A língua alienígena de ‘A Chegada’ pode nos dar o superpoder de prever o futuro?

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Há pouco mais de dois anos, vimos uma área da ciência ainda um tanto discreta dividir espaço com superproduções hollywoodianas. Embora seja um filme, como dizem, “muito paradão”, A Chegada conseguiu chamar a atenção de muita gente e levantou a bola da Linguística para o público não acadêmico. O sucesso da obra cinematográfica fez com que os estudos da linguagem ganhassem espaço em podcasts, no youtube e em mesas de bar. Isso se refletiu na própria divulgação científica como no Scicast #181, em vídeos dos canais Nerdologia e Enchendo Linguística, e na mesa “Exploração do espaço pela humanidade” do Pint of Science Campinas 2017 (roteiro da minha fala) na qual participei junto com o astrobiólogo Lucas Fonseca e o astrofísico Douglas Galante, da Missão Garatéa.

Apesar do sucesso do filme, poucos tocaram num ponto bem curioso da história. A língua alienígena, o heptápode, fez com que a linguista e protagonista Louise Banks desenvolvesse uma percepção do tempo bastante diferente da que nós, humanos, possuímos. Mas será que aprender uma língua poderia realmente nos dar uma percepção diferente da passagem do tempo? Adianto que a resposta ainda é bastante controversa. Mas na primeira metade do século XX haviam dois pesquisadores que acreditavam que as nossas línguas poderiam nos dar alguns “superpoderes” e nos prender em um mundo diferente dos falantes de outros idiomas. Eles também apontaram a primeira língua que poderia ser vista dessa forma, a língua Hopi.

História da relação Psicologia e Linguagem

Antes de falar sobre a língua Hopi, é interessante entendermos o contexto em que surgiu essa hipótese. No século XIX e início do século XX, os linguistas europeus, de uma forma geral, trabalhavam na descrição das línguas de textos antigos e sua evolução até as línguas atuais. Já os linguistas americanos estavam mais interessados em descrever e documentar as ainda desconhecidas línguas nativas do continente. Nessa época, diversos pensadores buscavam fomentar trabalhos conjuntos entre psicólogos e linguistas.

O importante filósofo Wilhelm von Humboldt percebeu que os estudos da linguagem ainda se focavam no produto, o texto escrito e falado, e não na capacidade humana de usar essas línguas. Em 1855, o filólogo e psicólogo Heymann Steinhal também indica que avanços mais significativos nos estudos da linguagem só seriam possíveis com avanços conjuntos na Psicologia.

Até o início do século XX, o psicólogo que tinha chegado mais próximo dessa relação foi Wilhelm Wundt. Em dois dos dez volumes que compõem sua obra Volkerpsychologie (Psicologia Cultural, numa tradução livre), o psicólogo alemão aborda as línguas (orais e sinalizadas) buscando compreender os mecanismos mentais dos seus falantes. Até aqui, a relação entre psicologia e linguagem tratava da questão das origens das línguas e dos processos de produção e compreensão.

Sapir & Whorf levam o assunto um passo além: Será que existe uma reação entre a percepção do mundo e a língua que falamos?

Origem da Relatividade Linguística

Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf

Por volta da década de 1930, o antropólogo e linguista Edward Sapir começou a explorar a relação linguagem e psicologia de uma forma bastante particular. Alguns psicólogos já rascunhavam as influências da cultura sobre as línguas. Afinal, os objetos, os eventos e as crenças se diferenciam entre os povos e, portanto, as línguas possuem diferentes conjuntos de objetos ou fenômenos para nomear. Um exemplo é o fato de que muitas línguas antigas (ex. Turco pré-islâmico), africanas (ex. Tswana) ou indígenas (ex. Lakota-Sioux) não diferenciam azul e verde.

Um exemplo ainda mais curioso é o de algumas línguas aborígenes da Oceania, como o Kuuk Thayorre, que não têm palavras para direções como direita e esquerda. Isso não quer dizer que seus falantes não sabem indicar onde fica a sua casa ao amigo que irá visita-lo. Os falantes dessas línguas se localizam através dos pontos cardeais (Norte, Sul, Leste, Oeste e outros 12 nomes para direções absolutas). Mas você sabe onde fica o Norte agora? Provavelmente não. Mas ainda assim parece ser fácil explicar isso.

A natureza está cheia de pistas que nos permitem localizar esses pontos. Por exemplo, os troncos das árvores têm uma maior concentração de musgo na parte que está virada para o sul (se estivermos no hemisfério norte, os musgos se concentram na parte que está virada para o norte). Uma outra hipótese, porém, é que a língua dá aos seus falantes um “superpoder” de ter consciência constante dos pontos cardeais.

Pensando em casos como esse, Sapir teve um questionamento bastante ousado: e se a língua que a gente aprendeu quando crianças nos prende no mundo em que os primeiros falantes da língua viviam? Se a língua que falamos nos faz compreender o mundo de forma diferente? E assim nasce a hipótese da Relatividade Linguística.

