“Paga 10!” Castigos, prendas, punições no ensino do esporte

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O aluno exclama para o professor: “Eu não consigo!” e o professor responde: “Ah não? Então paga 10 flexões!”

Para quem vivenciou treinamentos ou ensina esportes já deve ter presenciado ações como a descrita. Conhecidas como castigo,  pagação, prenda, é possível afirmar que é uma conduta, se não comum, também não rara em sessões de treinamento esportivo, desde a iniciação até categorias mais avançadas. Apesar disto, é praticamente inexistente estudos que tratem dos efeitos deste tipo de procedimento no desenvolvimento dos praticantes.

Em estudos sobre educação moral, em geral, as condutas coercitivas como os castigos ilustrados são condenadas, defendendo-se que a punição se pauta no medo dos alunos para com seu professor e a regulação dos jovens se faz unicamente por este fator externo, não havendo compreensão sobre os motivos de se “pagar a prenda”.

É fato que muitas condutas autoritárias por parte do técnico ou professor tem por objetivo garantir seu controle sobre a turma, impondo punições quando ele é contrariado. Assume-se uma forma diretiva de passar a mensagem aos alunos: “Quem manda aqui sou eu!”

É bem possível que a estes professores falte segurança para atuar ou que imaginem ser impossível ensinar sem o sentimento de total controle das ações de sua turma. No entanto, será que os castigos representam sempre a forma autoritária de atuar? Será que realmente são condutas que devem ser evitadas a qualquer custo e tratadas como um erro em toda metodologia de ensino?

Provavelmente causarei incômodo em muitos pedagogos do esporte ao afirmar que estas ações punitivas podem ter um caráter pedagógico interessante se oferecido segundo algumas características. Explico:

Se os castigos não tem o objetivo de manter coercitivamente o controle do professor sobre seus alunos, quais objetivos podem ter?

Pauto-me inicialmente na questão da busca pela autonomia moral dos alunos. Este estágio só é alcançado a partir da vivência de outros anteriores, a anomia, na primeira infância, quando não há reconhecimento de regras, e, posteriormente, a fase da heteronomia, quando as normas são reconhecidas e obedecidas, primeiramente por receio das consequências e das reações dos adultos de referência. Gradativamente é esperado que as condutas sejam reguladas pelo entendimento de tais normais sociais, a ponto de definir as atitudes pela escolha por fazer o que se acha correto e benéfico para todas as partes envolvidas.

Portanto, a fase heteronômica é importante como parte do processo a ser vivenciado para que se alcance níveis mais avançados de conduta moral. E é nesta fase que a diretividade e, muitas vezes, a coerção por meio da conduta do professor é justificada, ainda pela incapacidade dos jovens de atuar de forma totalmente autônoma. E, realizando um parêntesis, esta incapacidade se expressa mesmo em grande parte, se não a maioria, dos adultos, pelo menos em nosso país. Um exemplo disto são as regras de trânsito que precisam ser acompanhadas de multas, com valores cada vez mais altos, para que as normas sejam seguidas, ficando claro que a obediência é proveniente do receio da punição e não da consciência da importância da lei, como a utilização do cinto de segurança. A compreensão pode acontecer posteriormente, ao se perceber a eficiência do equipamento.

No entanto, retornando ao ambiente do ensino esportivo, as condutas coercitivas necessitam ser acompanhadas de um clima permanente de diálogo, de forma a estimular o entendimento das regras e das possíveis punições. Desta forma, um “castigo” pode ter o objetivo de salientar um valor importante a ser desenvolvido.  Consequentemente, a utilização deste recurso deve ter objetivo claro e planejado, do contrário, como esperar que aconteça o entendimento por parte dos alunos/atletas?

Outra característica importante é a de que este tipo de punição deve ser considerada uma proposta momentânea, com sua extinção esperada e também planejada. Se seu objetivo é estimular a compreensão, a partir do momento que ela foi alcançada, este instrumento não é mais necessário.

