DESFRALDAR A BANDEIRA

por | maio 23, 2022 | Textos | 0 Comentários

Pensando sexo, sexualidade e gênero para além da normatividade

    Junho é o mês do orgulho LGBTQIA+ e podemos observar um desabrochar de arco-íris nas redes sociais. Mas o que sabemos sobre a sexualidade humana? E, como educadores, qual é nosso lugar frente a essa questão na busca por um mundo mais livre e receptivo à diversidade?

Gian Carlo Guadagnin e Mariana Bercht Ruy

Nós que aqui estamos

    Em muitas das séries, filmes e comerciais que vemos por aí, têm aparecido cada vez mais personagens de diferentes sexualidades, cuja presença nessas narrativas é constantemente questionada por uma parcela do público. Esse questionamento se deve à ideia de que essa exposição midiática fará com que as pessoas “tornem-se gays” e que em outros tempos não havia tantas pessoas LGBTQIA+ quanto há hoje. No entanto, não é de hoje que essas pessoas existem e “tornar-se gay” não é lá tão simples.

    A dicotomia entre uma “normalidade” heterossexual e um desvio a ela, gay, não é verdadeira; hoje entendemos a sexualidade humana como um espectro, em que estão incluídas a heterossexualidade, a homossexualidade masculina, a feminina e tudo aquilo que fica entre esses extremos (motivo pelo qual deixamos de falar em “orgulho gay” para abranger toda essa diversidade).

    Atualmente, entendemos a sexualidade como um fenômeno biopsicossocial [1]. Isso significa dizer que entendemos que nossos comportamentos e preferências naquilo que concerne a interação sexual com o outro são determinados por fatores biológicos, psicológicos e sociais.

    Os fatores biológicos são aqueles relacionados à determinação do nosso sexo biológico (aquele atribuído quando nascemos) e ao desenvolvimento e funcionamento do nosso corpo. São comuns a toda a nossa espécie e podem estar ligados à genética, à epigenética e aos nossos hormônios, entre outras coisas.

    Provavelmente, ao falar de sexo, você já encontrou por aí a dicotomia “masculino vs. feminino”, em que o “masculino” é determinado pela presença de cromossomos XY e o “feminino” é determinado pela presença de XX. No entanto, aqui também a dicotomia parece não se aplicar. Além de haver outras conformações possíveis de cromossomos (que podem vir a resultar em indivíduos machos ou fêmeas), há também os indivíduos intersexo (a letra I em LGBTQIA+), em que características sexuais masculinas e femininas coexistem [2].

    Os fatores psicológicos e sociais são mais entrelaçados entre si e dizem respeito à forma como o indivíduo se sente e se entende na sociedade e às determinações sociais que o cercam. Eles passam, entre outras coisas, pela identificação de gênero.

    Por muito tempo, nossa sociedade entendeu que gênero e sexo biológico eram, se não a mesma coisa, coisas inseparáveis uma da outra. Hoje, com o avanço de áreas como os estudos de gênero e a teoria queer (de que trataremos mais adiante), entendemos que gênero é algo socialmente construído e performado pelo indivíduo que se identifica com ele. Se antes entendíamos gênero também na dicotomia “masculino vs. feminino”, hoje entendemos que há todo um espectro entre esses dois gêneros [3]. Entendemos, também, que uma pessoa pode não se identificar com o gênero tipicamente associado ao sexo biológico que lhe foi atribuído quando do seu nascimento. Essas são as pessoas transgênero, um dos três Ts (transexual, transgênero e travesti) representados pelo T em LGBTQIA+. As pessoas que se identificam com o gênero atribuído ao sexo biológico identificado quando do seu nascimento são as pessoas cisgênero. Há pessoas que não se identificam nem com o extremo “masculino” do espectro de gênero nem com o “feminino”. São as pessoas não-binárias, cuja performance tende a se dar entre os dois extremos do espectro.

    O gênero é importante também para pensarmos nas pessoas pelas quais nos atraímos. Quando pensamos que nos atraímos por homens ou por mulheres, por exemplo, estamos, em geral, pensando na performance de feminilidade ou de masculinidade dessas pessoas; ou seja, em como elas se apresentam para nós como homens ou mulheres (pela sua forma de se vestir, se movimentar, falar, por exemplo).