Hopi: a língua sem tempo (não por muito tempo!)

Nessa mesma época, Sapir se encontrou com Benjamin Lee Whorf, um então inspetor de incêndio que, nas horas vagas, estudava as línguas nativas de origem asteca na região do Arizona. Agora discípulo de Sapir, Whorf poderia estudar e analisar as línguas astecas se baseando não apenas nas comparações gramaticais com as línguas de origem europeia, mas também comparando as diferenças culturais em busca de novos superpoderes. Uma das línguas estudadas a partir dessa hipótese foi a língua do povo Hopi, e levantou um dos debates mais polêmicos da história da Linguística.

Paleogrifos Hopi (Wikimedia Commons)

Segundo Whorf, a descoberta dessa língua era um marco pois seria a primeira língua sem tempo descoberta pela ciência. Mas como assim sem tempo? Vamos revisar algumas características comuns das línguas que conhecemos:

a. flexões de tempo em seus verbos ou uso de auxiliares

Exemplos: – Flexão: estudarei linguística [= estudar + futuro]
– Auxiliar: vou estudar linguística [futuro + estudar]

b. uso de metáforas espaciais para tempo

Exemplo: apontar para frente ao se referir ao futuro ou para trás ao se referir ao passado

c. contar tempo de forma numérica

Exemplos: um ano, dois anos, três minutos, quatro meses

d. palavras para tempo

Exemplos: amanhã, ontem, hoje, daqui a duas horas

Além dessas afirmações, Whorf indica que os falantes de Hopi possuem uma visão diferenciada da passagem do tempo, que indica uma compreensão completamente diferente da visão linear presente nas culturas europeias. Os Hopi pareciam enxergar o tempo de forma cíclica. Como se o tempo sempre se reiniciasse em algum momento.

Agora temos duas hipóteses. (1) a língua Hopi representa a visão da cultura, ou seja, a cultura influenciou a língua e (2) a visão cíclica de tempo dos Hopi é reflexo de uma língua sem tempo, ou seja, a língua influecia a cultura. Whorf prefere acreditar na hipótese 2 e usa o Hopi como a evidência necessária para revolucionar tanto a Linguística quanto disciplinas relacionadas como a Psicologia e a Antropologia.

Não surpreendentemente essa ideia não durou muito. Diante da polêmica levantada, o linguista Ekkehart Malotki decidiu passar quatro anos em trabalho de campo com o povo Hopi, fazendo pesquisas semelhantes àquelas de Louise Banks em A Chegada. E ao contrário da protagonista do filme, a visão de tempo do linguista não mudou. O que mudou foi o conhecimento que a linguística tinha até então sobre essa língua.

Em uma análise de mais de 600 páginas somente para descrição de formas relacionadas ao tempo, Malotki demonstra que a língua Hopi tem todas as características que Whorf afirmava serem inexistentes. O Hopi tem flexões de tempo, usa metáforas espaciais para se referir ao tempo, conta tempo de forma numérica e também tinha palavras para categorias temporais. E com isso vemos um momento de bastante descrédito da hipótese da Relatividade Linguística de Sapir & Whorf.

Dança das mulheres Hopi e uma. Semelhança coincidental com os logogramas heptápodes
(foto de John Karl Hillers – Wikimedia Commons)

Então a Relatividade Linguística foi provada falsa? Não exatamente!

A hipótese de Sapir & Whorf é retomada de tempos em tempos, de forma cíclica, em versões mais fracas. Se para os criadores da hipótese a língua determinava nossa visão de mundo, hoje podemos retomar a ideia mais conservadora e dizer que a língua reflete a cultura e nos dá pequenos poderes como, por exemplo, o de diferenciar mais facilmente o verde do azul se você fala português, espanhol ou inglês, do que se for falante de Tswana ou de Lakota-Sioux. Isso indica que falantes dessas línguas não são capazes de reconhecer as mesmas diferenças? Não, mas eles as reconhecem como nós reconhecemos a diferença entre azul e azul escuro, como tons da mesma cor – fato pelo qual os russos poderiam rir da gente (a língua russa considera azul claro e escuro cores diferentes).

No que diz respeito ao tempo, línguas como o mandarim possuem metáforas de tempo verticais, categorizando o futuro para cima e o passado para baixo, bem diferente do que fazemos em português em que o passado está atrás e o futuro à frente. Mais diferente ainda é a língua Aimará, língua indígena falada no Chile, Peru e Bolívia. Nessa língua, o passado está à frente considerando que podemos vê-lo. Já o futuro é metaforicamente localizado na parte de atrás, onde não podemos enxergá-lo.

Nesse sentido, a hipótese da relatividade linguística não é totalmente falsa, mas precisa ser levada com um certo cuidado para não retornarmos à falsa visão de que as diferentes línguas nos dão armas ferramentas muito diferentes para enxergar o mundo.

