José Fornari (Tuti)

Pesquisador, carreira Pq-A do NICS / UNICAMP. Professor pleno da Coordenadoria de Pós-graduação do Instituto de Artes da UNICAMP. Pós-doc em Cognição Musical na Universidade Jyvaskyla, Finlândia. Visitante escolar no CCRMA / Stanford University. Doutorado e Mestrado na FEEC / UNICAMP. Formado em Música popular (piano) e Engenharia elétrica na UNICAMP.

Liberdade, criatividade e música

Parte 1

José Fornari (Tuti) – 17 de janeiro de 2020

fornari @ unicamp . br


A mente humana tenta sempre entender a realidade através daquilo que conhece, exprimindo modelos da realidade através da ciência e os expressar através das artes, como é o caso da música. Nada mais conhecido para nós do que aquilo que construímos. Um simples artefato, como uma flauta divje (mencionada anteriormente), feita de osso de urso, por algum luthier que viveu há mais de 30mil anos atrás; é um artefato musical que pode ser usado para explicar por demonstração (ou seja, por imitação), exprimindo sonoridades similares com a dos cantos dos pássaros, e consequentemente expressar emoções a estas sonoridades associadas, através da performance musical. Por extensão e comparação, tem-se que grande parte do avanço alcançado pelo conhecimento humano, nas áreas das ciências, artes, filosofia, matemática e afins, também se baseou na comparação de fenômenos naturais com mecanismos; artes e artefatos concebidos e construídos pela própria humanidade.

Dessa frente, surgiram correntes filosóficas como o “mecanicismo” que tenta explicar a natureza e a realidade, comparando um fenômeno observado com os mecanismos concebidos e construídos pela humanidade. Thomas Hobbes, em sua obra seminal “Leviatã” (ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil), aventura-se a explicar a sociedade e a política dentro de uma visão mecanicista. René Descartes, outro renomado filósofo mecanicista do século XVII, através da sua visão dualista do ser humano, dividindo-o entre mente e corpo, tenta desse modo explicar a ação, reação e assim a condição humana, pela interação entre destas partes; seguindo um caminho similar àquele que o seu professor, Isaac Beeckman, trilhou, em sua teoria filosófica mecanicista e dual, dividindo a essência do universo entre “matéria e movimento”; onde o conceito de “matéria” deriva do “atomismo”, dos filósofos da Grécia antiga, como Leucipo e Demócrito, onde a matéria é necessariamente constituída de partes indivisíveis (atômicas); e o conceito de “movimento”, que trata da ação exercida pela inércia, ou seja, a resistência da matéria à mudança imposta pela aceleração (como a gravitacional). O dualismo mecanicista tem sido a base do pensamento científico determinista, bem como inspiração de muitas obras artísticas, musicais e até satíricas.

Short clip from Terry Gilliam's "The Adventures of Baron Munchausen" (1988). On delusions of philosophical grandeur

A visão mecanicista também leva ao consequente engendramento do princípio da “causa e efeito”; onde toda ação causa uma reação. Desse modo, considerando também que não pode existir uma reação (no presente) sem que tenha existido uma ou mais ações anteriores (no passado) que a originou, tem-se que todo fenômeno é ocasionado e assim pode ser determinado, estudado e entendido pelo conhecimento de suas causas. Assim, surge o “determinismo”, uma corrente filosófica que defende (em maior ou menor grau de fundamentalismo) a teoria de que não há efeito sem causa. A palavra “determinismo” vem do verbo “determinar” que se origina no latim “determinare”, composta pelo prefixo “de” significando “para fora”, e “terminare” significando “finalizar”. Esta teoria, em linhas bem simples e gerais, advoga que todo acontecimento (inclusive os mentais, como os pensamentos e consequentemente nossos julgamentos, ações e arbítrios) são determinados por causas anteriores (que ocorreram no passado) e assim, não pode existir o acaso, a criatividade pura (aquela da inferência abdutiva plena, ou seja, o “insight”) ou mesmo o livre arbítrio. Para o pensamento determinista, tudo o que ocorre no presente pode ser completamente determinado pelo que ocorreu no passado. Como então tudo se originou? Bem, como disse o biólogo Rupert Sheldrake (em seu livro “The Science Delusion”) “It’s almost as if science said, “Give me one free miracle, and from there the entire thing will proceed with a seamless, causal explanation”. Da mesma maneira que diz a frase atribuída a Arquimedes “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo”, o atual pensamento científico determinista (mecanicista) é como se dissesse “Dê-me um milagre inicial e um ponto de partida e explicarei o mundo”.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Archimedes_lever.png

O pensamento determinista, que para mim pode ser também chamado de “mecanicista” (pelas razões acima explicadas) é bastante presente ao longo da história da música erudita europeia, onde a teoria musical e as suas regras composicionais, como as de contra-ponto, condução melódica, cadências harmônicas, orquestração, etc. passaram a amalgamar um senso comum da boa forma musical de cada época, o que constituiu os grandes gêneros musicais eruditos. Compositores como J.S. Bach, Beethoven, Chopin, Brahms e similares são conhecidos pelas suas bem estabelecidas e estruturadas estéticas composicionais, pelas quais tanto estabeleceram uma forte identificação de seus estilos musicais para os seus ouvintes, como também, através destas, expressaram as suas criatividades musicais. O pensamento mecanicista funciona muito bem para se criar o ferramental composicional necessário do compositor e assim estabelecer a sua identidade (conforme utilizada recentemente por modelos de inteligência artificial para simular e finalizar composições inacabadas famosas, mencionado anteriormente). Porém, este de nada serve na ausência do artista, ou seja, a sua criatividade. Para mim isto seria como que ter uma bancada muito bem montada, com todas as ferramentas necessárias, mas sem o artesão que as soubesse utilizar.

Fonte: https://welltempered.files.wordpress.com/2009/09/uw-chamber-orchestra-low-res1.jpg

O grande físico Albert Einstein foi um famoso determinista. Ele negava a possível existência do livre arbítrio (free will). Isto fica claro em 2 bem documentadas declarações de Einstein: 1) ” As I have said many times God doesn’t play dice with the world” (conversation with W. Hermann,1943 ); 2) ” I am a determinist. I do not believe in free will. Jews believe in free will. They believe that man shape his own life. I reject that doctrine” (Einstein. His life and Universe. Walter Isaacson, p. 386 ). Einstein acreditava que, do mesmo modo que deus não joga dados com o universo, nós não temos livre arbítrio. No entanto, as evidências trazidas pela mecânica quântica e experimentos com partículas sub-atômicas desafiaram a visão determinista de Einstein, que acreditava que deviam existir “variáveis escondidas” que explicariam de um modo determinístico plausível uma visão causal do microcosmos (EPR paradox, 1935) . Isto foi motivo de muitas discussões interessantes e de altíssimo nível. Em especial, os trabalhos de Kurt Friedrich Gödel, em seus “Teoremas da incompletude de Gödel”, provam que a matemática é e sempre será incompleta, que existem números que não podem ser calculados, programas que são podem ser computados, números infinitos além de nossa compreensão e que assim, se existe um deus, ele joga dados com o universo, e tem um peculiar senso de humor. Não acredita? Então resolva a equação: x=x+1

Albert Einstein (right) in 1954 with Kurt Gödel (left), probably the most influential member of the Vienna Circle. (Photograph by Richard Arens, courtesy AIP Emilio Segrè Visual Archives). Fonte: https://physicsworld.com/a/circle-of-influence/

Em 2006, John Conway e Simon Kochen apresentaram o FWT (“Free Will Theorem”) provando definitivamente que o determinismo é de fato incompleto e que o livre arbítrio pode assim existir. De um certo modo, creio eu que a artes e, em especial, a existência e necessidade da música, veio sempre sendo uma evidência disso. Não existiria música se não houvessem compositores exercendo o seu livre arbítrio criativo, expresso em suas obras, criadas por suas inferências abdutivas (mencionada aqui) que se amalgamam em suas obras musicais. Do mesmo modo, também não existiria música se não houvessem ouvintes interessados em escutá-las, as analisando e exercendo também inferências abdutivas para as ressignificar e assim se emocionarem com a informação sonora que constitui uma obra musical.

Fonte: https://www.bbc.co.uk/programmes/articles/2WY1JdtMHZnxKdKkP8nkjYM/composing-the-music-for-the-series

Como disse acima, o determinismo é necessário na criação artística e musical, mas não é suficiente. No próximo artigo continuarei esta discussão onde falarei sobre as possibilidades determinísticas de se criar processos automáticos de composição algorítmica com significado musical.

 

Referências:

Conway and Kochen, The Strong Free Will Theorem, published in Notices of the AMS. Volume 56, Number 2, February 2009. http://www.ams.org/notices/200902/rtx090200226p.pdf

Diophantine equation https://en.wikipedia.org/wiki/Diophantine_equation

Greatest Common Factor and the Diophantine Equation. https://youtu.be/Z5IqEDFwCFQ

Gödel’s incompleteness theorems https://www.bbc.co.uk/programmes/b00dshx3

Complicação, complexidade e criatividade musical (3 blogs)

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Samarotto, Frank. “Determinism, Prediction, and Inevitability in Brahms’s Rhapsody in E♭ Major, Op. 119, No 4.” Theory and Practice, vol. 32, 2007, pp. 69–99. JSTOR, www.jstor.org/stable/41054416 .

 

Como citar este artigo:

José Fornari. “Liberdade, criatividade e música”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 17 de janeiro de 2020. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2020/01/17/45/