Parte 2
José Fornari (Tuti) – 31 de dezembro de 2019
fornari @ unicamp . br
No artigo anterior tratei brevemente da concepção virtual da série harmônica de undertones e como esta, segundo a teoria harmônica de Ernst Levy, embasa a existência da tríade menor. Na minha concepção, anteriormente explicada (aqui e aqui), as escalas e tríades maior e menor podem ser todas derivadas unicamente da séria harmônica real, (a série dos overtones, conforme é chamada, no livro de Levy). Para isso, basta considerar simultaneamente 2 séries harmônicas reais (de overtones); a série principal, do centro tonal em questão (no exemplo, Dó), a série da sua dominante (representada pelo seu segundo harmônico; no exemplo, Sol) e a série cujo centro tonal em questão é a sua dominante, ou seja, a sua subdominante (dada pela série da qual o centro tonal equivale ao seu segundo harmônico; no exemplo, Fá).
As duas tríades menores, formadas pelas notas das tríades principal, subdominante e dominante, permitem formar os modos menores das escala diatônica, como o dórico (segundo grau) e o eólio (sexto grau).
Exemplos musical do modo dórico (grau II)
Exemplos musical do modo eólio (grau VI)
Conforme visto anteriormente, as tríades são formadas por 2 intervalos sucessivos de terça: simbolizados por “M”, para terça maior (formada pelo intervalo de 4 semitons) e “m”, para terça menor (formada pelo intervalo de 3 semitons). Como pode-se observar na figura anterior, na série harmônica real, os intervalos M e m são respectivamente o quarto e o quinto intervalo que ocorre entre a sequência natural de harmônicos. Estes são antecedidos apenas pelos intervalos de oitava, quinta e quarta. Assim, os intervalos ocorrem numa sucessão de consonância para dissonância, iniciando pela oitava, que é o intervalo mais consonante, na seguinte ordem (da esquerda para a direita, ou seja, do mais grave para o mais agudo): oitava, quinta, quarta, M (terça maior), m (terça menor). No caso da tríade maior, tem-se M, seguido e m. No caso da tríade menor, tem-se, m, seguido de M. Assim, o reverso (ou seja, a harmonia negativa) da tríade maior é uma tríade menor, e o da tríade menor é uma tríade maior. Eu disse anteriormente que existem também outras 2 tríades importantes, a aumentada, formada por dois M, e a diminuta, formada por dois m. Como ambas são simétricas (como um palíndromo) , o reverso da tríade diminuta é também uma tríade diminuta, e o reverso de uma tríade aumentada, é também uma tríade aumentada. Na tríades formadas pelas notas da escala diatônica, tem-se apenas tríades maiores (I, IV, V) tríades menores (II, III, VI) e uma tríade diminuta (VII). Não existe a ocorrência natural de tríades aumentadas na escala diatônica. Assim, na harmonia negativa, a tríade maior torna-se uma tríade menor; a tríade menor torna-se uma tríade maior, e a tríade diminuta continua sendo uma tríade diminuta.
Desse modo, traça-se uma divisão imaginária entre o modo maior e o modo menor, a fim de espelhar a escala cromática, de acordo com a tonalidade. No caso de Dó, tem-se a divisão ocorrendo entre as notas E e D# (ou Eb) que são respectivamente sua terça maior e menor. Usando apenas acidentes sustenidos (#), pra facilitar, tem-se abaixo a tabela de correspondência entre as 12 notas, para a tonalidade de Dó.
sentido direto ------>> (espelhamento na terça da tonalidade)
C
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C#
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D
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D#
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E
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F
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F#
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G
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G#
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A
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A#
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B
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G
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F#
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F
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E
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D#
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D
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C#
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C
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B
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A#
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A
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G#
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sentido reverso <<------ (harmonia negativa)
Exemplificando, as notas da tríade maior de Dó (C, E, G), na primeira linha, correspondem respectivamente às notas (G, D#, C) na segunda linha, que equivalem à tríade de Dó menor (Cm). Já a tétrade G7, dominante de Dó, formada pelas notas (G, B, D, F) correspondem às notas (C, G#, F, D), que equivalem ao acorde Dm(b5)7, que é o Ré meio diminuto, ou seja, mesmo sem conter o trítono característico das dominantes, o acorde negativo de G7 o substitui.
em breve, exemplo sonoro mostrando esta substituição
Novamente, é importante lembrar que todas essas reflexões só valem para uma determinada tonalidade, onde ocorre o espelhamento entre as terças maior e menor (marcado na tabela acima, exemplificando o espelhamento para a tonalidade de Dó). Assim, podemos generalizar a tabela acima para os graus de uma escala diatônica genérica, do seguinte modo.
sentido direto ------>> (espelhamento na terça da tonalidade)
I
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I#
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II
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II#
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III
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IV
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IV#
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V
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V#
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VI
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VI#
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VII
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V
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IV#
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IV
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III
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II#
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II
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I#
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I
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VII
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VI#
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VI
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V#
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sentido reverso <<------ (harmonia negativa)
Note que, da mesma maneira que ocorre no terceiro grau (entre a terça maior e menor) existe também um espelhamento no sexto grau (ambos destacados). Estes representam o eixo de espelhamento das notas de uma tonalidade para a sua harmonia negativa. Este processo fica mais evidente ao se dispor as 12 notas ao redor de um círculo e representar o eixo de reflexão entre harmonia positiva e negativa.
