Cadê a água que tava aqui?

por | maio 23, 2022 | Textos | 0 Comentários

    Talvez você se lembre da crise hídrica que a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e alguns municípios enfrentaram no ano de 2014, onde o sistema Cantareira chegou ao nível crítico. Nos últimos meses de 2021 retornamos a ver muitas notícias sobre uma nova crise hídrica e até enfrentamos algumas de suas consequências. Mas o que aconteceu para isso se desencadear? Haviam medidas para contornar a situação?

Cyntia Almeida, Giovana Leme.

A história se repete…

    O planeta Terra possui apenas 3% de água doce em toda a sua superfície, sendo que somente 1% está disponível para consumo e o restante se encontra em geleiras. Dessa porcentagem que o ser humano dispõe para utilização, o Brasil é detentor de 12%1. Os três maiores sistemas de abastecimento de água no Brasil são o sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, o sistema Paraopeba, que é responsável pela distribuição de água na região metropolitana de Belo Horizonte, e o reservatório para abastecimento do Distrito Federal.2 Os rios também são usados na geração de energia nosso país, por meio de usinas hidroelétricas, sendo as cinco maiores, Usina Hidrelétrica de Itaipu (Paraná) , Usina Hidrelétrica de Belo Monte (Pará), Usina Hidrelétrica São Luíz do Tapajós (Pará), Usina Hidrelétrica de Tucuruí (Pará) e Usina Hidrelétrica de Santo Antônio (Rondônia).3

    E mesmo assim a falta de água não é um problema novo. O problema é nossa memória ser falha ao esquecermos desse tipo de acontecimento com a mesma rapidez que a velocidade da luz. É importante lembrar que enfrentamos problemas de abastecimento de água há muitos anos sendo, na região Nordeste, a situação mais crítica4. Também é importante diferenciar o termo escassez de estiagem. O primeiro se refere a um fenômeno social em que as pessoas perdem acesso a água e energia, o segundo é natural e ocorre devido a baixa vazão nos mananciais, como diz o Léo Heller, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais.5

    Um dos períodos de crises hídricas no Brasil ocorreu entre 2001-2002 e conhecido como a Crise do apagão, resultado da combinação de falta de políticas para geração e transmissão de energia com um longo período de estiagem, que reduziu drasticamente os níveis de água dos principais reservatórios.6

    Em 2014, tivemos o ano marcado não só pelo 7×1 na Copa do Mundo, mas também por mais um período de outra grande crise no abastecimento de água sendo, dessa vez, algo mais pontual com a região Sudeste, a grande afetada. Devido às baixas quantidades de chuva no Cantareira, o principal reservatório do Estado de São Paulo, a escassez era tão grande que foi necessário o uso do volume morto, ou seja, a água que fica abaixo das estruturas de operação e que para ser usado é preciso bombeá-la.7

Cadê as águas de março?

    Como cantavam Elis Regina e Tom Jobim, as águas de março fecham o verão, o período de maior quantidade de chuva na região Sudeste e Centro-Oeste, onde estão os principais reservatórios brasileiros. No entanto, nos últimos dois anos, até 2021, observou-se uma diminuição no nível dessas chuvas.8

    Em 2014 já se falava que o desmatamento poderia ser o responsável pelo período de estiagem, mas tal correlação não é tão simples. Porém, na mesma época, experimentos de modelagem numérica, que é um modelo de previsão de dados, afirmavam que com o passar dos anos a quantidade de chuvas, de longo período, iriam diminuir devido ao aumento da temperatura na Amazônia, resultado do desmatamento. Deste modo, a região sudeste iria passar por momentos de chuvas intensas e concentradas em um curto espaço de tempo, sendo seguido de períodos secos, algo que soa bem familiar com o que estamos vivendo.9

    Sete anos se passaram e, no fim de 2021, observamos que o que era especulado em 2014 se tornou real. Com os desmatamentos o período de chuva diminui drasticamente, como aponta Pedro Côrtes, professor do programa de pós-graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP, ao jornal da Unesp. O mundo está passando por consequências das ações humanas, já apresenta a temperatura 1ºC superior do que em 1990, um reflexo desse fato é que 2021 foi um dos anos mais quentes já registrados na história, mesmo com o fenômeno La Ninã, que tende a resfriar o oceano pacífico10. Somado a este fato, com a diminuição de área florestada as chances da seca ocorrer é de aproximadamente 2x mais daqui dez anos.9

    Um exemplo claro da seca é o Pantanal, que no período entre 1990-2020 cerca 71% de suas áreas alagadas passaram a ser apenas terra, sem água. O Brasil apresenta um aumento significativo de regiões secas, tendo perdido cerca de 16% de sua superfície com água, o que representa aproximadamente 3 milhões de hectares, como aponta uma pesquisa divulgada no jornal da Unesp em outubro de 2021. Esses fatores refletem significativamente nas temporadas de incêndio do Pantanal, que sofreram uma elevação tanto em 2020 quanto em 2021, para saber mais sobre esse crescimento no índice de queimadas.