    As orientações monossexuais são aquelas em que a pessoa se atrai por apenas uma performance de gênero. Estão compreendidas nelas as pessoas heterossexuais, que se atraem unicamente pelo gênero que difere do seu (mulheres por homens e homens por mulheres) e as pessoas homossexuais. As pessoas homossexuais são aquelas que se atraem apenas por pessoas de mesmo gênero que aquele com o qual se identificam: homens que se atraem por homens são gays, mulheres que se atraem por mulheres são lésbicas. Em uma das definições correntes, as pessoas que se atraem por mais de uma performance de gênero são denominadas bissexuais, enquanto aquelas para quem a performance de gênero não importa são denominadas pansexuais. São duas orientações sexuais próximas e estão, ambas, representadas pelo B na sigla. Há ainda as pessoas que, independentemente de performance de gênero, não sentem atração sexual. São os assexuais. Temos, aqui, além do B, o G, o L e o A da sigla LGBTQIA+. No + estão representadas todas as outras múltiplas possibilidades de autodeterminação. Quem determina sua sexualidade é a própria pessoa; a autodeterminação de uma pessoa sempre deve ser respeitada.

    O Q da sigla representa as identidades queer. Queer é um termo guarda-chuva que abrange as formas de ser não cis-heteroconformativas, entendendo tanto a sexualidade como o gênero como aspectos fluidos da vida de uma pessoa. O termo, que era usado de forma pejorativa, foi apropriado e ressignificado nos anos 80, no início da teoria queer, que propõe uma desconstrução da ideia de que haveria uma sexualidade “natural”, relacionada à reprodução, e uma relação também “natural” entre sexo biológico e gênero. A teoria queer, ao propor que tudo é performance e que tudo é fluido, propõe uma política não identitária bastante alinhada, por exemplo, com os ideais do feminismo interseccional. [4]

Ensinar liberdade

    A escola, que aparece sendo idealmente um espaço de desenvolvimento e abertura de horizontes, na verdade raramente o é quando falamos de sexualidade. Essa questão fica costumeiramente a encargo do professor de ciências, ou de biologia, numa postura que denota o favorecimento dos fatores biológicos da sexualidade, e não foge ao padrão de projetar e perpetuar estereótipos associados a leituras conservadoras de pesquisas científicas, caindo no binarismo e na cis-heteronormatividade. A sexualidade está incorporada às aulas sobre reprodução comparada que, quando muito, abordam temas que tangenciam a reprodução e o ato sexual humano, como as ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) [5].

    O que temos visto é que a implementação de um currículo que englobe a compreensão do indivíduo e sua sexualidade levando em consideração também fatores sociais, históricos e psicológicos vem sendo combatida pelos movimentos conservadores, que a consideram “ideologia de gênero”, capaz de moldar a personalidade do sujeito. Ao contrário disso, o que os estudos sobre sexualidade propõem é, justamente, que se encare esse aspecto natural e complexo da vida do ser humano de forma mais aberta, sem procurar submeter as subjetividades a moldes preconcebidos.

    Um dos caminhos para superar a visão simplificadora empregada atualmente a respeito da sexualidade é implementar práticas pedagógicas que ampliem os espaços de discussão e que trabalhem as questões relacionadas a ela de forma transversal entre áreas do conhecimento, de modo que sejam atrativas e que se mantenham atualizadas e em transformação, compreendendo que um currículo para a diversidade trabalha o conhecimento como uma questão interminável e sempre renovada, e não como um conjunto de certezas absolutas e inabaláveis.

    Ao compreendermos o conhecimento dessa forma, como algo em constante construção, podemos também alterar nossa relação com ele e com os temas que o compõem, como a sexualidade. Esse movimento — de constante aperfeiçoamento dos processos educacionais e das ações formativas continuadas de base — é dependente de um cuidadoso e sensível envolvimento das comunidades e das pessoas que têm participação e impacto no ambiente escolar, de modo a se refletir em todos os aspectos do ensino-aprendizagem.