Uma outra maneira de chegar ao mesmo resultado é através da inversão do modo Jônio (grau I) para o seu modo refletido (visto no artigo anterior) que equivale ao modo Frígio (grau III). Se o modo Jônio é formado pela sequência [T-T-S-T-T-T-S], seu modo reverso é [S-T-T-T-S-T-T], que equivale ao modo Frígio (onde T é tom e S é semitom). A sequência ascendente de tríades no modo Jônio é: I, IIm, IIIm, IVm, V, VIm, VIId (onde m é tríade menor e d é tríade diminuta). A sequência descendente de tríades no modo Frígio é Im, VI#, V#, Vm, IVm, II#, I#d. Então temos assim duas reflexões, a primeira da sequência que compõe a escala (de Jônio pra Frígio) e a segunda da sequência das tríades (de ascendente pra descendente).
Jônio, ascendente ------>> (tríades na harmonia positiva)
I
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IIm
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IIIm
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IV
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V
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VIm
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VIId
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Im
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VI#
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V#
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Vm
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IVm
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II#
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I#d
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Frígio, descendente <<------ (tríades correspondente na harmonia negativa)
Para demonstrar a melodia e a harmonia negativa, segue um exemplo, da reversão melódica e harmônica de uma adaptação livre do início da famosa cantata 147 de J.S. Bach (Jesus alegria dos homens).
melodia negativa
harmonia negativa
melodia e harmonia negativa
Então, qual é o lado positivo da harmonia negativa? Conforme disse no artigo anterior, as polaridades que determinam as notas da tríade maior (I, II e V), se mantêm entre a passagem da harmonia positiva para a negativa. Assim, a estrutura continua com a mesma função tonal, o que permite explorar tanto variações melódicas de um tema quanto variações harmônicas de sua cadência, e estas não precisam necessariamente ser realizadas de modo completo, mas por exemplo, substituindo alguns acordes específicos de uma sequência harmônica, como foi o exemplo acima, com a dominante. O mesmo pode ser feito para a subdominante ou para outros graus e funções. Apesar disso, nem todas as substituições são esteticamente interessantes (e esta predileção obviamente muda de acordo com o indivíduo o o gênero musical). O positivo da harmonia negativa é oferecer novas possibilidades de escolha de harmonizações, tanto para o compositor quanto para o músico interprete, que procura novas formas de interpretar uma peça conhecida. Apesar deste princípio se basear numa estrutura que na verdade não existe (a série dos undertones) ela funciona, afinal tem sua fundamentação, por outro caminho, na série harmônica real. Além disso, a nossa cognição foi desenvolvida pela evolução para cumprir com grande precisão a função de detectar padrões. Quando uma peça é baseada numa estrutura complexa, mesmo que não detectemos diretamente qual é esta organização, muitas vezes como que a sentimos. Temos a impressão quase que intuitiva de que por traz daquela informação que nos é apresentada, existe uma ordem que a rege. Porém o que mais faz com que a harmonia negativa funcione é o fato dela ser baseada na estrutura tonal, que por sua vez, baseia-se na séria harmônica; o fenômeno acústico que embasa e orienta toda a teoria musical, que vem se perpetuando e, pelo que parece, continuará ainda sendo a predileção da humanidade por muito tempo.
Referências:
Ernst Levy. “A Theory of Harmony”. SUNY press. 1985
Interview: Jacob Collier (Part 1) https://youtu.be/DnBr070vcNE (uploaded in 2017)
Musician Explains One Concept in 5 Levels of Difficulty ft. Jacob Collier & Herbie Hancock | WIRED https://www.youtube.com/watch?v=eRkgK4jfi6M (recorded in 2016, uploaded in 2018)
Nick Roll. “Finding Its Moment, 30 Years Later: A brief mention in an interview by a British artist breathes life and sales into a niche music theory book. July 11, 2017. https://www.insidehighered.com/news/2017/07/11/mentioned-youtube-interview-dormant-music-theory-book-takes
Rick Beato. “Musical Palindromes & Negative Harmony” https://youtu.be/Eu76BV0kzDE
MusicTheoryForGuitar. “How To Write Chord Progressions With NEGATIVE HARMONY”. https://youtu.be/qHH8siNm3ts
MusicTheoryForGuitar. “How To Use NEGATIVE Melody To Write Beautiful Music [Negative Harmony]” https://youtu.be/0oI2iFrzA0o
Como citar este artigo:
José Fornari. “O lado positivo da melodia e da harmonia negativa – parte 2”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 31 de dezembro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/12/31/43/