“Mais arte do que ciência”: O discurso científico em Rick and Morty. – Parte 2

Séries e TV

Na parte 1 apresentamos um pouco sobre a Série Rick e Morty e como os discursos são colocados com o objetivo de criar empatia com o seu público.

Nesta parte apresentaremos mais sobre o discurso científico e responderemos à pergunta principal: Rick e Morty realiza, de fato, divulgação científica?

 

A Ciência se faz presente por todo o conteúdo da série, desde os roteiros até as escolhas de cenários, por isso a série tornou-se conhecida pelo público como animação de ficção científica. As tramas são constituídas a partir de algum conceito científico que permeia o cotidiano e as aventuras dos personagens, através da apresentação de tecnologias, inovação, conceitos científicos e, até diálogos com jargões científicos.

Partindo do princípio de que, através da tecnologia da “arma de portais”, Rick tem acesso a um número virtualmente infinito de Universos possíveis, podemos discutir a apresentação do poder da ciência vs. sua responsabilidade.

Enquanto outras obras poderiam optar por transformar Rick em um herói, que usa de suas habilidades e recursos tecnológicos para promover o bem e a felicidade das pessoas à sua volta, Rick and Morty brinca com a ideia da extrema pequenez de cada ser, além da pouca importância de cada um de nós neste panorama, sendo assim, qualquer pessoa inteligente seria levada ao cinismo e a um egoísmo inconsequente.

Por exemplo, no episódio “Rixty Minutes”, após inventar uma “poção do amor” que acaba por fugir do controle, Rick acidentalmente causa uma pandemia que transforma quase toda a humanidade em aberrações. Mas, ao invés de utilizar sua inventividade e recursos para reverter o processo (especialmente pelo fato de que a própria pandemia foi piorada pelas tentativas de resolver a situação inicial do episódio), Rick simplesmente viaja junto com Morty para um Universo paralelo, onde eles assumem o lugar de suas versões nativas daquele mundo e prosseguem com a vida normalmente. Confira o discurso de Morty neste episódio:

“Em umas das aventuras, eu e o Rick destruímos o mundo inteiro. Então caímos fora daquela realidade e viemos para essa aqui, porque aqui o mundo não estava destruído e, nessa aqui, estávamos mortos. Então viemos aqui, e nós nos enterramos e pegamos o lugar deles. E todas as manhãs, eu tomo café-da-manhã a vinte metros do meu próprio cadáver apodrecido. […] Ninguém existe com um propósito, ninguém pertence a nenhum lugar, todos vão morrer. Vem assistir TV?”

 

Essa fuga ante à responsabilidade das próprias invenções não apenas é uma característica marcante de Rick, como também reforça a visão niilista da série, segundo a qual, se há infinitos universos possíveis, o valor de cada um deles é reduzido à insignificância: para que se esforçar para consertar um mundo se ele é apenas uma entre infinitas possibilidades que, individualmente, são completamente prescindíveis?

Outro momento que mostra o quanto a superinteligência e os recursos avançados, ao invés de trazerem à mente de Rick uma noção de sua responsabilidade para com os usos de sua ciência, apenas o tornam um ser mais egoísta e distante do resto da humanidade é o episódio “Pickle Rick”.

Após sua transformação em picles para fugir à terapia familiar, Rick é reduzido a sua essência mais destrutiva, com a perda do resto de humanidade que possuía. Seu senso de grandeza fica ainda maior, por ser inteligente a ponto de retomar o controle da situação e apresentar perigo a uma célula de espiões russos, mesmo reduzido a um picles sem braços e pernas.

As discussões a respeito da ciência, de sua autoridade, e de quais interesses podem legitimar ou deslegitimar uma pesquisa, de acordo com questões políticas, não se restringem à figura de Rick Sanchez, porém. No episódio “Something Ricked this Way Comes”, o pai de Morty e Summer, Jerry Smith, é levado para a superfície de Plutão pelo rei do planeta anão, que o consagra como um grande cientista da Terra. A razão por trás desta “honra” é a de que Jerry discorda da reclassificação feita pela União Astronômica Internacional, segundo a qual Plutão deixou de ser considerado um “planeta”, e é agora um “planeta anão”, e está dentro dos interesses da monarquia plutoniana que a população continue acreditando que seu planeta é um planeta.

Os motivos por trás desse interesse político-econômico têm a ver com o fato de haver uma exploração ilegal de plutônio no planeta comandada pelo próprio rei, e essa exploração estaria causando a diminuição da massa do planeta, e a subsequente reclassificação. Ainda que toda a história do episódio seja absurda, além de altamente dissonante em relação à ciência do mundo real, a discussão a respeito da construção de verdades através da ciência e do uso estratégico dessas verdades é extremamente pertinente para se pensar a ciência enquanto fenômeno, fora da série animada.

A série também discute questões da ética científica em diversos momentos, normalmente a partir do prisma da indelicadeza e egoísmo de Rick, apesar de também ocorrerem situações de escopo mais amplo. Por exemplo, a questão da domesticação dos animais e do tratamento antiético que a humanidade dá aos mesmos aparece como parte central do episódio “Lawnmower Dog”, em que o cão de estimação da família ganha superinteligência e acaba por organizar uma rebelião canina contra seus escravizadores humanos.