Don’t rain on my parade*

    A história é marcada por momentos de maior e menor liberalidade, fruto das tensões sociais, políticas e religiosas. Este que vivemos hoje, de conquistas políticas e sociais, deve muito à Revolta de Stonewall, acontecida nos Estados Unidos em 1969 (sobre a qual você pode saber mais aqui). Mas, mesmo depois dela e de uma crescente nas mobilizações das causas LGBTQIA+, que incluem a ocupação do espaço público com as famosas paradas gay, foi só em 17 de maio de 1990 que a Assembleia Geral da OMS tirou a homossexualidade (então “homossexualismo” — o sufixo “-ismo” foi abandonado por ter sido usado, na época, para designar uma doença) da lista de doenças psiquiátricas. Na data, comemora-se o dia internacional contra a homofobia. A transexualidade, no entanto, só deixou de ser considerada doença pela mesma instituição em 2018. Apesar de nunca ter figurado na lista de doenças (por ser entendida como uma “quase normalidade” com “desvios homossexuais” ocasionais), a bissexualidade também foi, até recentemente, assim como a homossexualidade e a transexualidade, entendida e tratada como doença.

    Mas apenas não tratar como doença não é suficiente. Estudos observaram que a incidência de depressão e ansiedade em pessoas bissexuais é maior que em pessoas lésbicas e gays [6]. Isso se deve principalmente a três fatores: a quantidade e o tipo de experiências de discriminação sobre a orientação sexual que as pessoas bissexuais sofrem, a invisibilidade e apagamento dessas pessoas dentro do conjunto da comunidade e a falta de suporte para a afirmação do indivíduo bissexual. Sabemos, pela miríade de relatos pessoais que vemos ao nosso redor, que as pessoas trans e travestis encontram grande dificuldade de acolhimento mesmo nos espaços LGBTQIA+ ou feministas. Há, inclusive, estudos sobre a dificuldade de acesso dessas pessoas a espaços de saúde, como o próprio SUS [7].

    Pensar nisso nos permite perceber que, por mais que tenhamos progredido, mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+, além da sociedade como um todo, ainda há muito a ser feito no sentido de criar espaços e redes de apoio compreensão e aproximação, em um ambiente que seja livre, digno e amoroso para todes.

*Em inglês a expressão “don’t rain on my parade”, cujo significado literal é algo como “não chova na minha parada”, significa também, de forma figurativa, “não seja estraga prazeres”.

Referências:

[1] DENMAN, C. Sexuality: a biopsychosociologial approach. Palgrave Macmillan, 2004.

[2] GRIFFITHS, D. Shifting syndromes: Sex chromosome variations and intersex classifications. Social Studies of Science, 2018, v. 48, n. 1, p. 3-24. Acesso em 13/06/2021. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0306312718757081.

[3] [4] GOBER, G. Commentary on Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality by Anne Fausto-Sterling. Humana.Mente Journal of Philosophical Studies, 2012, v. 22, p. 175–187. Acesso em 14/06/2021 em:
https://www.researchgate.net/publication/267269173_Commentary_Sexing_the_Body_Gender_Politics_and_the_Construction_of_Sexuality

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Roberto Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Nova Iorque: Routledge, 2011 [EBOOK].

[5] COELHO, L. J., CAMPOS, L. M. L. Diversidade sexual e ensino de ciências: buscando sentidos. Ciência e Educação, Bauru, v. 21, n. 4, p. 893-910. 2015. Acesso em 14/06/2021 em: https://www.scielo.br/j/ciedu/a/fCSb69yzh8wDm3tWXKYsFkS/?format=pdf&lang=pt

LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas [online]. 2001, v. 9, n. 2 , p. 541-553. Acesso em 14/06/2021 em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200012

[6] ROSS, L. E., SALWAY, T., et al. Prevalence of Depression and Anxiety Among Bisexual People Compared to Gay, Lesbian, and Heterosexual Individuals:A Systematic Review and Meta-Analysis. The Journal of Sex Research. 2018. Acesso em 14/06/2021 em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/00224499.2017.1387755

[7] ROCON, P.C, RODRIGUEZ, A. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. 2016. Acesso em 14/06/2021 em: https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.14362015

DE CARVALHO PEREIRA, L.; CHAZAN, A. O Acesso das Pessoas Transexuais e Travestis à Atenção Primária à Saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 2019. Acesso em 14/06/2021 em: https://doi.org/10.5712/rbmfc14(41)1795

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