Cardume de peixes em meio a manchas de óleo decorrentes do desastre de 2019. Créditos:Mateus Morbeck/ National Geographic

 Após o desastre do vazamento de óleo no litoral Nordeste em 2019, órgãos ambientais se viram obrigados a agir em resposta a este problema – que se repetiu em anos subsequentes e inaugurou uma nova preocupação ambiental enfrentada pelo país. Na semana passada, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) anunciou o desenvolvimento de satélites que vão monitorar o óleo derramado por embarcações na costa brasileira. Esse projeto integra o Sistema Multiusuário para Detecção, Predição e Monitoramento de Derramamentos de Óleo no Mar (SisMOM), o mais importante e sem precedentes projeto brasileiro para enfrentar os derramamentos de óleo em alto mar. 

O desenvolvimento desse sistema foi iniciado em 2019 com previsão de implementação em 2028. Um estudo de revisão publicado na revista Marine Pollution Bulletin em julho deste ano apresentou direcionamentos e perspectivas para esse sistema,  proposto como uma estratégia de mitigação e de rastreio de futuros desastres. Assim, espera-se que este projeto possa assegurar proteção contra o derramamento de óleo ao oceano Atlântico sob jurisdição brasileira, também conhecido desde 2004 como Amazônia Azul.

Pequenos vazamentos, grandes prejuízos socioambientais  

O Brasil é reconhecido por seu vasto litoral com mais de 7 mil quilômetros de extensão, sendo assim o décimo quinto país com a maior costa do mundo. Sua vastidão litorânea abrange praias turísticas de beleza inigualável, pesca artesanal, comunidades tradicionais costeiras e áreas marinhas sensíveis – como o Atol das Rocas, o arquipélago de Fernando de Noronha e o sistema de recifes da foz do Amazonas, que refletem a riqueza geográfica e cultural do país. Há derramamentos de óleo muito mais intensos do que o já ocorrido pelo mar brasileiro, como o acidente do petroleiro Exxon Valdez no Alasca em 1989. Contudo, desastres de pequenas e médias proporções têm potenciais de causar grandes danos socioeconômicos no país. Por isso, é fundamental o monitoramento contínuo da exploração de petróleo em alto-mar (offshore) para garantir o bem-estar a longo prazo das comunidades e regiões costeiras.

Segundo o artigo de revisão conduzido pelo meteorologista brasileiro Daniel Constantino Zacharias, os principais vazamentos de óleo em águas marinhas brasileiras ocorreram entre 1960 e 1980, mas seus impactos permanecem ainda hoje obscuros. As principais causas dos vazamentos nesse período são atribuídas a acidentes com petroleiros, falhas em oleodutos e infraestrutura industrial. Por sua vez, no início dos anos 2000, após o fim do monopólio estatal da Petrobras, com a aprovação da Lei do Petróleo em 1997 e o aprimoramento do aparato tecnológico, as causas de vazamento foram transferidas para falhas humanas (operacionais). No entanto, o estudo aponta que ondas de óleo sem motivo aparente começaram a aparecer após 2019, o que fez cientistas levantarem hipóteses que se tratava de despejo ilegal de óleo por navios cargueiros nas rotas internacionais do Atlântico Sul, resultando em um problema ambiental sem precedentes para autoridades brasileiras.  

Principais tragédias petrolíferas que atingiram a costa brasileira    

Segundo o estudo, desde o começo da exploração de petróleo no Brasil na década de 1940, houveram três vazamentos de óleo na costa brasileira mais significativos em termos de impacto na sociedade e na biodiversidade. O primeiro deles ocorreu na Baía de Guanabara, com registro de 8 desastres no período de 1975 a 2005. Os vazamentos de maiores proporções – aqueles de tamanho acima de 200 metros cúbicos – segundo categorização empregada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) ocorreram até o ano 2000, causando prejuízos enormes para manguezais, praias e comunidades que vivem na segunda maior baía do litoral brasileiro. 

No ano 2000 houve um rompimento de um oleoduto submarino conectado à Refinaria Duque de Caxias (REDUC), operada pela Petrobras. Este episódio ocasionou o despejo de 1200 toneladas de petróleo bruto sob a Baía de Guanabara e marcou o início das leis nacionais de proteção marinha, como a aprovação da Lei Federal 9966/2000, conhecida como Lei do óleo e de outras substâncias nocivas. 

Cena emblemática de mergulhão coberto por óleo durante o vazamento na Baía de Guanabara em 2000. Créditos: Domingos Peixoto/ O Globo

O segundo desastre que o estudo destaca é o ‘misterioso’ derramamento de óleo na costa Nordeste que ocorreu por oito meses, entre agosto de 2019 a março de 2020, afetando 1000 praias em nove estados da região Nordeste e dois estados do Sudeste, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Considerado o mais extenso vazamento de petróleo da costa brasileira, estima-se que até 4.000 quilômetros de litoral e pelo menos 81 áreas marinhas e costeiras protegidas foram afetadas pelo óleo de alguma forma. Um total aproximado de 5000 toneladas de resíduos de óleo foram removidos das praias causando um irreparável impacto social, econômico e ambiental. 

Segundo o estudo, este episódio desastroso afetou cerca de 870.000 pessoas que se dedicam à pesca artesanal e ao turismo, resultando em uma redução estimada de 50% no consumo de todas as espécies de peixes em comparação com antes do episódio. Apesar do volume do despejo ter sido relativamente pequeno (entre 5.000 e 12.000 toneladas) muitos esforços científicos foram feitos para avaliar os impactos na biodiversidade marinha, mas ainda não há um consenso científico quanto a sua extensão.

