Musicologia na Grécia antiga e na Idade média

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José Fornari (Tuti) – 09 de janeiro de 2019

fornari @ unicamp . br


O estudo da música, como fenômeno estético, cultural e científico, vem ocorrendo pelo menos desde o século 6 AC, na Grécia antiga. Lá, a música era parte da educação formal dos cidadãos, o que instigou filósofos a ponderarem sobre sua origem, função e significado.

No século 6 AC, Pitágoras acreditava que a música devia ser analisada matematicamente e que só assim poderia ser tratada como ciência. Ele postulava que a função da música é trazer harmonia à alma humana. Pitágoras estabeleceu as bases matemáticas para a consolidação de uma importante escala musical; hoje conhecida como escala pitagórica ou justa. Esta escala tem 12 notas e é gerada pelos modos naturais de vibração de uma corda retesada, dada na razão aritmética das proporções entre as frequências fundamentais das notas que a compõem; de 2 para 1 (representando uma oitava) e de 3 para 2 (representando uma quinta justa). Este intervalo permite, através do chamado “ciclo das quintas“, definir uma escala cromática de 12 notas entre uma oitava, aproximadamente distanciadas por um semitom (futuramente falaremos mais a respeito deste tópico). Pitágoras argumentava que todos os fenômenos objetivos e subjetivos poderiam um dia vir a ser descritos através da matemática. Do mesmo modo que outros filósofos pré-socráticos, Pitágoras também acreditava nos poderes medicinais da música; conceito este que foi posteriormente adotado também por Platão e Aristóteles. [1]

Gravura de Pitágoras
Fonte: Franchinus Gaffurius (1492). Theorica musicae

No século 4 AC, Platão e o seu ilustre discípulo, Aristóteles, acreditavam na importância da música tanto para o indivíduo quanto para a sua sociedade. Platão postulava que a educação musical é fundamental para a formação de um cidadão, afirmando que os elementos que compõem a música como que “penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente”, influenciando assim o seu comportamento e consequentemente o comportamento de toda a sociedade. Em particular, Aristóteles afirmava que a música possui grande similaridade com a emoção, já que ambas são compostas de movimento (lembrando que a palavra “emoção” origina-se da palavra Latina “emovere”, que significa “incitar ou instigar movimento”). Desse modo, a música era encarada como a imitação da emoção humana, por ter a sua essência constituída de movimento. [2]

Neste período, a música era entendida como sendo constituída por um processo de imitação. Platão definia dois tipos de atividades comunicacionais: a Mimese (a imitação de um fenômeno observado) e a Diegese (a narrativa de um fenômeno observado). Simplificando, para Platão e Aristóteles, a mimese “mostra sem explicar”, enquanto que a diegese “explica sem mostrar”. Platão catalogava os estilos poéticos em: comédia, tragédia, épico e poesia lírica, sendo que tragédia e a comédia, para ele, eram predominantemente miméticos. A mimese não procura descrever a verdade mas apenas imitá-la. Platão mencionou Sócrates advertindo seus alunos para não confiarem na possibilidade da arte em descrever a verdade (tarefa esta que, para ele, cabia à filosofia) e assim precavia seus alunos da sedução da arte. A mimese é explicada por Platão através da metáfora atribuída a Sócrates, das 3 camas; a primeira sendo a idealização do projetista, a segunda sendo aquela que o marceneiro constrói e a terceira aquela que o artista imita.

Comparação entre Diegese e Mimese.
Fonte: Diegesis and Mimesis: A Very Brief Introduction

Para Aristóteles, a arte é constituída de mimese e matemática, e almeja encontrar e registrar aquilo que é perene e atemporal no dinâmico processo natural, onde tudo nasce, se transforma e decai. Aristóteles menciona a existência de uma distância de identificação entre a realidade e a sua imitação dada pela arte, o que permite com que a arte seja de fato apreciada pelo público. Sem esta distância segura não haveria a possibilidade de ocorrer o que ele chamava de catarse, ou seja, a purificação de emoções através da arte resultando numa sublimação do estado de espírito de quem a aprecia. Porém, caso haja um excesso desta distância entre realidade e arte, não seria possível despertar a empatia do público, onde a sua imitação nem mesmo seria identificada. Existe assim, segundo Aristóteles, um distanciamento ótimo entre a realidade e a sua imitação, para que esta seja percebida pelo público como arte. Além de imitar emoções, Aristóteles dizia que a música tem também outras importantes finalidades, tais como: gerar prazer; inspirar virtudes e proporcionar satisfação intelectual. [3,4]

Um modelo de adaptação do ouvinte à emoção negativa evocada pelo repertório de música triste. Se bem adaptado, leva o ouvinte à catarse.
Fonte: Sandra Garrido. Negative Emotion in Music: What is the Attraction? A Qualitative Study. 2011

Um pouco mais adiante, no final do século 4 AC, Aristóxeno de Tarento, que foi tanto instruído na escola pitagórica quanto aluno de Aristóteles, uniu os aspectos das suas bases de formação e desenvolveu uma análise musical própria, onde a percepção humana passa a ser fundamental e indispensável. Aristóxeno acreditava que a música era, ao mesmo tempo, ciência e arte, e que assim o julgamento das estruturas musicais deveria ser feito através de uma análise empírica, ou seja, por meio da audição, e não apenas através de proporções matemáticas, conforme havia sido sugerido por Pitágoras. Aristóxeno escreveu diversos tratados dos quais os únicos que sobreviveram ao tempo, e que dizem respeito à música, são: o “Elementos da harmonia” e fragmentos do “Elementos da rítmica”. Ao incluir a percepção no estudo da música, Aristóxeno vislumbrou a existência de fatores psicofisiológicos que modelam e modulam, através da audição, a percepção da realidade sonora que compõe a música. Sua proposta de adoção de uma abordagem empírica, através de dados auditivos, para o entendimento do fenômeno musical, ratificou as bases daquilo que, mais de 20 séculos depois, veio a ser chamado de “musicologia sistemática”; que trata do estudo empírico e interdisciplinar da música através da coleta e análise de dados. Esta enorme pausa no desenvolvimento da musicologia sistemática deve-se principalmente ao fato de que os recursos tecnológicos que permitem a coleta e a análise estatística de dados acústicos e simbólicos de peças musicais só veio a surgir na segunda metade do século XX, com o advento da tecnologia computacional. [5,6,7]

Detalhe do livro “Elementos da harmonia” de Aristoxeno.
Fonte: https://img.index.hu/imgfrm/7/1/8/3/BIG_0004617183.jpg

No período medieval, o estudo da música foi marcado quase que exclusivamente por um único autor; Anício Boécio. No século 6 DC, Boécio, que era filósofo e senador romano, produziu uma obra literária sobre música, intitulada “De institutione musica” (A instituição da música). Ele acreditava nas proporções matemáticas e universais contidas e expressas pela música, conforme postuladas 12 séculos atrás, por Pitágoras. No primeiro capítulo deste seu livro, Boécio apresenta sua teoria de inspiração pitagórica, postulando que a harmonia que rege as leis universais é a mesma que rege a música. Assim, ele classifica 3 tipos de harmonia: Mundana; Humana e Instrumental. A harmonia mundana, também chamada de música universal ou música das esferas, era definida como sendo constituída pela proporção e regularidade dos movimentos dos corpos celestes, ocorrendo como uma forma de harmonia inaudível, porém regular, perene e responsável pela manutenção do mundo e do universo como era conhecido. A harmonia humana definia as proporções e regularidades encontradas no corpo humano e principalmente no que então se entendia como sendo a sua alma. A harmonia instrumental era definida como sendo a única que é de fato audível, uma vez que é produzida através da ação da voz ou de instrumentos musicais. Segundo Boécio, esta era gerada por distintos tipos de instrumentos musicais, que podiam ser constituídos por objetos sob tensão (como as cordas), sob a ação do vento (como os instrumentos de sopro) ou por objetos de percussão. Seu trabalho em música foi também fundamental para o registro histórico das antigas peças musicais gregas, que sem este, poderiam ter se perdido ao longo da história. [8,9]

Ilustração de Boécio.
Fonte: Boethius And His Influence On Art

Este artigo apresenta sucintamente como a filosofia da Grécia antiga teve e ainda tem papel fundamental para o entendimento e o desenvolvimento do fenômeno musical, tanto no aspecto de expressão artística individual quanto na sua representação e influência social. Os estudos realizados por Pitágoras, Platão, Aristóteles, Aristóxeno, e tantos outros, ecoam até os dias atuais, oferecendo bases seguras para o entendimento da música, como forma de expressão ubíqua e exclusivamente humana, que mescla em seus estudos tanto os aspectos objetivos da ciência quanto os subjetivos da arte. No próximo artigo, falarei a respeito da representação da música na forma de notação musical, que foi a base para a criação da musicologia histórica. [10]

Referências

[1] PYTHAGORAS: MUSIC, GEOMETRY AND MATHEMATICS

[2] República, livro III 401d-e. https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/viewFile/2175-795X.2017v35n4p1045/pdf

[3] Mary B. Schoen-Nazzaro. “Plato and Aristotle on the Ends of Music” Volume 34, número 3, 1978. 

[4] Lelouda Stamou. “Plato and Aristotle On Music and Music Education: Lessons From Ancient Greece”. International Journal of Music Education. May 2002. DOI 10.1177/025576140203900102.

[5] Aires Rodeia Pereira. “A estética musical em Aristóxeno de Tarento”. Humanitas. Vol. XLVII (1995).

[6] Richard Parncutt. “Systematic Musicology and the History and Future of Western Musical Scholarship”. Journal of interdisciplinary music studies spring 2007, volume 1, issue 1, art. #071101, pp. 1-32.

[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Elementa_harmonica

[8] Bower, Calvin M. (2006), “The transmission of ancient music theory into the Middle Ages”, in Christensen, Thomas, The Cambridge History of Western Music Theory, Cambridge University Press, pp. 136–167, ISBN 978-0521686983, p. 146.

[9] CAROLINA PARIZZI CASTANHEIRA. “DE INSTITUTIONE MUSICA, DE BOÉCIO LIVRO 1: TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS”. Dissertação de mestrado. Departamento de Letras. UFMG. 2009.

[10] Sophie Gibson, Aristoxenus of Tarentum and the Birth of Musicology. London: Routledge (2014).

Videos:

Petronio Pulino. Monocórdio de Pitágoras – Escala Pitagórica Diatônica. Published on Mar 12, 2017. https://youtu.be/ESPdVRmQVms

Geoff Martin. Modes on a String. Published on Aug 28, 2015. https://youtu.be/cnH2ltfW48U


Como citar este artigo:

José Fornari. “Musicologia na Grécia antiga e na Idade média”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 9 de janeiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/09/2/