José Fornari (Tuti) – 25 de setembro de 2019
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Em 1948, um artigo intitulado “A Mathematical Theory of Communication”, do matemático Claude Shannon, revolucionou o entendimento formal dos mecanismos que regem a comunicação, criando assim uma nova área de estudos na matemática, a Information Theory (Teoria da Informação). Shannon apresentou neste artigo (que logo em seguida se transformou num livro com o mesmo título) um modelo matemático que permite quantificar e dimensionar o que é e como ocorre a comunicação. Neste contexto, informação é vista como um conjunto de mensagens que contém significado. Estas são comunicadas através de um canal que é sempre ruidoso, ou seja, que sempre insere ruído na mensagem, aumentando assim a sua entropia. A capacidade do canal em transmitir mensagens depende do seu grau de entropia. Se este for muito alto, o ruído inserido pode degradar a mensagem a ponto de torna-la indecifrável (ou seja, transformando-a também em ruído). O receptor recebe a mensagem transmitida pelo transmissor através do canal ruidoso e sua tarefa é reconstrui-la através de processos de filtragem, ou seja, a separação entre a informação da mensagem e a entropia (ruído) inserido pelo canal. O objetivo assim é minimizar o ruído acrescido pelo canal, diminuindo a probabilidade de ocorrência de erros de interpretação das mensagens, de modo a garantir a existência de uma comunicação suficiente para que se tenha ao final da comunicação um nível adequado de informação mútua entre transmissor e receptor. A mensagem é transmitida em porções atômicas, ou seja, que representam o nível mínimo de informação; aquele que não podem ser dividido.. Estes são chamados de “bits” (na eletrônica digital, um bit é representado por uma variável binária, que só pode ter um entre 2 valores possíveis: 0 ou 1). Para garantir a comunicação da mensagem, o transmissor normalmente se vale de “redundâncias” na informação, repetindo-as de modo a maximizar a possibilidade de sua decodificação. Desse modo, a transmissão da informação que compõe a comunicação nunca é perfeita e sempre ocorre dentro de uma probabilidade de comunicação abaixo da ideal (onde não haveria ruído acrescido na transmissão da informação).
Esta formulação matemática pode nos servir de metáfora para compreender os meandros das duas mais importantes formas de comunicação sonora que a evolução social nos trouxe: a linguagem e a música. Ambas são constituídas de sinais sonoros organizados em sequência ao longo do tempo e são encontradas ao longo da história da humanidade em todas as culturas e comunidades que se tem registro. Música e Linguagem compartilham as mesmas regiões cerebrais para o seu processamento (transmissão, processada pela região cerebral conhecida como área de Broca) e compreensão (recepção, processada pela região cerebral conhecida como área de Wernicke). Utilizando o modelos de Shannon, descrito acima, vemos que tanto música quanto linguagem são transmitidas através de um canal ruidoso, seja em termos acústicos, onde as ondas sonoras sofrem distorções do meio; quanto em termos cognitivos, onde a mensagem depende da capacidade e das peculiaridades subjetivas do processo de decodificação do receptor (o ouvinte). Apesar de linguagem e música se aproximarem epistemologicamente, estas se especializam em termos de funcionalidade da mensagem, distanciando-se teleologicamente. A linguagem especializa-se primordialmente na comunicação semântica, com as definições de objetos e ações (que tratam de responder questões tais como: quem, o que, onde, como e quando), enquanto que a música trata mais especificamente da comunicação de emoções, não no sentido de induzir o ouvinte à reações pavlovianas, como que se o estivesse adestrando a sentir a emoção que a música dita, mas no sentido de exercer uma influência sutil, como que tentando persuadi-lo a encarar um certo cenário pragmático sob a perspectiva de um determinado prisma emocional sugerido pela música escutada. Ambas são assim fundamentais para a expressão humana e, ao invés de competirem, se complementam, muitas vezes cooperando em gêneros artísticos como o poema (que é uma arte da linguagem mas que se vale de estratégias tipicamente musicais, tais como: rimas, métricas e entoações na declamação), a canção (que une poesia com música, criando um discurso com significado semântico e afetivo, que são correlacionados e se complementam), o cinema (onde a trilha sonora cumpre um papel fundamental na evocação emotiva de uma cena, ao mesmo tempo que muitas vezes este processo é obliterada pela consciência do ouvinte, que é persuadido àquele estado emocional pela música da trilha sem ter sequer a consciência de tê-la escutado) e mais recentemente, os recursos tecnológicos ubiquamente disponibilizados que permitem com que o ouvinte facilmente crie repertórios que quer escutar, empoderando-o com a possibilidade de programar uma espécie de auto-persuasão emotiva, ou seja, uma auto indução de estados emocionais os quais este ouvinte deseja experienciar, através da escuta seletiva de peças musicais que servem primordialmente este propósito.