Em relação aos danos à biodiversidade, uma pesquisa recente conduzida por pesquisadora do Projeto Hippocampus em Pernambuco revelou que em uma das áreas afetadas pelo óleo foram identificadas malformações em cavalos marinhos recém-nascidos. Ou seja,  isso aponta o efeito tóxico e teratogênico (que causa alterações na estrutura ou função do embrião) de componentes presentes no óleo em espécies da fauna marinha. Outros estudos demonstram preocupação sobre os bancos de rodolitos, que são importantes ecossistemas formados por carbonato de cálcio derivado da atividade fisiológica de algas calcárias, que servem de abrigo e alimento para uma extraordinária diversidade biológica. Com os sucessivos fenômenos de ressurgências do óleo, pesquisas sugerem que ele pode ter sido depositado no fundo da plataforma continental brasileira, afetando áreas de rodolitos.

Garoto tenta remover óleo do corpo com areia durante ação voluntária em áreas afetadas pelo desastre de 2019. Créditos: Leo Malafaia/ Folha PE

A terceira tragédia apontada pelo estudo atingiu o arquipélago de Fernando de Noronha em 2021 e a quarta afetou cerca de 342 km da costa semiárida no estado do Ceará em 2022. O óleo que afetou Fernando de Noronha, foi trazido até a costa pela Corrente Equatorial Sul, portanto, o derrame ocorreu fora da jurisdição nacional, em águas internacionais. Já o derramamento que atingiu a costa cearense afetou 84 praias e 15 áreas marinhas protegidas, 8 dessas áreas já tinham sido atingidas em 2019, além de 73,5% das praias tropicais que foram novamente afetadas. Análises da composição do óleo nesses locais indicam que não se tratava do mesmo que afetou o Nordeste em 2019, pois os biomarcadores avaliados foram distintos.

Despejo ilegal de óleo na Amazônia Azul 

Uma das preocupações de pesquisadores e órgãos ambientais no decorrer desses incidentes foi a mudança da causa do derramamento de óleo. Se os primeiros acidentes apontaram para causas de falha técnica, os desastres mais recentes de 2019 em diante foram suscitados por crimes ambientais, pois segundo o estudo, ocorrem de caso pensado por embarcações estrangeiras que desejam se livrar do óleo “velho”.

A hipótese mais apoiada para explicar esses “incidentes” de óleo estrangeiro atingindo a costa brasileira é o uso do Oceano Atlântico Sul para limpar porões e tanques de carga de navios que estão em rota. O óleo residual deixado no oceano geralmente forma pelotas de piche que podem viajar milhares de quilômetros nas correntes de giro subtropical, atingindo as costas equatorial e nordeste brasileiras, destacam os pesquisadores do artigo.

Estimativas iniciais sugerem que a rota internacional do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul,  possa receber 10.000 pequenos vazamentos de óleo por ano que, somados, podem chegar a 70.000 toneladas por ano em apenas uma das rotas. Esses vazamentos compartilham algumas semelhanças: são formados por pequenos volumes de óleo, há uma dispersão em grandes áreas ao longo da costa e a composição desses óleos não é produzida ou consumida no Brasil. Além disso, eles têm características típicas de mancha de óleo linear decorrente de procedimentos de limpeza de tanques de carga.

Sistema de monitoramento de derramamento de óleo no mar  

O SisMOM é um projeto em rede que envolve 16 instituições e que está ancorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Seu objetivo é detectar embarcações e manchas de óleo no mar e estabelecer previsões do percurso das manchas. Para tanto, o artigo de revisão destaca que o sistema de monitoramento será capaz de identificar comportamento suspeito de embarcações por meio de algoritmos de inteligência artificial e potenciais manchas de óleo por meio de imagens de satélite de alta resolução. Além disso, ao longo de seu desenvolvimento, dados atmosféricos, oceanográficos e AIS (Automatic Identification System) serão incorporados para executar modelos de dispersão de derramamento de óleo, gerando um pacote de probabilidade para a chegada do óleo derramado no litoral, permitindo que as autoridades responsáveis ​​tomem as ações necessárias. Dessa forma, o projeto SisMOM é estruturado em uma cascata de ações integradas que vai desde a identificação de potenciais poluidores até a entrega de informações validadas aos órgãos governamentais – Marinha do Brasil e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA) – para operações, proteção e remediação de impactos ambientais em águas jurisdicionais brasileiras.

Infográfico sobre o sistema de monitoramento de derramamento de óleo no mar, SisMOM. Créditos: Adaptado de Zacharias et al (2024)

A expectativa é que a implementação do SisMOM aprimore as capacidades operacionais da Marinha do Brasil e do IBAMA para responder a vazamentos de óleo, rastrear suas fontes usando modelos de vazamento de óleo, aplicar sanções aos responsáveis ​​e prevenir danos ambientais maiores. Isso ajudará o Brasil a reduzir a poluição causada pelo óleo que chega às praias e proteger os ecossistemas e as atividades econômicas costeiras, alterando assim a tendência histórica de poluição marinha sem informações disponíveis para aplicar ações de prevenção e de mitigação observadas nas últimas décadas.

O Blog Um Oceano tem parceria com a Rede Ressoa Oceano


Juliana Di Beo

sou bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atuo com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

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