Desembalando mais, descascando menos – A alimentação do Brasil de hoje.

por | mar 9, 2023 | Textos | 0 Comentários

Desembalando mais, descascando menos

    Há algum tempo notamos que as idas aos supermercados e feiras representam um gasto maior do que estamos acostumados. Mas, se eu lhe disser que é possível fazer compras gastando menos? Animador, não? Infelizmente não. Em 2022, superando as expectativas que previam para o ano de 2026, produtos ultraprocessados se tornaram, em média, mais baratos que os alimentos in-natura, fato que vai na contramão de todas as recomendações realizadas pelo Ministério da Saúde. Alimentar-se de forma mais barata, no Brasil, significa se alimentar mal. Entender como esse fenômeno é possível, bem como suas implicações é meta deste texto. Esperamos que ao fim possamos entender juntos a importância de desembalar menos. 

Por Guilherme Caitano e Gildo Girotto Jr. 
Revisão Alissa Bonomi

Alô, Ambev, paga esse imposto aí.

    Mas qual a diferença entre alimentos não processados, minimamente processado e ultraprocessado? 

    Os alimentos não processados podem ser chamados de in natura, como as frutas, ovos e leite e são obtidos direto das plantas e animais sem alterações após deixarem a natureza. Ou seja, não passam por nenhum processo industrial nem adição de novas substâncias, como conservantes ou realçadores de sabor. 

    Já os alimentos ultraprocessados, que têm ganhado cada vez mais espaço nas prateleiras dos supermercados, são produtos compostos por substâncias que pouco ou nada têm a ver com alimentos in natura, enriquecidos com açúcares, sal e gorduras, o que afeta diretamente a saúde do consumidor, podendo contribuir com o aumento de casos de diabetes, pressão alta e obesidade. São formulações industriais com ingredientes pouco familiares e que dão origem aos salgadinhos de pacote, refrigerantes, chocolates, macarrão instantâneo, dentre outros. 

    Para exemplificar. Ao invés de comer a fruta abacaxi (não processado / in natura), você ingere algo que contêm uma essência sintética de abacaxi, com baixa quantidade das vitaminas contidas na fruta e, ainda, com uma série de conservantes, aditivos e outras substâncias que visam “dar sabor”. Outros alimentos ultraprocessados são aqueles que usam de ingredientes naturais para serem produzidos e também tem uma quantidade de substâncias sintéticas e conservantes, como bolachas (ou biscoitos). Só para ilustrar, dá uma olhadinha na figura abaixo.

Figura 1: Ilustração de alimentos in natura, processados e não processados. Fonte: Guia alimentar nutricional, Ministério da Saúde, 2014

    O Ministério da Saúde, no “Guia alimentar para a população brasileira” promove um forte incentivo em prol dos alimentos in natura e estimula a retirada dos ultraprocessados de nosso cardápio, visando a qualidade da alimentação e bem estar. Em contradição, um conjunto de políticas do setor financeiro têm ido na contramão de tais recomendações impactando diretamente o custo dos alimentos. E nós sabemos que o preço pesa na hora de escolhermos que alimentos vamos levar para casa. 

    Para entender essa balança financeira, precisamos olhar os impostos que recaem sobre os alimentos. O nosso sistema tributário, desenvolvido para ajudar na industrialização do país, criou há tempos um conjunto de facilitadores para as grandes empresas e indústrias (já diria o sertanejo “alô, Ambev”) que incluem a redução de impostos, acesso a ingredientes por menor preço, acesso, pela dimensão dessas instituições, a conversas e negociações diretas com os poderes públicos, isenção de responsabilidade por danos ambientais, flexibilização dos direitos trabalhistas, dentre outros. 

    Assim, fica fácil compreender que, dentro do ringue de luta entre as grandes indústrias, defendendo os ultraprocessados, contra os pequenos produtores e seus alimentos in natura, o juiz já tem sua preferência e quem sai perdendo somos nós. Desta forma, cada vez mais, insumos para produzir ultraprocessados ficam mais baratos e alimentos in natura (que não tem tais componentes) não se beneficiam da mesma taxa de isenção de impostos. Ainda, pequenos produtores não têm margem para negociar pois sua produção não atinge escala industrial.

 

A conta da mesa termina na cama, só que na hospitalar!

    Mas qual o problema de ingerir ultraprocessados? Não é alimento do mesmo jeito?

