Problema do reservatório circular
Este semestre adotei em minhas aulas uma atividade chamada “teste”. É uma questão problema de enunciado curto e vago, porém de complexidade elevada. Pode ser feito de forma individual ou em dupla, e os alunos tem 14 dias para resolver. Mas dai você pensa, provavelmente eles procurarão a resposta na Internet (ou simplesmente jogarão numa IA), só que porque isso estaria errado? Em que momento da vida real/profissional de alguém comum que não estará no meio do oceano, floresta ou espaço sideral, não haverá Internet ou IA à disposição? A graça desse problema é que ele é elaborado para ser de difícil resolução, mesmo com toda essa margem de possibilidades. Um exemplo legal foi a do incentro do triângulo (incentro de um triângulo, é o centro da maior circunferência desenhável dentro de um triângulo. Existe inclusive uma fórmula simples que dá esse ponto).
Agora veja o problema:
O território do seu exército está representado na malha quadriculada abaixo, delimitado por três retas. Os pontos ● indicam as coordenadas inteiras por onde essas retas passam. Deseja-se construir, dentro dessa região triangular, o maior reservatório circular possível. Determine a posição do centro desse reservatório e o valor de seu raio.

A solução proposta pela IA (em todos os casos que me foram entregues) envolvia usar a fórmula do incentro do triângulo. Algo que não está errado, um aluno poderia muito bem interpretar este enunciado dessa maneira, mas a questão é, qual o “sentido” dessa fórmula? Um aspecto que sempre reforço nas minhas aulas é que nada é por mágica. Por exemplo, existe uma fórmula que calcula a distância de um ponto até uma reta, mas ela é somente uma simplificação do raciocínio de:
- determinar a reta ortogonal que passa pela reta e cruza o ponto
- achar o ponto de intersecção entre essa reta ortogonal e a reta
- determinar a distância entre o ponto e a intersecção das retas
Depois que você entende o raciocínio, não há mal em usar a versão reduzida dele (fórmula):
- |a*x0 + b*y0 + c|/sqrt(a² + b²), onde (x0, y0) é o ponto, e a, b são os coeficientes que acompanham x, y na equação da reta, e c é o coeficiente linear da reta.
No caso do problema da construção do tanque, resoluções que “surgiam” com uma fórmula mágica foram penalizadas (não muito porque eu sou boazinha rsrsrs). Mas dai fica uma questão, se eu não dei em aula essa fórmula mágica, como eu esperaria que meus alunos resolveriam este problema? Ora, basta encontrarmos um ponto equidistante das 3 retas, vamos lá:
Como eu não defini nenhuma posição no plano, vou tomar por conveniência um ponto como sendo o (0, 0) e definir os outros pontos a partir deste.

Reta R: passa por (0, 0) e (8, 4) -> x/2 = y
Reta S: passa por (3, 0) e (-13, -7) -> -7x/10 + 21/10 = y
Reta T: passa por (11, 7) e (12, -1) -> -8x + 95 = y
As expressões da sua distância até um ponto (x, y) serão dadas por:
Distância até a Reta R: |x/2 – y|/sqrt((1/2)² + (-1)²)
Distância até a Reta S: |(-7/10)*x – y + 21/10|/sqrt((-7/10)² + (-1)²)
Distância até a Reta T: |-8*x – y + 95|/sqrt((-8)² + (-1)²)
Igualando estas 3 expressões, temos 4 conjuntos de soluções:
x = 0.64 e y = -14.08 (está fora do triângulo)
x = 2.44 e y = 10.26 (está fora do triângulo)
x = 8.39 e y = 0.38
x = 22.89 e y = -0.68 (está fora do triângulo)
Logo, o centro do triângulo é o ponto (8.39, 0.38).
Calculando sua distância até qualquer uma das retas teremos o raio do maior círculo desenhável nele. Pra isso usamos de novo a fórmula da distância do ponto até a reta e chegamos que o raio vale 3.4.
Um tanto complexo de resolver, ainda mais com aqueles módulos. Porém se pensarmos um pouco, este é um problema um pouco mais próximo da realidade do que aqueles que são resolvidos em 20 minutos de cálculos no papel. Mas minha ideia está realmente este ponto, preparar o aluno para a realidade da qual prospecto, envolve o uso da IA e de qualquer recurso possível, e tempo suficiente, assistência, referências e tudo o mais que um profissional tem a sua disposição frente a um problema.
Ahhh, mas e se usarmos a fórmula do Incentro?
Mesmo pra usar a fórmula do Incentro, o aluno precisaria determinar quais são as equações da reta, em que pontos elas se cruzam, determinar o comprimento se cada areata do triângulo e daí sim, usar a fórmula do Incentro. De todo modo, o problema como é proposto não diz o que fazer, e uma coisa que tenho percebido nesse período de IA, é que as vezes é muito mais difícil definir o que deve ser feito, do que propriamente fazer. Talvez em um futuro, tenhamos uma preocupação maior em preparar nossos alunos para interpretar enunciados e definir os requisitos e procedimentos de solução, do que propriamente realizar seus cálculos. Via de regra, eu usei o Wolfram pra resolver aquelas equações com módulo e chegar em 4 soluções. Não vejo mérito algum em dizer “consegui resolver equações modulares para escrever este post” ou “meu leitor precisará ver a resolução das equações modulares para entender o assunto tratado aqui”.
Outra questão sobre o “desapego” de fórmulas, é que nem sempre uma forma vai servir (a realidade nunca é tão perfeitinha). Daí a fórmula enquanto procedimento compactado, mexer nela, adaptá-la é mais difícil do que trabalhar com o raciocínio por trás do resultado. Como se as fórmulas tivesse uma certa obsolescência, de resolver maravilhosamente bem aquilo que elas se propõe, mas não permitir nenhuma alteração nos seus procedimentos rígidos.
Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):
SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias. Problema do reservatório circular. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 14. Ed. 1. 2º semestre de 2025. Campinas, 24 de outubro de 2025. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/6096/. Acesso em: <data-de-hoje>.
