Mutações virais – Parte 1
Mutações em vírus acontecem, são uma parte da evolução e se dão de forma aleatória. Mesmo não entendendo todos os caminhos dessa mudança, é possível reconhecer alguns aspectos envolvidos no seu acontecimento, o que nos permite não só identificar variantes virais, mas também nos proteger delas. Neste primeiro texto, apresentamos um panorama sobre como os vírus se constituem, funcionam, reproduzem e mutam, para começarmos a pensar em como essas mutações afetam a taxa de transmissibilidade ou podem gerar uma doença mais grave.
Gian Carlo Guadagnin, Stephanny dos Santos Nobre e Gildo Girotto Júnior
O que são os vírus?
Desde 2019 vivemos o aumento de uma preocupação popular [1] com os vírus e as doenças que eles podem causar, movimento que não foi diferente dentro dos círculos científicos, onde campos da biologia se debruçaram sobre a natureza e origem do Sars-Cov-2, dadas as necessidades sanitárias da pandemia
As estruturas microscópicas denominadas vírus, que têm tirado o sono de todos, são constituídas por um agrupamento de macromoléculas organizadas, podendo ser consideradas parasitas intracelulares [2]. Eles existem em um grande número de formatos e composições, o que torna difícil generalizar suas características. O que podemos dizer é que são formados por uma série de camadas. A camada mais externa, o envelope ou a carcaça do vírus, é uma capa de proteínas e gorduras que protege as partes mais internas, como o nucleocapsídeo que contém o material genético (que pode ser RNA ou DNA, dependendo do tipo de vírus, e é a parte fundamental para o estabelecimento dos demais mecanismos e funções virais). Além da proteção, o envelope é responsável por iniciar o contato por meio da junção de estruturas denominadas proteínas de envelope, peplômeros ou espículas virais (spikes), com os receptores de informações químicas em nossas células — que também são responsáveis por trocar informações com células de defesa (linfócitos) e hormônios [3]. A função do conjunto da estrutura viral é levar a informação genética do parasita a salvo para dentro da célula hospedeira; fora dela, os vírus não possuem metabolismo ativo e não se reproduzem.
Caracterizando os vírus
É consenso que o que importa na identificação de um vírus, mais do que suas características fenotípicas, é o material genético.
Pode parecer absurdo, mas o número de genomas virais conhecidos não chega a 10 mil, segundo o Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV). Esse número foi estabelecido por meio de uma contagem que começou nos anos 1970 e ganhou impulso nos últimos anos.
Apenas em 2020, mais de 2 mil genomas (conjuntos de bases que formam um material genético — DNA ou RNA) virais foram identificados [4]. Quer dizer, mais de 2 mil espécies [5], variantes ou unidades virais foram descritas e aguardam classificação. Mas ainda conhecemos pouco. O processo de identificação é complexo e se dá por meio de diferentes métodos, como a metagenômica e processos de clonagem, que permitem fazer a decodificação do material genético, a classificação biológica do organismo ou vírus e monitorar suas mutações [6]. Os cientistas estimam que existem 1031 unidades virais só nos oceanos e boa parte delas não pertence a nenhum grupo já existente.
Uma mão nem sempre lava a outra
As mutações dependem da maquinaria celular e estão sujeitas às condições dentro da célula na qual a replicação acontece: ao conectar seus spikes à célula hospedeira, os vírus utilizam os processos e estruturas internos dela, como exemplificado abaixo. Na figura, ilustramos esse processo tendo como exemplo o vírus do HIV, um retrovírus causador da AIDS. Ressaltamos que, como os vírus são muitos e variados, não é possível fazer generalizações que cumpram com as especificidades de cada processo e uso da maquinaria celular.
Figura 1: Ciclo replicativo do HIV
Gian Carlo Guadagnin/Sala Cinco
Adaptado de Biologia de Campbell [7]
Os vírus que armazenam as informações genéticas sob a forma de DNA costumam ter um processo de replicação mais demorado que os com RNA (constituído por menos genes) porque utilizam mais a maquinaria celular [8]. Grande parte dos vírus com DNA utilizam enzimas (DNA polimerases) das células hospedeiras para revisar, reconhecer e corrigir erros durante o processo de cópia. Os vírus com RNA utilizam enzimas (RNA polimerases) que não possuem mecanismos de revisão, de modo que a suscetibilidade a erros na sequência genética aumenta [9]. Caso um erro ocorra, temos uma mutação, porque a sequência genética final dos novos vírus será diferente daquela presente na unidade de referência que infectou a célula. Sequências genéticas virais que diferem em uma ou mais mutações observáveis por nós determinam as variantes [10].