Saliento também que o “castigo” não necessariamente deve ser considerado como uma ação de repreensão, podendo, e isto é desejável, servir de aspecto motivacional, estimulando valores como a superação, o trabalho coletivo, a cooperação, a solidariedade.

Descreverei uma atividade prática para exemplificar:

No início deste post apresentei a fala de uma atleta e seu professor. Esta é uma situação que vivenciamos em um projeto de extensão com adolescentes com o ensino do judô. Encontramos, e isto é bastante comum, jovens que constantemente atribuíam a si mesmo a falta de capacidades que sequer foram testadas, ou seja, ao menor desafio, diante de circunstâncias novas, alegavam que não sabiam ou que não conseguiam executar.

O questionamento dos professores foi sempre no sentido de que compreendessem que se não experimentassem, nunca iriam saber o quanto poderiam avançar. No entanto, tal compreensão parecia não se desenvolver a ponto de vencer o receio de experimentar.

Então instituiu-se uma regra: cada vez que alguém dissesse que não conseguiria, que não iria tentar, pagava-se um castigo que o professor determinasse, que consistia na execução de uma série de algum exercício como flexões de braço, abdominais, polichinelos. Após a execução do “castigo” o aluno deveria pelo menos tentar executar a atividade proposta. O resultado inicial foi a de grande repetição de “prendas”, consequência do costume em verbalizar que não eram capazes, muitas delas de forma automatizada, mas também incorporadas, indicando inclusive como se constituía as próprias autoimagens e autoestimas.

O diálogo acompanhou constantemente a proposta, procurando discutir os motivos de tamanha repetição da afirmação de incapacidade e confrontadas com os resultados positivos que alcançavam ao finalmente experimentar a superação dos desafios propostos nas aulas.

Foi visível que os alunos procuraram inicialmente evitar as verbalizações negativas pelo receio do “castigo”, no entanto, ao começarem a perceber que tais falas não representavam a realidade e que atrapalhavam o avanço, as atitudes foram mudando. Não raro, ainda marcados pelo costume, falavam em tom negativo para logo em seguida buscarem correção com algo expressões positivas: “Ah, eu não consigo!!! Mas vou aprender!!!”

Também presenciamos alunos “pagando” seu “castigo” sem sequer o professor solicitar. Ao serem questionados, disseram que haviam sido negativos e que precisam pagar. A postura seguinte de superação, tentando realizar a tarefa que gerou a fala negativa, aparentava que a baixo autoestima estava sendo enfrentada e gradualmente substituída por perseverança.

A partir de reações desta natureza , mais uma vez por meio do diálogo, foi perguntado se os jovens necessitavam da permanência desta regra punitiva. Afirmaram que não, defendendo que já haviam percebido que eram capazes de superar os desafios e que o enfrentamento era prazeroso, fazendo com que o “castigo” não tivesse mais nenhum sentido.

Este exemplo demonstra que a punição foi uma estratégia interessante, mas entende-se que, para tanto, é necessário observar-se algumas características essenciais:

1- Embora a descrição da punição possa criar uma imagem de uma aula sisuda, tensa e autoritária, esta não foi a situação vivenciada. Mas para que um clima favorável seja desenvolvido, a relação professor e aluno deve ser pautada na proximidade, no respeito e no diálogo.

2- Os “castigos” devem representar algo simbólico, que cause certo incômodo físico mas longe de extenuar o aluno. É certo que ele ficará em evidência, mas cabe ao professor mediar as possíveis reações de deboche dos demais, o que também faz parte do incômodo, este, emocional.

3- Os desafios da aula precisam ser adequados aos alunos. De nada adiantará punirmos um jovem que afirma que não consegue executar a proposta da aula se, de fato, ele diz a verdade. Portanto, mais uma vez, o professor é essencial neste processo, propondo atividades que representem avanços possíveis e adequados à sua turma.

4- As normas que geram “castigos” devem ser exceções e não uma constância, com o risco de se perder o sentido da proposta. Portanto, reforça-se a necessidade de planejamento e previsão de início e fim, que marcará a conquista de um novo patamar de entendimento do grupo.

5- O diálogo deve relacionar sempre as punições com o reforço do sentimento de capacidade dos alunos. Em diversos espaços de vulnerabilidade social que atuei, a própria sociedade impõe direta e indiretamente a noção de incapacidade e de não merecimento aos jovens. Os “castigos” podem representar a confiança do professor que seus alunos são capazes de superar seus limites. 

Finalizo esta postagem afirmando que as punições discutidas não são e provavelmente nunca serão unanimidades entre os professores e técnicos esportivos. Esta tensão, ao meu ver, tem relação com a linha tênue que separa os “castigos” como uma proposta interessante e adequada, das ações de repreensão e manutenção autoritária do poder daquele ambiente.

Portanto, ao serem consideradas como uma proposta pedagógica, é necessário que esteja pautada em objetivos, características e planejamentos claros e adequados ao grupo. Eis um desafio não somente para os alunos, mas principalmente, aos professores!

 

Sobre Leopoldo Hirama 9 Artigos
Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB), formado em Educação Física pela FEF-Unicamp, mestre em Ciências do Esporte e doutorando na mesma instituição. Atua na temática da Pedagogia do Esporte, mais especificamente nos esportes coletivos e lutas e as possibilidades do fenômeno esportivo na educação de crianças e adolescentes em comunidades periféricas. Atualmente pesquisa as características do ambiente de ensino do esporte para a formação da personalidade moral de jovens praticantes.

4 Comentários

  1. Prof Hirama, apreciei bastante suas observações sobre as relações entre castigo e desenvolvimento de valores,coincidentemente foi assunto da minha aula inaugural nesse semestre na disciplina Didática da Educação Física.Vou discuti-la um pouco mais com os alunos e espero poder trazer argumentos para aprofundar o tema.
    Obrigado
    Afonso Nina

    • Caro prof. Afonso
      Obrigado pelo comentário. Em minha tese estou reunindo dados e referenciais para que possa discutir com maior profundidade as características, possibilidades e repercussões deste tipo de conduta. O post se baseia ainda nos resultados de meu mestrado, mas espero poder avançar com a discussão em breve, defendendo o doutorado.
      Abraço!
      Leopoldo

  2. Prezado Profº Leopoldo Hirama, boa noite!

    Inicialmente parabenizo-o pelo post, o tema é bastante controverso. Agradeceria uma breve esplanação sobre professores de artes marciais (especificamente judô) que utilizam-se de quedas (de judô) em crianças (4 - 6 anos)que estão iniciando na prática do esporte. A pergunta é basicamente baseada em fatos constantes que presencio no ¨dojo¨ de meus filhos. Recentemente presenciei uma criança de 5 anos sendo punida com quedas (fortes) pelo simples fato de estar brincando durante a aula.

    Pergunto: É realmente adequado esse tipo de conduta do professor? Essa forma de tratamento não irá traumatizar a criança? Ou até mesmo fazer com que ela obedeça por medo e não por respeito? Isso seria motivo de exemplo para os demais alunos (crianças)?

    Ficarei grato em saber vosso posicionamento, haja vista lidar diretamente com o assunto aqui explanado.

