Definição de jogo e o Paradoxo do Corvo

Devem fazer uns 3-4 anos que fico pensando em escrever algo sobre o Paradoxo do Corvo nesse blog, mas sempre me detenho no ponto “o que eu posso falar sobre isso que não há numa Wikipédia da vida” (embora hoje talvez o GPT e outras IAs sejam mais consultadas que a famosa Wiki). Mas essa semana, um grande amigo meu chamado Pavel Dodonov (como se eu conhecesse Pavels suficientes para precisar falar dele pelo sobrenome) autor do blog anotherecoblog (https://anotherecoblog.wordpress.com/) me pediu ajuda em uma dinâmica que ele quer desenvolver com os alunos dele da UFBA, envolvendo a elaboração de jogos. Enfim, concordei e fiquei de pensar em algo que pudesse contribuir para isso (deixei o cérebro funcionando em 2o plano com essa tarefa), até que hoje a noite, enquanto lavava a louça acumulada do almoço, café da tarde e jantar, as coisas começaram a se conectar… e vamos ver o resultado :3

Primeiro, o que é esse Paradoxo do Corvo?

Pensemos que você tem uma teoria, de que os corvos são pretos. Assim, cada corvo que você encontrar e que seja da cor preta, reforça sua teoria. Isso faz sentido, né?

Mas se alongarmos essa ideia, podemos dizer também que se um exemplar do conjunto estudado que têm como característica a qualidade proposta na teoria, reforça que a teoria esteja certa, então os exemplares que não têm como característica a qualidade proposta na teoria, se não pertencerem a este conjunto, reforçam que a teoria esteja certa.

A consequência disso é, que qualquer coisa não preta, que não seja um corvo, reforça a teoria de que os corvos são pretos.

Por exemplo, vi um corvo preto, ok, reforço minha teoria de que os corvos são pretos. Vi uma maçã vermelha, ok, reforço minha teoria de que os corvos são pretos.

A questão paradoxal desse enunciado reside que isso pode ser usado para reforçar qualquer teoria, dado que não se apoia no objeto estudado, mas nos não-objetos não-estudados.

Por exemplo, tenho como teoria de que a perna mecânica do Roberto Carlos é amarela, com bolinhas verdes em formato de triângulos equiláteros. Para reforçar essa teoria vou olhar para o que há ao meu redor:

uma cadeira branca;

um ventilador preto;

uma mochila vermelha.

Como nenhum desses objetos são amarelos, com bolinhas verdes em formato de triângulos equiláteros e também não são a perna mecânica do Roberto Carlos, isso reforça que a perna mecânica do Roberto Carlos seja amarela, com bolinhas verdes em formato de triângulos equiláteros.

Mas o que isso tem a ver com a dinâmica dos alunos da UFBA fazerem jogos?

Eu diria que tudo, mas primeiro preciso explicar algumas coisas sobre o termo “jogo”. Durante meu mestrado trabalhei uma parte boa da dissertação discutindo o termo (fica ai a recomendação de leitura: https://repositorio.unesp.br/entities/publication/771533b4-7a8f-42f7-adb6-50de45109cd2), pois queria situar o material que desenvolvi em alguma categoria. Porém, quando começamos a estudar a fundo o termo (e digo a fundo mesmo, não apenas pegar uma referência clássica para colocar num trabalho acadêmico e ignorar seu sentido), começamos a perceber que o termo se alinha a forma como cada autor o enxerga. Se vermos Huizinga (talvez o mais citado na área), vamos ver uma visão dentro da sociologia, de que o “jogo” é um elemento de toda sociedade, incluindo as não-humanas, e assim ele desenvolve sua definição. Se formos para seu discipulo, Caillois, ele já segue uma linha mais antropológica do jogo na história da humanidade, dividindo-o em quatro categorias historicamente observáveis. Se avançarmos para autores mais contemporâneos, teremos definições construídas cada uma a partir de suas expertises. Por exemplo, Gilles Brougere no livro Jogo e Educação, toma o primeiro capítulo para um apanhado histórico da “palavra jogo”, antes de construir o papel do jogo nas Escolas Maternais Francesas. Nesse ínterim, Elliott Avedon e Brian Sutton-Smith no livro The Study of Games (1971) já se dão conta de que nenhuma definição realmente garante que todo jogo estará contemplado nela. Isto é, afirmar que “jogo é isso”, pode ser refutado por um exemplo de jogo que “não seja isso”. A ideia de definirmos alguma coisa necessariamente resulta em sua separação daquilo que não corresponde a esta definição. Mesmo que usemos uma definição branda, e um tanto aberta, ela teria por finalidade dizer que aquilo que não corresponde a ela, não seja um jogo. Porém em se tratando de jogos, como aspecto intrínsico da humanidade (e se tomarmos a posição de Huizinga, de qualquer sociedade), seria sempre possível criar algo reconhecível como jogo e que não atenda aos critérios estabelecidos. Semelhante à ideia dos Teoremas da Incompletude de Gödel, que se tivermos um conjunto de regras que definem um jogo, posso criar um “jogo” cujo objetivo é desviar-se desse conjunto de regras.

Certo, mas e se pensarmos no contrário. Embora eu não possa definir o que seja jogo, posso afirmar veementemente o que não é um jogo? Suponhamos que sim, ou seja, que há alguma qualidade estipulada presente nos jogos e que não seja observada em não-jogos. Então você encontra um não-jogo que não atende a essa qualidade e diz isso não é um jogo, logo, reforçamos que todo não-jogo não atenda a essa qualidade, que é análogo a “todo jogo atende a essa qualidade”. Mas isso não é o Paradoxo do Corvo?

Onde estou querendo chegar com isso?

Academicamente quando usamos o termo “jogo” precisamos de alguma referência na área que afirme “jogo é isso, jogo é aquilo, papapi, popopo”, que na rprática até mesmo pelos próprios acadêmicos que se colocam a construir algum jogo para fins de sua pesquisa, acaba sendo quase (eufemismo de totalmente) ignorado. Quer conferir? Procure algum trabalho com a construção de jogo, e veja se a definição realmente pareceu ter relevância no “processo de construção” ou se não foi posteriormente encaixada para atender a uma demanda acadêmica de se referenciar tudo. Será que se trocasse a referência de Huizinga, para Caillois, ou para Brougere, ou para Avedon, ou outro, algo teria mudado? O produto sairia diferente? Qual a relação do objeto com a escolha da definição? Esses foram alguns dos esporros que levei na defesa do Mestrado, mas que me ensinaram um pouco do que estou trazendo aqui hoje.

Mas pelo que pude vivenciar dos dois lados, na convivência e leitura de autores e profissionais alicerçados na teoria e na prática, é que o termo é semelhante ao sabor de um alimento. Podemos definir quanto de sal deva ser colocado no arroz, se o alho deve ser dorado ou queimado, se deve ser arroz solto ou empapado, o tempo de cozimento. Podemos dimensionar fatores nutricionais, um processo favorece mais isso, outro favorece mais aquilo (substitua nutrição por objetivos pedagógicos)… porém a questão mais importante é: quem vai comer, vai gostar? Parece boba a pergunta, mas responder a isso é muito difícil, pois a depender a própria pessoa não saberá te informar se ela vai ou não gostar de um arroz feito de um jeito específico. Ela sabe arrozes que ela já comeu e que gostou (jogos que ela já jogou e gostou), mas certamente não saberá algo que nunca provou, um tempero diferente, uma combinação exótica, um preparo alternativo ou um ingrediente incomum. E é aqui que estamos na construção de um jogo.

Quero encerrar esse texto, não com uma receita, ou um guia, ou um jeito de fazer. Mas com algumas palavras de conforto e que talvez sejam de alguma ajuda (ou não).

Não há caminhos definidos. Pois se houvesse, terminaríamos em um local também definido, que já exisitria um produto finalizado naquele lugar.

A medida do sabor é individual. Nem Coca-cola agrada a todos, foque num perfil e se alinhe ao seu gosto.

Estude o que já existe. Conhecer mecânicas variadas aumenta as opções de cardápio mesmo sem acrescentarmos mais ingredientes.

Seja crítico. Se algo não está bom, procure entender o que está te incomodando e como consertar.

Aceite que falhar é inevitável. Como Dio Brando disse “Jojo, ser humano significa ter limites. Aprendi uma coisa. Quanto mais cuidadosamente você arma, mais eventos inesperados surgem. No entanto, por mais que se arme ou se junte, minha queda esta noite é parte da condição humana… Uma condição que agora eu abandono”. No nosso caso, como não é possível rejeitarmos a humanidade, aceite que vamos falhar, conclua seu produto mesmo que sinta-o incompleto e suscetível ao fracasso. Isso é melhor que um projeto interminável.

“Somehow, Palpatine returned”. Se você sente que seu projeto é bom, interessante ou tem potencial, não o deixe enterrado/guardado/congelado, siga desenvolvendo-o em novas versões assim como a Disney faz.

Seu jogo não vai mudar o mundo. Não tente fazer dele uma solução mágica, milagrosa ou revolucionária para um problema da realidade. Soluções assim não podem ser criadas de forma intencional, se pudesse, assim seriam feitas. Estou dizendo isso em particular para quem pensa acrescentar conceitos curriculares no seu jogo. Isso faz parte do jogo? Ou está forçando a barra? Está sendo um impecilho pro jogo, e poderia ser tirado sem afetar a jogabilidade? Ou até mesmo se tirá-los deixará o jogo melhor ? Se quer que o jogo tenha algum conceito curricular, comece a partir do conceito, pensando no que há de divertido neste conceito que poderia ser dinamizado em mecânicas de um jogo, e não o contrário (o enredo serve ao jogo, e não o contrário), senão o conceito viraria um peso (tipo uma forçação de barra, um comercial obrigatório a se assistir para ganhar um prêmio).


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias. Definição de jogo e o Paradoxo do Corvo. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da UnicampVolume 14. Ed. 1. 2º semestre de 2025. Campinas, 22 de outubro de 2025. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/6087/. Acesso em: <data-de-hoje>.

One thought on “Definição de jogo e o Paradoxo do Corvo

  • 23 de outubro de 2025 em 09:27
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    Muito bom esse texto, sir, obrigado por escrevê-lo! E obrigado pela parte sobre a minha pessoa <3
    "Quanto mais cuidadosamente você arma, mais eventos inesperados surgem." - eu acredito muito nisso para qualquer atividade de ensino, seja uma aula, seja uma trilha interpretativa... Na série de livros Roda do Tempo tem uma frase que diz algo como "Um plano de batalha só vale até a primeira flecha ser lançada." Ou até a primeira lança ser erguida, ou a primeira espada desembainhada... Por mais que planejemos, coisas inesperadas vão acontecer, e é importante sabermos lidar com isso para termos um resultado se não esperado, ao menos satisfatório. Acho que em se tratando de jogos isso também vale, né? Se uma regra não estiver funcionando - bom, nada nos impede de mudar a regra naquele momento pra atingir o objetivo de ser algo divertido e, se for um jogo didático, de ensinar alguma coisa.
    E a dificuldade em definir jogo me fez pensar no conceito de semelhança de família, que pode ser aplicado até mesmo a coisas como ciência: https://darwinianas.com/2021/04/05/o-que-e-ciencia-afinal/ . Normalmente pessoas conseguem perceber quem são os membros de uma família com base em algumas características das pessoas, sem conseguir definir tais características (digo normalmente porque eu acho que não tenho em mim esta capacidade). Podemos também perceber quais coisas podemos chamar de jogos por serem semelhantes entre si - ou por estarem em um contínuo de coisas semelhantes entre si - sem definir exatamente o que caracteriza um jogo ou um não-jogo.
    E realmente, conhecer mais dinâmicas e possibilidades - pensando até em coisas tão diversas como xadres, jogo de teatro de improviso e DOOM - deve nos abrir mais possibilidades diferentes.
    Muito bom mesmo, sir!

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