    A escassez de água não irá afetar apenas o consumo do ser humano, mas também a geração de energia também, já que cerca de 65% da eletricidade brasileira é gerada nas hidrelétricas, assim a possibilidade de uma crise elétrica é real.

A eletricidade nossa de cada dia

    A matriz elétrica do Brasil, ou seja, a maneira como a eletricidade é gerada no nosso país é dividida da seguinte maneira: 65.2% hidráulica (água), 9.1% biomassa, 8.8% eólica (vento), 8.3% gás natural, 3.1% carvão e derivado, 2.2% nuclear, 1.7% solar e 1.6% derivados de petróleo, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), uma organização pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia.11

    No entanto, como vimos no decorrer desse texto a escassez de água tem batido nas nossas portas. O ano de 2021 bateu a marca de menor nível de chuva dos últimos 91 anos, e o fato da energia elétrica brasileira depender mais de 50% desse recurso é algo que já tem afetado a população e que pode se agravar ainda mais. Com isso, o valor da conta de luz tem sofrido grandes efeitos com grande elevação nos últimos tempos. O professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental no Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Luiz Cortês, aponta esse aumento como uma dolarização da energia.12

    Como assim dolarização? Com a falta do recurso aquoso, os governantes acionaram as termelétricas, que funcionam à base da queima de combustível não renovável e possuem um custo maior de operação visto que os combustíveis dependem da cotação da moeda internacional. Portanto, o valor da conta aumenta devido ao combo “falta de chuva e o valor dos combústiveis”. O governo pretendia que, com o aumento dos custos, o brasileiro consumisse menos energia, mas a queda foi de apenas 5%, o que é considerado um valor muito pequeno diante da crise.

    Calma que podemos pensar em algumas condições para contornar. Obviamente não vamos fazer chover do dia pra noite, no local certo, mas existem opções mais econômicas.

Uma hora a mais, água a menos

    Em 2019 o atual governo assinava o decreto que cancelava o horário de verão. Mas afinal, o que é o horário de verão e qual é a sua importância para que tenha um impacto direto na vida dos brasileiros?

    Criado nos Estados Unidos em 1874 por Benjamin Franklin, o horário de verão entrou em vigência no Brasil em 1931 na era Getúlio Vargas e tem o objetivo de aproveitar ao máximo a luz solar e reduzir consequentemente o consumo de energia elétrica ao adiantar em uma hora a Hora Oficial em alguns estados. Não precisamos acender a luz se ainda está claro.

Surpresa?!

    Já diria o ditado “você colhe o que planta”, e tem um pessoal que entende bem disso: o agronegócio brasileiro é responsável por um alto consumo de água. Claro que entendemos que é necessário para o plantio, mas algumas medidas poderiam ser tomadas para a diminuição dessa demanda e também de desperdício. Não basta insistir que apenas a população seja consciente, é necessário que políticas de controle sejam estabelecidas.5

    O Brasil possui um comitê de monitoramento elétrico desde 2003. Segundo o secretário de Energia Elétrica do Ministério de Minas e Energia, Christiano Vieira, ele ainda diz que a falta de chuvas é algo que afeta o mundo todo14. Vale ressaltar que o anúncio do possível problema com falta de água não é algo percebido nos últimos dois anos. Se olharmos as referências da crise de 2014 já havia indícios de que o desmatamento iria gerar tal problema. Será que políticas contra desflorestamento deveriam ter sido pensadas antes? Não existiam outras soluções que poderíamos recorrer?

    Nossos governadores não foram pegos de surpresa e não é como se tivessem chegado aqui e descoberto uma festa surpresa com o tema “Escassez hídrica”. Existe um comitê para analisar esses fatores e encontrar soluções há quase 20 anos.

    O Brasil é extremamente rico em fontes de energia e um exemplo claro é que em julho de 2021, a região Nordeste bateu o recorde de produção de energia eólica e solar sendo a energia produzida em um dia sendo suficiente para atender quase 100% da demanda da região15. No mesmo ano o Governo do Rio Grande do Norte assinava uma parceria com a EV Brasil para “armazenar o vento”16 cuja ideia é que a energia gerada pelas corrente de ar seja guardada e usada no momento certo.

    Outra fonte de energia que o País poderia explorar mais é a gerada pelos oceanos, que pode vir das marés, das ondas, correntes, gradiente de temperatura e salinidade. O Brasil já conta com uma usina no Ceará17, um projeto piloto que pode ser expandido, afinal o território nacional conta com uma costa que equivale a mais de 7 mil km.