Outra similaridade entre a linguagem e a música é a capacidade de ambas serem desenvolvidas em tempo real, na medida de nossa necessidade comunicacional. Quando falamos informalmente com alguém, não temos um texto previamente preparado, memorizado ou sequer definido, que guie a construção de nossa retórica. Iniciamos apenas com uma intenção semântica; a de tratar de algum assunto específico, o qual para expressa-lo criamos de modo perceptualmente imediato uma estrutura sintática na medida em que falamos e escutamos a resposta de quem estamos conversando, ou seja, na medida em que a conversa evolui. Do mesmo modo, na música existe o improviso. Este é criado pelo músico (normalmente o músico popular) a partir de um significado estrutural, de certo modo assemelhando-se à estrutura sintática da linguagem que surge durante uma conversa, ou seja, uma estrutura ordenada no tempo que determina a sequência harmônica e rítmica que sustenta (ou seja, da significado) à melodia. Mesmo o músico criando embelezamentos estruturais, através de rearmonizações, substituições de acordes ou ostinatos rítmicos, sua estrutura funcional e temporal são respeitadas de modo a manter a coerência da improvisação como uma variação da estrutura melódica original. Linguagem falada desse modo se assemelha à improvisação musical idiomática, ou seja, aquela que ocorre dentro de um dado gênero musical (que parece se aproximar de um tipo de proto-semântica musical, pois determina um contexto que é decodificado por quem conhece o gênero). Já a improvisação livre tenta transcender os limites da estrutura harmônica, rítmica e de gênero musical, onde o grupo que a pratica tenta não se atrelar à uma forma ou gênero musical, focando na promoção da interação musical com os outros membros do grupo de improvisação livre. Porém, ao que me parece, a ausência continuada de contextualização torna-se em si mesma uma outra forma de contextualização: a contextualização daquilo que não tem contexto, ou seja, do incontestável (já que não pode ser julgado), o que impede que a cognição do ouvinte atue no sentido de estabelecer um significado musical (como no caso da improvisação idiomática), tornando, na maioria das vezes, a mensagem musical incógnita. Desse modo, a livre improvisação transcende as barreiras da música como um todo, na minha opinião, aproximando-a da composição de outra forma de arte sonora, a composição dinâmica e coletiva de paisagens sonoras, onde este processo de continuada interação iconoclasta (sendo o ícone o gênero) entre o grupo de livre improvisação, faz com que texturas sonoras emerjam desta interação, imergindo os participantes numa interação musical dinâmica cuja sonoridade evolui, transmuta e eventualmente é subitamente rompida. Todas estas são características encontradas em paisagens sonoras naturais, as quais a livre improvisação emula, se expressando musicalmente como que numa forma de onomatopeia sonora auto organizada cuja sonoridade imita seu processo composicional.
Referências:
[] Shannon, C.E. “A Mathematical Theory of Communication”, Bell System Technical Journal, 27, pp. 379–423 & 623–656, July & October, 1948.
[] FREE IMPROVISATION — Derek Bailey. https://web.archive.org/web/20080605044808/http://www.cortical.org/dbfree.html
Como citar este artigo:
José Fornari. “Oralidade terciária e a convergência da produção musical”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 25 de setembro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/09/25/32/