Liberdade de escolha de corpos com útero, reprodução de uma determinada cultura excludente, efeitos colaterais no corpo humano, interesses econômicos e sociais. Muitos assuntos poderiam ser listados para falarmos destes tópicos, mas o que abordaremos aqui hoje se refere ao uso e desenvolvimento de anticoncepcionais hormonais. Isso mesmo, aqueles “remedinhos”, geralmente usados para evitar a gravidez. O que está por trás do desenvolvimento dos anticoncepcionais e como os assuntos anteriormente mencionados estão conectados com esse tema? Vamos explorar um pouco mais sobre isso.
Cyntia Almeida e Letícia Sayuri
Início de conversa
Relações sexuais sempre foram marcadas por diferentes significados ao longo do tempo. Desde relações de abuso, da busca pelo prazer até aspectos da reprodução e continuidade da espécie, envolvendo também inúmeros pontos culturais, políticos e religiosos (se é que podemos separar isso tudo). Aqui vamos falar de um dos aspectos envolvidos nessa relação entre corpos: o uso de anticoncepcionais hormonais. Como surgiram? Quem usa e quem deveria usar? O que causam no corpo e como são culturalmente vistos? É sobre isso e sobre algumas outras coisas mais.
Para pessoas com útero, além do receio das ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), questões relacionadas à gravidez não planejada/não desejada sempre foram marcadamente sensíveis. A gravidez não desejada é, ainda hoje, associada à exclusão familiar, à ausência de planejamento familiar e também envolve aspectos relacionados à gestação precoce de jovens. Por diferentes razões, ao longo do tempo surgiram muitas maneiras de prevenção da gravidez.
Dos diferentes métodos chamados contraceptivos, temos uma classificação inicial que é bem ilustrativa. Existem métodos contraceptivos denominados físicos (ou de barreira) e também os hormonais. Os primeiros, de barreira, são aqueles que, como o próprio nome diz, criam uma barreira física que impede o contato entre o espermatozóide e o óvulo. Como exemplo, temos a famosa camisinha e o DIU (Dispositivo Intrauterino)
O primeiro dispositivo de barreira, algo parecido com o que hoje chamamos de camisinha, era inicialmente composto por tripa de animais e óleo de amêndoas para lubrificação. Esse método foi usado até a descoberta da vulcanização da borracha, em 1839, o que a tornava mais flexível em temperatura ambiente. No entanto, esse preservativo era grosso e caro, o que levava a sua reutilização (e vamos concordar que essa ideia não parece ser muito higiênica). Esse processo durou até 1880 quando surgiu a primeira camisinha de látex, ou seja, foram 41 anos de relações com preservativos que eram reutilizados.1
Muitos processos foram desenvolvidos ao longo dos anos e, em 1909, lança-se o primeiro DIU em forma de anel e modulado com intestino do bicho da seda.2 Ele não foi usado por um longo período por apresentar altos riscos de infecção.1
Já os métodos hormonais visam dificultar a ovulação através de dosagens no corpo de hormônios relacionados ao ciclo menstrual, sendo os mais conhecidos o estrógeno e a progesterona. É sobre esses últimos que queremos falar um pouco mais em detalhes.
No dia 03 de maio de 1960 foi lançada a primeira pílula anticoncepcional, a Enovid, produzida através de uma parceria entre as empresas G.D. Searle e Syntex S.A.11 Ela era um método contraceptivo oral e apresentava 10x mais hormônios do que os que conhecemos hoje, o que consequentemente poderia gerar vários riscos à saúde. Isso fez com que esses comprimidos fossem reformulados pelo menos duas vezes em um período de 30 anos.3
Ninguém entra, ninguém sai.
Mas como assim hormônios? Uma pílula anticoncepcional é composta de hormônios? Sim! E vamos falar um pouco de aspectos bioquímicos associados a essa composição. Já diria o Capitão Nascimento: não vai subir ninguém. E é pensando nisso que vamos apresentar como esses métodos se modificaram ao longo dos anos.
O primeiro anticoncepcional oral, com ação bioquímica, apresentava a proporção de 150 mg de estrogênio sintético e 9,85 mg do derivado progesterona3; atualmente os níveis variam entre 0,035 mg e 0,015 mg de estrogênio, sendo esses valores chamados de baixa dosagem.4 Esse método é considerado bioquímico porque impede a formação de novos óvulos por meio da interação das substâncias ingeridas com nosso organismo.5 Em resumo, a ação de hormônios externos ao corpo modifica o ciclo de produção de óvulos e essa modificação gera efeitos diversos.
Além de dificultar a gravidez, o anticoncepcional traria outros benefícios, como uma modificação na duração da menstruação, com um tempo mais curto, por exemplo, com menor volume de sangue, a diminuição do sangramento em excesso, e das cólicas. Seu uso também poderia estar relacionado à diminuição dos riscos de câncer de ovário. Dessa forma, seria possível um período menstrual mais ameno com baixas chances de gravidez fazendo uso desse medicamento continuamente.
Entretanto, o anticoncepcional também está atrelado a uma grande quantidade de efeitos colaterais. De maneira geral, já foram relatados a queda de libido, exaustão, elevação do colesterol LDL, queda do HDL, aumento de pressão arterial, depressão e infarto agudo do miocárdio como consequências.6 A depender do histórico familiar da pessoa usuária e de seu estilo de vida, alguns riscos se agravam; por exemplo, mulheres cis com predisposição a doenças cardiovasculares apresentam maiores riscos de desenvolverem trombose arterial por efeito do estrogênio. Já mulheres cis com hipertensão, fumantes ou com mais de 35 anos apresentam maiores riscos de sofrerem um acidente vascular encefálico (AVE) e cerebral (AVC), por conta do mesmo hormônio.6, 7
Foi relatado também que as chances de desenvolvimento de câncer de colo do útero são aumentadas em uso precoce do medicamento. O uso precoce também pode impactar na fertilidade; um estudo realizado em 2013 publicado na revista Human Reproduction relata que quanto mais tempo o anticoncepcional é usado, menos ovulações ocorrem e, assim, mais preservada é a fertilidade.5
Mesmo com tantos efeitos, houve um levantamento de que cerca de 75% das mulheres cis nos países em desenvolvimento faziam uso do medicamento, dado esse que se torna contrastante aos 18% das mulheres cis usuárias em países desenvolvidos. 6
“Pare de tomar a pílula”????
Talvez muitos não conheçam a famosa canção do compositor e intérprete Odair José que dizia assim:
“Você diz que me adora
Que tudo nessa vida sou eu
Então eu quero ver você
Esperando um filho meu
Pare de tomar a pílula”
Pois bem, o uso das pílulas anticoncepcionais, para além dos efeitos no corpo humano, tem um contexto político e social bastante marcante. Por exemplo, a música de Odair José era uma crítica a uma política da ditadura militar de “estímulo” ao uso da pílula, que buscava atentar-se ao controle de natalidade. No entanto, ao ir contra o sistema imposto pela ditadura militar, o autor da letra reforça o estereótipo de que a pessoa amada não deve tomar a pílula para “provar o seu amor” por meio de uma gestação. Este é exemplo das questões relacionadas ao uso da pílula anticoncepcional.
Mas, outras questões podem ser colocadas. Um dos olhares que podemos destacar é que, apesar dos malefícios ao corpo que destacamos, a pílula trazia uma espécie de segurança para quem realizava esse tratamento. A pessoa poderia ter controle sobre o próprio corpo ao tentar não engravidar através do medicamento. Além de, posteriormente, esse medicamento poder ser usado como um tratamento para a Síndrome do Ovário Policístico.
Mas “pera aí”! Algo chama atenção em todo esse processo: apesar de toda a liberdade que esse método trouxe, afinal agora as pessoas podem escolher quando e de quem engravidar, a grande desfavorecida dessa história é a mulher cis, afinal é ela que irá ingerir uma bomba de hormônios. Por que este método é tão bem desenvolvido para mulheres cis e não o são para homens cis? Aliás, existe “pílula” masculina?
A proposta de impedir a concepção indesejada faz parte do que é chamado Planejamento Familiar segundo diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas é estranho pensar que o método hormonal é pensado e aplicado a mulheres cis, que teriam a possibilidade de engravidar no máximo 2 vezes ao ano, e não aos homens cis que poderiam gerar a gravidez todas as vezes que se relacionam sexualmente com uma mulher cis. Não seria mais lógico investir em um anticoncepcional masculino?
Essa é uma questão que historicamente pode ter muitas explicações. Desde a dificuldade de se desenvolver os medicamentos apropriados (dificuldade metodológica da ciência) até questões voltadas aos desenvolvedores da ciência (majoritariamente do sexo masculino), ao preconceito que homens tem em relação a “perder a libido”, ao controle do homem sobre o poder de abusar e não deixar “provas”, dentre outros.
Somente nas décadas recentes a questão dos anticoncepcionais masculinos ganhou maior atenção. Em 2022, começou a se falar sobre o primeiro anticoncepcional voltado para o público sem útero. Em trabalhos da Universidade de São Paulo (USP) vemos o desenvolvimento de dois tipos de procedimentos; um seria por meio de aplicação de um tipo de polímero nos vasos por onde saem os espermatozóides9 e o outro se refere a algo parecido com um banho de água quente com auxílio de ultrassom10. Outras pesquisas mais recentes sugeriram uma injeção que possibilitaria cortar a cauda dos espermatozóides, os incapacitando de fecundar o óvulo.12
Porém algo nos chama atenção nas duas reportagens: como apontamos no decorrer deste texto, existem riscos no uso de tratamentos voltados ao público feminino, enquanto que, para se desenvolver para o outro grupo, os cientistas possuem o cuidado de pesquisar muito mais, com o argumento de que há uma preocupação com a desregulação hormonal do masculino. No entanto, durante anos ocorre uma desregulação hormonal em um público amplo e não existe tamanho cuidado.
Infelizmente, isso reflete o machismo presente na nossa sociedade. Enquanto pessoas que consomem anticoncepcionais orais, da combinação de estrogênio e progesterona, sofrem com os efeitos colaterais, para homens esse processo é muito mais pensado, pois reflete em uma diminuição de libido, além de que culturalmente seria um sinal enfraquecimento da potência.
1 pra tu, 2 pra eu, não necessariamente nessa mesma ordem
Segundo a OMS, existem 20 tipos de contraceptivos voltados ao público com útero e apenas 2 para o outro grupo. Ainda que existam dificuldades no desenvolvimento de anticoncepcionais hormonais para homens, esses números refletem uma certa incoerência uma vez que a responsabilidade não deve ser colocada em só um dos parceiros. Há, de fato, aspectos que precisam ser abordados culturalmente.
Assim, todo esse processo seria muito mais simples e justo, se fosse dividido corretamente e não sendo feito pelo Pica Pau; se as preocupações, cuidados e responsabilidades fossem para todos os envolvidos nas relações.
Referências
1 FARINA, P. G. Planejamento familiar: acesso a métodos anticonceptivos e informações na rede de saúde pública de Vitória da Conquista, Estado da Bahia, Brasil. Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Lisboa, 2019. Disponível em: <https://run.unl.pt/bitstream/10362/116926/1/Dissertac%CC%A7a%CC%83o%20definitiva%20Pe%CC%81ricles%20Gimenes%20Farina.pdf>.
2 SOARES, J. A. da S. O seguimento de usuárias de dispositivo intra-uterino (diu) no serviço de planejamento familiar da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand – Universidade Federal do Ceará. Universidade Federal do Ceará – Faculdade de Medicina – Departamento de Saúde Materno-Infantil. Fortaleza, 2007. Disponível em: <https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/7015/1/2007_dis_jassoares.pdf>.
3 ALVES, J. E. D. O nascimento da pílula anticoncepcional e a revolução sexual e reprodutiva. UFJF. Juiz de Fora, 2018. Disponível em: <https://www.ufjf.br/ladem/2018/11/28/o-nascimento-da-pilula-anticoncepcional-e-a-revolucao-sexual-e-reprodutiva-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/#:~:text=Mas%20foi%20apenas%20no%20dia,concentra%C3%A7%C3%A3o%20muita%20alta%20de%20horm%C3%B4nios.>.
4 Especialistas esclarecem dúvidas sobre uso da pílula anticoncepcional. Agência Fiocruz. 2013. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/especialistas-esclarecem-d%C3%BAvidas-sobre-uso-da-p%C3%ADlula-anticoncepcional>.
5 Como fica a fertilidade depois de usar anticoncepcional por muito tempo? Pfizer. 2019. Disponível em: <https://www.pfizer.com.br/noticias/ultimas-noticias/uso-prolongado-de-anticoncepcionais-e-fertilidade>.
6 ALMEIDA, A. P. F de; ASSIS, M. M de. EFEITOS COLATERAIS E ALTERAÇÕES FISIOLÓGICAS RELACIONADAS AO USO CONTÍNUO DE ANTICONCEPCIONAIS HORMONAIS ORAIS. Rev. Eletrôn. Atualiza Saúde. Salvador, v. 5, n. 5, p. 85-93, jan./jun. 2017. Disponível em: <https://atualizarevista.com.br/wp-content/uploads/2017/01/efeitos-colaterais-e-altera%23U00e7%23U00f5es-fisiol%23U00f3gicas-relacionadas-ao-uso-cont%23U00ednuo-de-anticoncepcionais-hormonais-orais-v-5-n-5.pdf>.
7 LIMA, J. e S. Risco de trombose associado à terapia dos anticoncepcionais hormonais: uma revisão de literatura. Repertório UFPB. João Pessoa, 2017. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/3542>.
8 Espaço da gestante. Rio com Saúde. Disponível em:
<http://www.riocomsaude.rj.gov.br/espacodagestante/site/conteudo/pos-parto.php#:~:text=O%20puerp%C3%A9rio%2C%20ou%20p%C3%B3s%2Dparto,de%206%20a%208%20meses>.
9 Novo anticoncepcional masculino inova com reversibilidade e simples aplicação. Jornal da USP. 2022. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/novo-anticoncepcional-masculino-inova-com-reversibilidade-e-simples-aplicacao/>.
10 Machismo dificulta desenvolvimento de novos métodos contraceptivos masculinos. Jornal da USP. São Paulo, 2022. Disponível em:
<https://jornal.usp.br/atualidades/machismo-resiste-e-dificulta-desenvolvimento-de-novos-metodos-contraceptivos-masculinos/ >.
11 CAVALIERI, F. E. de S. A prescrição da pílula anticoncepcional na década de 1960: a perspectiva de médicos ginecologistas. Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-17042017-093731/publico/FrancineEvenDeSousaCavalieri.pdf>.
12 Anticoncepcional para homens é previsto para 2023; saiba como funciona. UOL Viva Bem. 2022. Disponível em: <
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/09/21/vacina-anticoncepcional-masculina-sera-lancada-em-2023-projetam-cientistas.htm> .
BARRETO, D. da S. .; MAIA, D. S. .; GONÇALVES, R. D.; SOARES, R. de S. . Dispositivo Intrauterino na Atenção Primária a Saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 16, n. 43, p. 2821, 2021. DOI: 10.5712/rbmfc16(43)2821. Disponível em: <https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2821>.
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