O exemplo dos mais velhos

DSC05672“A criança constrói sua moralidade não apenas refletindo sobre as regras e os valores, mas também – e talvez essencialmente- observando e avaliando as pessoas que, em volta, agem de diferentes maneiras.” Yves de La Taille

Representar um modelo estimado de pessoa é uma grande responsabilidade e por isso La Taille nos alerta  sobre os valores que ele apresenta e incentiva. Este cuidado tem todo sentido visto a plasticidade da juventude em modelar seus comportamentos a partir daqueles que admira, e se suas atitudes não conduzirem para uma boa convivência, muitos conflitos podem ser gerados. Um exemplo é bem explorado no filme A Onda, de Dennis Gasel.

Apesar de defender que o professor pode e deve ter esta representação, potencializando sua ação educativa, ele não precisa ser o único a atender todas as exigências ou pelo menos não deve estar só nesta empreitada.

Portanto, não discuto nesta postagem a figura docente e sim outro personagem que pode se tornar referência no espaço de ensino, especialmente o esportivo. O monitor pode representar uma possibilidade pedagógica importante nas relações que envolvem o ensino de modalidades. E como monitor, refiro-me ao convite ofertado aos atletas ou alunos das categorias mais velhas. Pessoalmente já organizei esta proposta diversas vezes e as respostas sempre foram muito positivas.

Inicialmente, os monitores representam aos mais novos, aquilo que são de fato, seus pares, apenas com mais idade. E Puig reforça a importância desta relação:

“No es necessário insistir demasiado em la fuerza educadora de la relación entre iguales. Su influencia es a menudo mayor que la de los adultos. Algunos pedagogos han pensado com razón que la verdadeira unidad de intervención educativa es el grupo de iguales.”

Mas e quando este igual, que já é familiar ao convívio, vai se transformando em uma figura modelar a partir da convivência respeitosa, cooperativa e cúmplice?

Em pesquisa realizada em um grande projeto esportivo no qual fiz parte, os adolescentes que participaram deste tipo de ação afirmaram:

Outro ponto importante para mim foi entrar na monitoria, eu lembro que no primeiro momento foi um desafio, a primeira vez que me atribuíram a responsabilidade: “Olha, você vai ser monitor, e você tem essa, essa e essa função! E eu falei: “Caramba, será que eu vou dar conta?” E eu vi o quanto aquilo ali serviu de mais aprendizado, trabalhar com o professor que já tinha objetivos com aquelas crianças foi uma troca bacana e exatamente naquele momento que eu senti a ação multiplicadora que cada um tinha, porque a gente aprendia um pouco enquanto aluno, nas atividades de voleibol e aí tentava socializar com os novos alunos e aquilo era bacana, era uma ação multiplicadora. No início era reprodução, porque a gente via a figura do professor fazendo assim então eu vou tentar fazer como ele, mas depois era uma criação, a gente criava muito como monitor, eu me sentia mais valorizado, mais pertencente ao projeto. Falava: “Caramba, eles acreditam em  mim e eu posso contribuir de alguma forma no aprendizado destas novas crianças, né?”

Eu acho que quando surgiu a oportunidade da monitoria que foi quando eu comecei a enxergar mesmo que eu posso servir de exemplo para as crianças mais novas. Foi quando eu comecei a querer fazer uma faculdade de educação física, a participar mesmo dos eventos, estar à frente de algumas coisas do núcleo, ajudar os professores, acho que foi a melhor fase do projeto foi essa. (HIRAMA  e MONTAGNER, 2012)

Para ilustrar esta transformação na relação entre os pares, alunos mais novos e os mais velhos como monitores, relato esta passagem vivenciada no projeto citado:

No final da aula de uma turma de 7 e 8 anos de voleibol em um projeto em Heliópolis estava apresentando uma estratégia de reforço dos vínculos entre estas crianças e os alunos mais velhos (15 a 17 anos), muitos deles monitores nas aulas dos mais novos. A ação seria a de colocarmos à disposição camisetas semelhantes às do uniforme que estes adolescentes utilizavam na competição regional, incluindo o nome dos atletas e o respectivo número que cada um utilizava, da mesma forma como acontece com as camisas oficiais dos ídolos dos times profissionais vendidas aos fãs.