    A flexibilização que permite que os ultraprocessados estejam em ascensão no consumo diário dos brasileiros pode ser extremamente danosa, uma vez que o consumo está associado ao aumento de prejuízos à saúde. Em um recente estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Fiocruz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidad de Santiago de Chile foram utilizados dados brasileiros de 2019 para buscar relação entre mortes prematuras (30 a 69 anos) associadas ao consumo de ultraprocessados no nosso território. 

    O estudo encontrou uma causalidade que explica 57 mil óbitos por ano baseado no padrão de consumo atual. Para efeitos comparativos, as mortes por homicídios e acidentes de trânsito foram, respectivamente, de 45 e 30 mil.  Além de pagarmos por produtos que não agregam em nada nutricionalmente falando, também temos a conta final, paga com nossa saúde.

 

E o futuro? Continuaremos desembalando?

    Infelizmente, o aumento da ingestão de ultraprocessados acomete mais as famílias mais pobres em virtude da acessibilidade dos preços. Não é de bom tom exigir ou sugerir que estas parem de fazer uso sem viabilizar economicamente tal ação.  

    Outra ação necessária é a de informar ao consumidor os teores mais claramente. Em outubro de 2022, o Brasil adotou um modelo definido pela Anvisa que consiste em indicar o excesso de sal, açúcar e gordura saturada nas embalagens. 

    O futuro de nosso consumo de alimentos ultraprocessados, com prejuízo iminente à saúde de nossa população, sobretudo daquelas famílias mais pobres, dependerá da adoção de políticas públicas que objetivem viabilizar o consumo de alimentos mais saudáveis. Medidas essas podem incluir, por exemplo: atualização das políticas tributárias arcaicas; adoção de uma direção que valorize e facilite a obtenção de insumos, venda e disputa no mercado por parte dos pequenos produtores; conscientização da população a respeito da problemática, principalmente no que tange a saúde, por meio de um regime de marketing que vá em direção ao plano descrito na cartilha do Ministério da Saúde sobre alimentação do brasileiro. Talvez, com essa série de atitudes, o país seja capaz de seguir uma rota diferente das outras nações citadas anteriormente, recolha as embalagens e dê ao brasileiro a chance de acessar uma alimentação mais saudável.

 

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª Edição. Brasília. 2014. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf>

OLIVEIRA, Kaynã. Alimentação brasileira ainda é saúdavel. Jornal da USP. São Paulo. outubro. 2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/alimentacao-brasileira-ainda-e-saudavel/>

https://www.uol.com.br/vivabem/colunas/sophie-deram/2021/03/17/estudo-analisa-alimentacao-do-brasileiro-durante-pandemia.htm 

ONU. Organização Pan-Americana da Saúde. Relatório da ONU: 131 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe não tem acesso a uma dieta saúdavel. janeiro. 2023. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/noticias/19-1-2023-relatorio-da-onu-131-milhoes-pessoas-na-america-latina-e-no-caribe-nao-tem>

OLIVEIRA, Mayara. SANTOS, Ligia. Guia alimentar para a produção brasileira: uma análise a partir das dimensões culturais e sociais da alimentação. Ciência e Saúde Coletiva. v. 25.n. 7. 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/fygwP4WtxNyXvKPmrxKJ46m/?format=html&lang=pt>

GALINDO, Eryka. et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Refubium – Freire Universität Berlin Repository. 2ª Edição. 2022. Disponível em: <https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/29813.2>

NILSON, Eduardo. et al. Premature Deaths attributable to the consumption of ultraprocessed foods in Brazil. American Journal of Preventive Medicine. v. 64. p. 129-136. Disponível em: <https://www.ajpmonline.org/article/S0749-3797(22)00429-9/fulltext>

TORRES, Raquel. Brasil tem 57 mil mortes por ano devido ao consumo de ultraprocessados, estima pesquisa. O joio e o trigo – jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder. 2022. Disponível em: <https://ojoioeotrigo.com.br/2022/11/brasil-tem-57-mil-mortes-por-ano-devido-ao-consumo-de-ultraprocessados-estima-pesquisa/>

Jornal da USP. Consumo de ultraprocessados tem sérios impactos na saúde. 2022. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/consumo-de-ultraprocessados-tem-serios-impactos-na-saude-confirma-estudo/

BRASIL. Ministério da Saúde. Por que limitar o consumo de alimentos processados e evitar alimentos ultraprocessados?. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/eu-quero-me-alimentar-melhor/noticias/2022/por-que-limitar-o-consumo-de-alimentos-processados-e-evitar-alimentos-ultraprocessados

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