Mas e a visão cíclica do tempo?

Vamos deixar a linguística um pouco de lado e tentar entender melhor como os humanos começam a entender a natureza.

O cérebro humano é quase uma máquina de aprendizagem estatística, buscando padrões no mundo para tentar entender o funcionamento da natureza. Para compreender o mundo em que viviam, nossos antepassados precisaram reconhecer e compreender alguns ‘pedaços de tempo’ como, por exemplo, o eterno embate entre a luz e a escuridão, que dura em torno de 24 horas. Outro padrão importante é a sucessão entre as estações. A natureza varia entre períodos mais quentes com manhãs maiores que a noite, e períodos mais frios com a noite maior do que a manhã.

Em uma sociedade de agricultores, por exemplo, conhecer esses períodos é essencial para a sobrevivência. Com base nesses pedaços de tempo, é possível observar alguns padrões e compreender a não viabilidade da colheita no inverno. Conhecer a sucessão destes ‘pedaços de tempo’ nos dá a habilidade de ‘prever o futuro’ e nos preparar para o inverno estocando comida e confeccionando roupas de frio. E como sempre, cada fase do dia ou do ano vem e passa, de forma cíclica.

Ciclos lunares e dos astros nos céus também entraram na equação e começamos a criar os primeiros calendários para organizar esses ciclos e ‘prever o futuro’. Também inventamos mecanismos para facilitar a medição desses ciclos. Ainda assim, a precisão desses mecanismos ainda dependia da natureza. Os relógios solares, por exemplo, dependem da luz do sol e o horário marcado varia de acordo com a estação do ano e só funciona corretamente no local de construção. Mais do que isso, sua utilização é inviável em dias nublados.

Relógio solar localizado no Wakefield Garden, em Londres (foto do autor)
Relógio solar localizado no Lac Leman, em Genebra, Suíça (foto do autor)
Repare que há linhas curvas que indicam a localização do sol por constelação, bem como corrige o horário conforme a variação da incidência da luz em diferentes épocas do ano.

A invenção do relógio mecânico parece ter sido um marco que permitiu à humanidade iniciar uma independência dos ciclos naturais e ter um maior controle de pequenos pedaços invariáveis de tempo. Luiz Alberto de Oliveira, físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e curador geral do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro, acredita que esse marco influenciou as jornadas de trabalho que deixaram de ser variáveis conforme a duração do dia e a época do ano, passando a ser fixas a partir da Revolução Industrial. Esse controle do tempo parece ter contribuído para uma mudança da visão cíclica, em que tudo na vida é baseado nos ciclos da natureza, para uma visão linear do tempo, em que vivemos em um presente que se move eternamente em direção a um interminável futuro, sem ciclos, sem volta.

Considerando esses apontamentos, seria natural imaginar que civilizações não industrializadas tenham uma visão de tempo diferente das civilizações industrializadas (o que, até onde eu sei, ainda não foi testado). A diferença entre nossa visão do tempo e a visão do povo Hopi poderia ter origem, na verdade, na diferente visão sobre o que é o futuro.

Nós ainda conseguimos prever quando será o próximo verão e quando teremos que tirar nossos casacos lá do fundo do armário. Mas nossa noção do que é uma previsão sobre o futuro, hoje, vai além dos ciclos naturais. Normalmente queremos saber se nosso time de futebol vai vencer a final do campeonato, ou quando o Brasil vai sair dessa crise política. E assim nós sequer percebemos que, mesmo antes de aprender heptápode, já conseguimos fazer pequenas previsões certeiras sobre o futuro, a ponto de já ter comprado as passagens para as próximas férias de inverno.

Enfim, não é uma língua alienígena (e nem o Hopi) que nos fará prever o futuro, mas sim o conjunto de conhecimentos que conseguimos adquirir do mundo através da cultura e da ciência. Seja num futuro cíclico, seja num futuro linear.

 

REFERÊNCIAS

– Malotki, Ekkehart. Hopi time: A linguistic analysis of the temporal concepts in the Hopi language. Trends in linguistics: Studies and monographs. n.20, Mouton De Gruyter, 1983
– Oliveira, Luiz Alberto. Imagens do Tempo, In: Doctors, Marcio (org.), Tempo dos Tempos, Jorge Zahar Editors, Rio de Janeiro, 2003
– Whorf, B. Lee, The relation of habitual thought and behavior to language, ETC: review of general semantics, v.1, n.4, 1944
– Whorf, B. Lee, An American Indian model of the universe, ETC: review of general semantics, v.8, n.1, 1950

FICHA TÉCNICA: IMDB

Título original: Arrival (no Brasil, A Chegada)
Direção: Denis Villeneuve
Elenco: Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker
Distribuição: Sony
Data de estreia: 24/11/16
País: Estados Unidos
Gênero: ficção científica
Ano de produção: 2016

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