Quando perguntei quem gostaria de ter uma camiseta destas, todos levantaram a mão animados, mas uma aluna em especial me chamou a atenção dizendo: “Eu quero a camiseta com número X (não me lembro mais qual era)!”

Quando perguntei por qual razão, ela foi categórica: “É porque é a camiseta do Jeremias!” Então voltei a perguntar: “Mas porque a do Jeremias?” “Porque eu gosto muito dele, ele tem paciência para me ensinar, me ajuda muito e é muito legal!”

O detalhe é que o Jeremias era um dos adolescentes do time mais velho, um dos mais queridos do grupo por este jeito amigo, mas como ele mesmo se colocou em depoimento, era um dos que mais apresentava dificuldades no voleibol: “ Eu era um verdadeiro braço de pau!” afirmou.

Esta é uma prova de que o exemplo não exige necessariamente desempenho esportivo mas afetivo. Jeremias foi um modelo de simpatia, amizade, carinho, atenção, entre tantos outros valores que distribuiu em todas as turmas pelas quais foi monitor. Outros amigos dele não tinham exatamente o mesmo perfil, claro, mas também distribuíram valores que acreditamos serem importantes para uma boa vida, como exigência (adequada ao nível da cada grupo), comprometimento, superação, disponibilidade, garra, proximidade, respeito.

No Brasil, arrisco a afirmar que a grandeza desta intervenção a partir dos monitores é pouco utilizada com intenções pedagógicas e consequentemente, também pouco investigada. Ao contrário, nas artes marciais japonesas existe uma denominação específica para estes personagens, os Senpais, que são os mais velhos e experientes e que carregam culturalmente esta responsabilidade para com os novatos.

Portanto, contar com a ajuda dos atletas mais velhos representou uma série de situações pedagógicas muito ricas como a proximidade entre as diferentes faixas etárias, o desenvolvimento da responsabilidade, conhecimento e compromisso por parte dos monitores,  o surgimento da percepção de capacidade em auxiliar e representar bom exemplo para os mais jovens, o crescimento do sentimento de empatia entre todos os envolvidos. Situações estas que extrapolaram o ambiente do projeto esportivo, visto que as relações permaneciam nos outros espaços da comunidade como também foi descrito na pesquisa.

Desta forma, um clima de pertencimento, tão importante na construção de um ambiente rico moralmente foi reforçado.  E, finalmente, eu como professor acabava rodeado de “professores”, que escrevo entre aspas por dois motivos: o primeiro por não serem formados oficialmente como tal, e segundo, e principalmente, por atuarem de fato como professores, ensinando para além do esporte, na prática, algo tão escasso no dias atuais: serem exemplos de boa conduta!

Referências utilizadas e sugeridas:

HIRAMA LK, MONTAGNER PC. Algo para além de tirar das ruas: a pedagogia do esporte em projetos socioeducativos. São Paulo: Phorte, 2012.

LA TAILLE, Y. Desenvolvimento moral: a polidez segundo as crianças. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 114, p.89-119, novembro, 2001.

PUIG, J.M. Prácticas Morales: uma aproximación a la educación moral. Barcelona: Paidós, 2003.

Sobre Leopoldo Hirama 9 Artigos
Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB), formado em Educação Física pela FEF-Unicamp, mestre em Ciências do Esporte e doutorando na mesma instituição. Atua na temática da Pedagogia do Esporte, mais especificamente nos esportes coletivos e lutas e as possibilidades do fenômeno esportivo na educação de crianças e adolescentes em comunidades periféricas. Atualmente pesquisa as características do ambiente de ensino do esporte para a formação da personalidade moral de jovens praticantes.

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