Ao ocorrer no material genético, as mutações podem desencadear alterações na estrutura da capa protéica, nas proteínas, nos spikes e outras estruturas que compõem o conjunto viral — como veremos no próximo texto desta série. Entretanto, não alteram o funcionamento da mecânica do parasita, isto é, a forma e as etapas da infecção das células e da replicação seguem dependendo das mesmas estruturas. Quando as mutações causam melhorias na forma de disseminação, maior capacidade de replicação e resistência a medicamentos e vacinas ou outras adaptações vantajosas ao vírus, a sequência mutante se propaga por novas cópias dentro de uma população. O mesmo processo ocorre com mutações neutras ou silenciosas, que não produzem vantagens ou desvantagens. Se a mutação é prejudicial à sobrevivência e multiplicação, a alteração será eventualmente eliminada da população. [11]
De graça, até injeção na testa
Como vimos, mutações que levam a variantes virais dependem da replicação do vírus. Quanto menos organismos infectados, menor a quantidade de replicações, menores são as chances de termos a produção de novas linhagens e cepas (para saber mais sobre, clique aqui) e menor a possibilidade destas se adaptarem ao meio se tornando resistentes às nossas medidas de controle, como as vacinas. A gripe, por exemplo, um vírus do tipo Influenza, infecta hospedeiros e replica-se muito rápido, levando a contínuas mutações, o que nos obriga a incrementar as vacinas existentes ano a ano para que elas passem a combater as novas formas circulantes identificadas.
Assim, é importante lembrar que quanto maior for o nosso cuidado e proteção contra os vírus, mais difícil será a efetivação de mutações e o surgimento de variantes transmissíveis e, eventualmente, mais perigosas. Para isso, além dos processos de higienização cotidianos e do uso de máscaras, é fundamental que todos que puderem tomem as vacinas, para proteger a si e aos outros: as vacinas salvam vidas e, até o momento, têm sido eficazes contra as novas variantes do coronavírus [12]. Contudo, não podemos descartar a ideia de que tomar novas doses seja necessário, da mesma forma como acontece com outras doenças, como a febre amarela, cujo reforço é administrado a cada 10 anos. [13]
No próximo texto abordaremos um pouco mais dos estudos sobre mutações já identificadas e analisadas para o novo coronavírus.
Referências:
[1] Nova pesquisa revela preocupações dos brasileiros em relação à covid-19. IBPAD. Disponível em:
<https://www.ibpad.com.br/blog/nova-pesquisa-com-participacao-do-ibpad-revela-preocupacoes-dos-brasileiros-em-relacao-covid-19/>
[2] KROSMAN, S. N. et al. VIROLOGIA. Rio de Janeiro: GEN Guanabara Koogan, 2014. E-BOOK. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/books/9788595151871>
[3] Receptores celulares. IBB Unesp. Disponível em:
<https://www2.ibb.unesp.br/departamentos/Morfologia/material_didatico/Prof_Cesar_Martins/Biologia_celular/Aula_9_Receptores_Membrana.pdf>
[4] Introdução à taxonomia de vírus. ICTV. Disponível em: <https://talk.ictvonline.org/taxonomy/w/ictv-taxonomy>
[5] Beyond coronavirus: the virus discoveries transforming biology. Nature. Disponível em:
<https://www.nature.com/articles/d41586-021-01749-7?utm_source=Nature+Briefing&utm_campaign=023ef28091-briefing-dy-20210630&utm_medium=email&utm_term=0_c9dfd39373-023ef28091-43269945>
[6] FRANÇA, F. S. Micologia e virologia. Coautoria de Samantha Brum Leite. Porto Alegre: SER – SAGAH, 2019. E-BOOK. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/books/9788595026827>
SANTOS, N. S. de O. Virologia humana. Coautoria de Maria Teresa Villela Romanos e Marcia Dutra Wigg. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. E-BOOK. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/books/978-85-277-2737-2>
[7] REECE, J. B. et al. Biologia de Campbell. Tradução de Anne D. Vilella et al. 10 ed. 1442 p. Porto Alegre: Artmed, 2015.
[8] The Virus: How do mutations cause viral evolution? YALE School of medicine. Disponível em:
<https://medicine.yale.edu/coved/modules/virus/evolution/>
Com a evolução não se Brinca. Instituto de Biologia/USP. Disponível em: <https://jornal.usp.br/artigos/com-a-evolucao-nao-se-brinca/>
[9] FLEISCHMANN, W. R. Viral genetics. In S. Baron (Ed.), Medical microbiology (4 ed., cap. 43). Galveston, TX: University of Texas Medical Branch at Galveston. Disponível em : <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK8439/#_A2323_>
The coronavirus is mutating — but what determines how quickly? National Geographic. Disponível em:
<https://www.nationalgeographic.com/science/article/the-coronavirus-is-mutating-but-what-determines-how-quickly>
[10] O que são mutações, linhagens e cepas. Fiocruz. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/o-que-sao-mutacoes-linhagens-cepas-e-variantes>
[11] CURSO DE VIROLOGIA BÁSICA. UFRGS. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/labvir/material/poligrafo1.pdf>
[12] BERNAL, J. L. et al. Effectiveness of Covid-19 Vaccines against the B.1.617.2 (Delta) Variant. The New England Journal of Medicine. 2021. Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2108891>
[13] Cartilha de Vacinas. Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cart_vac.pdf>
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