A maioria das situações, porém, possuem como seu epicentro a figura do Rick. Exemplos de sua conduta antiética vão de desvios pequenos, como implantar no professor de matemática de Morty a ideia de passar o garoto de ano, para que Morty possa dedicar mais tempo a ajudar o Rick, até coisas mais graves como construir um parque temático no interior do corpo de um morador de rua para ganhar dinheiro com os lucros da visitação. Por diversas vezes, torna-se evidente que Rick poderia usar sua inteligência para tornar o mundo um lugar melhor, mas ele raramente faz qualquer esforço que não esteja diretamente relacionado a algum interesse egoísta.

 

| MAS, AFINAL, RICK E MORTY REALIZA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?

Divulgação científica para Bessa (2015 p.15) é tornar a ciência de domínio público, ou seja, trata-se de ações, estratégias e tarefas realizadas por profissionais de comunicação e cientistas com o objetivo de informar a sociedade sobre o que é produzido pela ciência. E para que essa divulgação científica de fato chegue ao seu destino, é fundamental que o conhecimento científico saia do ambiente acadêmico e comece a circular em ambientes em que a sociedade tem acesso.

É preciso dizer que a série, apesar de apresentar uma visão extremamente fantasiosa e surreal da ciência, traz discussões completamente válidas a respeito da ética científica e dos interesses que podem influenciar a prática da ciência, trazendo para a audiência uma importante e realista visão a respeito das falhas humanas que permeiam o processo de construção do conhecimento.

Contudo, não apresenta a ciência de uma maneira verossímil: pelo contrário, as poucas ideias verossímeis que aparecem nos episódios de “Rick and Morty” não passam de um pano de fundo, que muitas vezes assume ou exige do espectador um conhecimento prévio dos conceitos apresentados, ao invés de oferecer-lhe uma noção a respeito destes conceitos.

Também é preciso considerar a falta de cuidado ao explicar os conteúdos científicos, mesmo com diversas cenas em que o Rick se propõe a explicá-los, o personagem toma uma posição de desgosto, até um certo asco em “ser obrigado” a fazê-lo, ao invés do conceito ser passado de forma clara e calma, a fala é feita de forma rápida, truncada, cheia de palavrões, analogias sem sentido, arrotos e sem a menor preocupação do entendimento.

Por outro lado, porém, o que “Rick and Morty” deixa de ofertar em termos de divulgação científica, a série oferece em termos de discussões filosóficas, éticas e existenciais. E uma grande maioria destas discussões tem a ciência e a responsabilidade de quem a pratica no centro da questão, de forma a cumprir um importante papel social de estímulo do pensamento crítico.

 

 

Bibliografia das duas partes

BESSA, Eduardo. O que é divulgação científica?. In: ARNT, Ana de Medeiros; FRANÇA, Cecília; BESSA, Eduardo. Divulgação científica e redação para professores. [S. l.]: Tangará da Serra: Ideias, 2015.

Mendes, Marta Ferreira Abdala. Uma perspectiva histórica da divulgação científica: a atuação do cientista divulgador José Reis (1948-1958). Diss. 2006.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em aberto, v. 14, n. 61, 2008.

Pinho, José Benedito. Propaganda institucional: usos e funções da propaganda em relações públicas. Vol. 35. Summus Editorial, 1990.

AGÊNCIA CÂMARA, 2008. Comissão é unânime em crítica a baixarias na TV a cabo. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CIENCIA-E-TECNOLOGIA/120468-COMISSAO-E-UNANIME-EM-CRITICA-A-BAIXARIAS-NA-TV-A-CABO.html>. Último acesso em: 29 de novembro de 2018.

COHEN, H.F. 2004 (1997). Forbidden Animation: Censored Cartoons and Blacklisted Animators in America. McFarland & Company: 13-18.

FERNANDES, N. 2017. 3 ideias que vão te introduzir a Albert Camus e a filosofia do absurdo. Disponível em <https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2017/09/3-ideias-que-vao-te-introduzir-albert-camus-e-filosofia-do-absurdo.html>. Ultimo acesso em: 29 de novembro de 2018.

MONDELLO, B. 2008. Remembering Hollywood’s Hays Code, 40 Years On. Disponível em <https://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=93301189>. Ultimo acesso em: 29 de novembro de 2018.

ROTHMAN, L. 2014. This Disney Censorship Story Is Udderly Ridiculous. Disponível em: <http://time.com/3507973/disney-censorship/>. Último acesso em: 29 de novembro de 2018.

SEABRA, R. 2016. Renascença: A série de TV no século XXI. Autêntica Editora: cap.18.

SCOTUZZI, N., NESTAREZ, O. 2017. Os autores que exploraram o horror cósmico ao lado de HP Lovecraft. Disponível em <https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2017/04/os-autores-que-exploraram-o-horror-cosmico-ao-lado-de-hp-lovecraft.html>. Último acesso em: 29 de novembro de 2018.

3 thoughts on ““Mais arte do que ciência”: O discurso científico em Rick and Morty. – Parte 2

  1. Excelente texto. Acho que a grande força da série é apresentar um "anti-herói" que choca nossa ética judaico-cristã ocidental, com uma ética (sim, ele tem sua própria ética) niilista, no sentido de que, já que não existe um sentido para todas as coisas e para a própria existência, não existe necessidade de culpa, remorso ou justificativa para os atos individuais, existe a pura intelectualidade e a necessidade de sobrevivência, e esse vazio nos incomoda.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *