Vibrações quânticas e terremotos de bom senso.

por | maio 22, 2022 | Textos | 0 Comentários

A apropriação indevida de linguagem científica e seus efeitos danosos.

    Sal quântico? Colchão quântico? Terapia quântica? Coaching quântico? Com certeza ao longo de sua vida você já ouviu falar de algum desses termos, talvez por recomendação de alguém próximo ou até em anúncios na internet. Mas que quântica é essa de que estão falando tanto? Será mesmo que essas coisas podem ser quânticas? Para entender tudo isso, é importante entender como esses termos científicos foram incorporados por tratamentos alternativos.

 Cyntia Almeida, Gian Carlo Guadagnin, Gildo Girotto Júnior e Mariana Bercht Ruy

A quântica é o que é (e não o que acham que é)

    A teoria quântica integra áreas da física e da química que trabalham com o mundo material por meio de estudos que envolvem a probabilidade de ocorrência de eventos previstos. Essa probabilidade de ocorrência de eventos não é considerada pelos instrumentos teóricos da física clássica. 1 Mas, da necessidade de preencher lacunas na vida, ou resolver problemas que estão fora do nosso alcance, nosso sentimento de inconformidade se mistura com a não compreensão da ciência e faz surgir um misticismo que, por vezes, nos leva a crer em “milagres” da ciência, os quais, não existindo, são prometidos por farsantes na forma de produtos e serviços.

    O que se pensa cotidianamente sobre o “quântico” está associado, de alguma forma, a uma força, um poder ou efeito de átomos e moléculas sobre as nossas vidas. Isso se deve ao fato de que diversas áreas da química e da física não nos são familiares para associarmos alguns termos aos seus significados conceituais.

    “Quântica” vem do latim “quantum“, que significa literalmente “quanto”, isto é, uma quantidade, um valor, uma porção. De acordo com o site do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP), “originalmente, a física quântica recebeu este nome por causa das pequenas quantidades de energia que são trocadas na interação entre a luz (fótons) e átomos”2. São esses eventos e fenômenos que envolvem a energia das diferentes partículas (como o elétron) e da própria luz, que pode ser compreendida como um conjunto de fótons, que a mecânica quântica busca prever e explicar por meio de equações matemáticas. Dos estudos complexos e teorias científicas sobre esse mundo que ainda não conhecemos por completo, surge uma terminologia especializada, que, mal usada, dá brecha para os achismos do dia a dia e para a associação com eventos e produtos que não fazem o que dizem fazer.

    A incorporação de terminologia científica à fala do dia a dia resulta, frequentemente, no descolamento entre os termos e os conceitos científicos que eles representam. Ainda assim, esses termos vêm revestidos da autoridade que nós atribuímos à ciência. Das múltiplas áreas da física quântica surgem termos como “spin quântico”, “superposição quântica” e “tunelação” que passam a ser empregados de qualquer maneira em objetos comuns para que eles pareçam mais inovadores, mais capazes de facilitar e melhorar a vida. No caso da quântica, é frequente encontrar, aliado a esse discurso cientificizado, um discurso espiritualizado.

Castelo de areia

    O negócio começa a desmoronar quando observamos a forma como esses produtos alegados “quânticos” se apropriam da linguagem científica. Vejamos a “terapia quântica”:

“é uma técnica terapêutica que estuda a saúde do ser humano do ponto de vista dos elementos biofísicos e das energias quânticas que o constituem, conhecido também como Terapia Vibracional. Ou se pudermos definir em uma única frase seria: a unificação da Ciência com a Espiritualidade.”3

    Vamos pensar um pouco nessa definição. O que são “elementos biofísicos”? Que “vibrações” são essas que a terapia utiliza? Energia quântica existe? Unindo vários termos largamente utilizados pelas ciências, os charlatões da quântica confundem as pessoas que esperam realmente uma solução para seus problemas.4

    Essa é uma constante destes produtos e terapias: eles não explicam como funcionam, como agem e, quando muito, apresentam termos e mais termos que sozinhos não dizem nada, não elucidam ou esclarecem os “poderes” daquilo que está à venda. O discurso charlatão se aproveita da necessidade das pessoas de resolver seus problemas, e da confiança que depositamos naqueles que prometem nos ajudar, para não dar maiores explicações que evidenciariam as falácias que o constroem.5, 6

    Sim, é verdade, os átomos e as moléculas estão vibrando e trocando energia, interagindo uns com os outros o tempo todo; a vida nada mais é do que um amontoado de reações químicas. Entretanto, essas vibrações não são percebidas isoladamente em macro escala — aquela coceira no cotovelo não é um átomo vibrando em uma faixa energética diferente da normal. Os átomos, inclusive, não têm memória ou consciência, e não são capazes de “agir holisticamente” e “reorganizar padrões de energia” no corpo. Nossos processos biológicos são muito mais complexos e dependem de inúmeros processos químicos.

    Vamos olhar um sistema mais simples, como uma panela de água posta a ferver: antes mesmo de repousarmos a panela sobre o fogo, as moléculas vibram e se movimentam, mesmo que você não veja isso acontecendo. Essas vibrações são decorrentes das trocas energéticas (recepção e dissipação de calor da atmosfera, nesse caso) entre os átomos que compõem as estruturas das moléculas e o meio no qual elas estão.

    Tudo o que fornece energia faz com que as moléculas vibrem mais porque incrementa os processos de troca. Ao colocarmos a panela sobre o fogo aumentamos a quantidade de calor fornecida para as moléculas, e, por consequência, a agitação, e o movimento, que ocorre com maior velocidade e com mais choques entre as moléculas. Com o acúmulo de energia (nesse caso, o aquecimento da panela) o número de choques se torna grande o suficiente para produzir uma perturbação visível no sistema, a fervura. Essa energia da qual falamos não é transcendental, mas física; a energia da queima do gás faz com que as moléculas de água fiquem mais agitadas e se choquem mais umas com as outras. Quer dizer, para alterarmos a vibração das moléculas o caminho mais fácil é alterar a energia fornecida para elas, como no caso da água posta a ferver. As moléculas e átomos vibram em faixas de frequência específicas e alterar isso no nosso corpo não é exatamente tão fácil quanto em uma panela de água.

Boas energias

    Em geral, a união de espiritualidade e ciência acaba sendo apenas uma brincadeira de mau-gosto, às vezes perigosa. Espiritualidade e ciência são coisas diferentes, envolvidas em aspectos diferentes da nossa sociedade. Tanto o discurso espiritualista carregado de cientificismo como o discurso de linguajar científico carregado de espiritualidade devem ser tratados com cautela.

    Felizmente, a má-fé das pessoas que dizem aplicar conhecimentos científicos para melhorar a vida, mas que só estão se aproveitando das pessoas, está na corda bamba. Uma ideia legislativa9 quer ”proibir uso do termo ‘quântico(a)’ em serviços que não estão relacionados à física e suas áreas”. Ela esteve em consulta pública no portal e-cidadania do Senado Federal e pode ser um passo importante em direção a um mundo em que nossos problemas sejam resolvidos e até evitados de forma prática.

    Não se deixe derrubar pela avalanche de promessas de soluções mágicas, informe-se e se cuide. Quando estiver doente, procure auxílio de profissionais capacitados da psicologia e da medicina, alimente-se bem e cultive hábitos saudáveis para desfrutar de boas noites de sono em uma velha e tradicional cama. Estar “de bem com a vida” ou, como dizem por aí, “good vibes” tem a ver com isso.

Referências:

1 LEAL, Régis C. et al. A Química Quântica na compreensão de teorias de Química Orgânica. Química Nova, v.33, n.5, São Paulo, 2010. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422010000500037>

2 QUANTUM INTERACTIVE, IFSC-USP. O que é física quântica? Disponível em: <https://www.ifsc.usp.br/~quantumnano/nocoes-basicas/fisica-quantica/>

3 MIL E UMA VIAGENS. Terapia Quântica. Disponível em:
<https://www.mileumaviagens.com.br/terapia/#:~:text=Quando%20um%20indiv%C3%ADduo%20se%20torna,atrav%C3%A9s%20do%20autoconhecimento%20e%20autoconsci%C3%AAncia.>

4 MACHADO, Sandro da S. L.; CRUZ, Frederico de F. de S. A.. Teoria Quântica e a Apropriação do Conhecimento Científico: O uso da História e Filosofia da Ciência pelos Misticismos. Anais Eletrônicos do 15º Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia. Florianópolis, 2016. Disponível em:
<https://www.15snhct.sbhc.org.br/resources/anais/12/1473986841_ARQUIVO_ATeoriaQuanticaeaApropriacaodoConhecimentoCientifico.pdf>

5 SCHERMA, Marcio A. Charlatanismo Quântico e Ciência. Disponível em: <https://salthe.com.br/charlatanismo-quantico-e-ciencia/>

6 YAMASHITA, Marcelo. A mentira das Terapias Quânticas. Disponível em:
<https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2018/11/13/mentira-das-terapias-quanticas>

7 OLIVEIRA, Adilson. O spin que move o mundo. Disponível em: <https://cienciahoje.org.br/coluna/o-spin-que-move-o-mundo/>

8 BEN, Felipe G. Aquecimento da água no micro-ondas NÃO se dá por ressonância! Disponível em: <https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=aquecimento-da-agua-no-micro-ondas-nao-se-da-por-ressonancia>

9 MAIA, Caroline. Proibir uso do termo “quântico(a)” em serviços que não relacionados a física e suas áreas. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=123420>

10 NOGUEIRA, Pablo. Como os hippies mudaram a física quântica. Disponível em:
<https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/11/como-os-hippies-mudaram-fisica-quantica.html>

Recomendações:

SALVADOR, Michele. O que (não) é Quântica! Guia dos entusiastas da Ciência, v. 1, n. 6, p. 5. UFABC, 2018. Disponível em: <https://proec.ufabc.edu.br/gec/voce-disse-ciencia/o-que-nao-e-quantica/>

NOVA PBS. Quântica – pesquisas e fronteiras. Disponível em: <https://www.pbs.org/wgbh/nova/?s=Quantum>

DOMAIN OF SCIENCE. O mapa da física quântica, video, 21m17s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gAFAj3pzvAA>

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