Falta água, energia e outra coisa

    A nossa situação não é das melhores, mas também não é algo que nos pega de surpresa. Como podemos ver, há possibilidades de vivermos uma crise que é anunciada há muitos anos e que foi ignorada na mesma proporção. Colocar a culpa no clima como se não tivéssemos interferido nele ao longo de décadas é, no mínimo, ignorância. Infelizmente, vivemos tempos onde falta muito, mas principalmente de políticas públicas, uma gestão que organize esse caos assumindo as responsabilidades e apresentando planos concretos para resolver nossos atuais problemas, que invista na pesquisa e no desenvolvimento de soluções afinal, assim como o rio possui caminhos a seguir é possível afirmar que o Brasil também possui vias para a proposição de soluções.

Referências:

1 WORLD WIDE FUND FOR NATURE. Dia Mundial da Água. Disponível em:
https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/pantanal/dia_da_agua/. Acesso em: 14 fev. 2022.

2 AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO. OUTROS SISTEMAS HÍDRICOS. Disponível em: https://www.ana.gov.br/sar/outros-sistemas-hidricos. Acesso em: 14 fev. 2022.

3 PORTAL BIOSSISTEMAS. O potêncial hidrelétrico brasileiro e a maior usina geradora de energia do Mundo. Disponível em: http://www.usp.br/portalbiossistemas/?p=7865. Acesso em: 14 fev. 2022.

4 CNN BRASIL. Há um ano e meio, sistema Cantareira não atinge nível ideal de abastecimento. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/ha-um-ano-e-meio-sistema-cantareira-nao-atinge-nivel-ideal-de-abastecimento/. Acesso em: 14 fev. 2022.

5 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Crise hídrica no Brasil: causas e efeitos são analisados no programa Conexões. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/risco-de-crise-hidrica-no-brasil-causas-e-efeitos-sao-analisados-no-programa-conexoes. Acesso em: 14 fev. 2022.

6 O GLOBO. Da falta de estrutura fez-se a ‘crise do apagão’ no Brasil do início do século XXI . Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/da-falta-de-estrutura-fez-se-crise-do-apagao-no-brasil-do-inicio-do-seculo-xxi-9396417. Acesso em: 14 fev. 2022.

7 AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO. Sistema Cantareira. Disponível em: https://www.gov.br/ana/pt-br/sala-de-situacao/sistema-cantareira/sistema-cantareira-saiba-mais. Acesso em: 14 fev. 2022.

8 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB. UFPB lança boletim com dados de satélites sobre as chuvas no Brasil em 2020. Disponível em: https://www.ufpb.br/ufpb/contents/noticias/ufpb-lanca-novo-boletim-sobre-as-chuvas-no-brasil-em-2020. Acesso em: 14 fev. 2022.

9 MARENGO, J. A.; ALVES, L. M. Crise hídrica em São Paulo em 2014: seca e desmatamento. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 19, n. 3, p. 485-494, mês. 2016. ISSN 2179-0892.

10 O GLOBO. Sete últimos anos foram os mais quentes já registrados aponta órgão global de meteorologia. Disponível em: https://oglobo.globo.com/um-so-planeta/sete-ultimos-anos-foram-os-mais-quentes-ja-registrados-aponta-orgao-global-de-meteorologia-25259822. Acesso em: 14 fev. 2022.

11 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Matriz Energética e Elétrica. Disponível em: https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica. Acesso em: 14 fev. 2022.

12 JORNAL DA USP. Falta de água provocou a dolarização da energia elétrica no Brasil. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/falta-de-agua-provocou-a-dolarizacao-da-energia-eletrica-no-brasil/. Acesso em: 14 fev. 2022.

13 JORNAL DA USP. Horário de verão poderia contribuir para a diferença entre oferta e demanda. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/horario-de-verao-poderia-contribuir-para-a-diferenca-entre-oferta-e-demanda/. Acesso em: 14 fev. 2022.

14 AGÊNCIA BRASIL. Brasil em Pauta discute os desafios da crise hídrica no país. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-09/brasil-em-pauta-discute-os-desafios-da-crise-hidrica-no-pais. Acesso em: 14 fev. 2022.

15 GOVERNO DO BRASIL. Região Nordeste bate recorde na geração de energia eólica e solar. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/energia-minerais-e-combustiveis/2021/07/regiao-nordeste-bate-recorde-na-geracao-de-energia-eolica-e-solar. Acesso em: 14 fev. 2022.

16 TILT UOL. Realmente dá para ‘estocar vento’; veja como RN vai fazer isso. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/10/21/como-o-rio-grande-do-norte-vai-estocar-energia-gerada-a-partir-do-vento.htm. Acesso em: 14 fev. 2022.

17 PORTAL BIOSSISTEMAS. Energia das ondas no Brasil.. Disponível em: http://www.usp.br/portalbiossistemas/?p=7953. Acesso em: 14 fev. 2022.

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