    Cordialmente,

    Jairo Sant'Ana

    • Caro Jairo, obrigado pelo contato!
      Aparentemente a conduta do professor de judô que destaca não é adequada, no entanto, é difícil avaliar sem presenciar as circunstâncias.
      No entanto, pelo que me informa, é possível fazer algumas considerações:
      Também sou judoca, já atuei como sensei, atividade que devo retornar em breve, após meu doutorado. E vivenciei a modalidade dos 6 aos 14 anos e desisti por conta desta postura autoritária de meus professores, voltando somente quando adulto.
      Infelizmente a modalidade valoriza algumas tradições que há muito deveriam ser repensadas na formação dos senseis, mas que fica apenas a critério de cada professor. Estudos e profissionais que estão mais atualizados na ciência do esporte já perceberam que aquela história de não poder tomar água, de não falar, não questionar, não brincar, da total ordem na aula está ultrapassada, especialmente em nossa cultura. Mas, a maioria dos senseis foram formados tradicionalmente e repassam suas experiências sem maiores reflexões, algo como "deu certo comigo, dará com meus alunos!"
      Mas não há como negar que os jovens de hoje são muito diferentes dos de uma geração atrás e mais ainda, das crianças japonesas (de onde se originou o judô, berço dos melhores atletas e modelo adotado(erroneamente ao meu ver) para o mundo). Assim sendo, é incompatível uma aula na rigidez de tempos atrás, especialmente quando tratamos com iniciantes.
      O que não quer dizer que uma aula aqui no Brasil não deva estimular noções e condutas claras de respeito, atenção, empenho. Adotar quedas como forma de punição tem duplo valor negativo: primeiro por que, mesmo para experientes, cair, em geral oferece certo desconforto. Segundo porque relacionar o ato de cair como algo negativo, que acontece somente quando se faz algo errado, vai diretamente na contramão da filosofia do judô, que é pautada no cair e levantar sempre! Tornando a queda algo sempre negativo, muitas das atividades da modalidade em que é necessário se deixar cair para que seu colega desenvolva as habilidades de projeção, ficam comprometidas.
      Quanto à questão da obediência pelo medo, os estudos em educação moral afirmam que ele deve existir nesta fase da heteronomia. O medo pode ser pelo receio do castigo ou por magoar uma pessoa de referência. Ou seja, nesta fase ainda é necessário um fator externo para que se adeque suas atitudes, seja uma repreensão ou uma demonstração de desagrado dos pais, professores ou amigos.
      O que é importante para o professor é refletir sobre a intenção, intensidade e coerência do castigo. E ainda, se este vem acompanhado da busca pela compreensão da situação. Como estou distante da situação ocorrida é difícil pensar em uma relação coerente entre brincar na aula e receber quedas como castigo. No entanto, como já escrevi, este tipo de repreensão é um comportamento tradicional que insiste em permanecer nas aulas de judô.
      Por outro lado, cada vez mais nos defrontamos com crianças que chegam nos espaços educacionais sem o menor respeito pelos demais, ignorando totalmente qualquer tipo de regra, fazendo o que bem entendem. Os motivos são diversos, mas importante salientar que se não foram auxiliados para saírem da anomia(ausência da aceitação de regras) e entrarem no mundo heterônomo (ou seja, aquele guiado ainda pelas regras externas)elas irão sofrem muito mais dos que os que convivem com elas.
      Cabe também ao professor de judô contribuir para esta formação, e portanto, não se deve fazer "vista grossa", tomando atitudes para que seus alunos percebam a importância por se adotar e seguir determinadas regras. Em nosso projeto de judô, uma punição adotada para as brincadeiras fora de hora e a desatenção era a retirada do aluno da atividade, caso a advertência e explicação verbal não fosse suficiente. Na continuidade do comportamento, retirávamos daquela aula. Logicamente, este processo era acompanhado por outros tantos, como rodas de conversa todo final da aula, atenção na dinâmica das atividades, visto que nas faixas etárias iniciais, o poder de concentração é pequeno exigindo aulas mais movimentadas e pouco tempo de explanação. Atividades que exijam complexidade técnica acima da capacidade dos alunos é desmotivante e estimulador da desatenção para qualquer idade.
      Finalizando, sugiro que se possível, converse com o professor de seus filhos, procurando entender sua posição. Se ele se mostrar aberto, coloque suas preocupações, que são reais e justas. De fato, atitudes de punição exageradas podem afastar a criança do esporte por muito tempo!
      Caso ache interessante, pode passar meu contato para ele por meio deste blog.
      Mas, e espero que não aconteça, se o professor se mostrar resistente ao diálogo, sempre existe a possibilidade de buscar outro espaço para a prática.
      Grande abraço!

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