão matriculados 50.042.448 alunos, sendo que 41.432.416 (82,8%) em escolas públicas e 8.610.032 (17,2%) em escolas da rede privada” (p.12). Comparando esses dados aos do ano de 2012, no que se refere à educação básica, o Censo afirma que houve uma queda de 1,9 % nas matrículas da rede pública e, em contrapartida, a rede privada cresceu 3,5 %, o que demonstra um aumento considerável de um ano para outro.

(3) “Illich é autor da obra Deschooling society (1973), na qual propõe que se desescolarize a sociedade e que se evite que fundos governamentais sejam aplicados neste fim, desestabilizando o sistema de escolarização, assim como havia sido feito na separação da igreja do estado. Segundo Illich (citado por Holt & Farenga, 2003, p. 60), dever-se-ia alterar a Constituição dos países para proibir o estabelecimento de educação como um princípio legal. John Holt, por sua vez, passou parte de sua vida tentando descobrir maneiras de operar essas mudanças, porém percebeu que a maioria das pessoas jamais concordaria com o fim do financiamento das escolas do governo e procurou outras formas de avançar em direção ao objetivo de “empowering”, ou preparar as pessoas para crescer sem escolaridade. Para Holt (1976) (citado por Holt & Farenga, 2003), as escolas possuíam poder suficiente “para causar dor mental e física às crianças, para ameaçá-las, atemorizá-las e humilhá-las”

(4) Na prática, a opção “escola em casa” [ênfase no original] é uma educação na base de aulas particulares, onde só existe um aluno e, neste caso, o pai e\ou a mãe faz tanto papel de pai e\ou mãe como de docente; assume os dois papéis. Pelo contrário, a educação numa instituição escolar obriga a estabelecer um maior número de relações; as aulas agrupam, normalmente, entre 20 a 25 estudantes cada; nestas, os rapazes e as raparigas caracterizam-se por possuir distintos ritmos de aprendizagem, diferente bagagem cultural, expectativas díspares, diferentes capacidades e modalidades de inteligência, distinto sexo, etc., algo que converte esse grupo numa pequena representação do que é o mundo externo à aula, no qual eles vivem. (Torres Santomé, 2003, p. 46)


Diego Pansani

É servidor do (EA)2, profissional de assuntos administrativos e especialista em políticas públicas.

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