Musicologia do Tango

ESPECIAL

José Fornari (Tuti) – 19 de junho de 2019

fornari @ unicamp . br


Estando eu, esta semana, no Laboratório para o Estudo da Experiência Musical (LEEM) da Universidad de La Plata, Argentina, resolvi escrever os próximos artigos deste blog sobre algumas das interessantes pesquisas em musicologia que estão sendo aqui desenvolvidas, neste importante centro latino americano de pesquisa em música. Inicio pela pesquisa em caracterização do gênero musical argentino mais famoso, e com certeza um dos mais conhecidos gêneros musicais em todo o mundo; o Tango.

A música, como arte sonora, normalmente emerge como expressão artística expontânea de uma comunidade. Como tal, esta passa a ser um fator identificador e corroborador de sua identidade cultural. Tanto quanto são diversas as comunidades, também a música se diversifica em distintos e diversos gêneros musicais que conhecemos e apreciamos, mesmo quando não pertencentes à nossa cultura local. Esta diversificação ocorre em camadas. Existem diferenças sutis, desde as batidas características de cada escola de samba carioca, que as distingue e as enriquece, até as grandes diferenças entre gêneros musicais de diferentes nações. Dentro de cada gênero musical, tem-se ainda outra subdivisão; o estilo, que se refere àquilo que caracteriza e assim distingue um músico ou compositor dentro de um mesmo gênero musical. Chama-se de estilo o que nos permite perceber, por exemplo, a diferença entre 2 bons violonistas, tocando a mesma peça musical. Grandes artistas se distinguem e destacam por seus estilos musicais exclusivos, que agradam uma grande quantidade de pessoas e que normalmente são complexos e elaborados e assim difíceis de serem imitados por outros músicos, e que por isso servem de inspiração para gerações de músicos que elevam o criador do estilo admirado ao patamar de artista de grande destaque.

Da mesma forma que muitos dos gêneros musicais de sucesso global, o Tango nasceu anonimamente, nas camadas mais baixas de sua comunidade de origem. Isto garantiu com que a comunicação afetiva deste gênero se tornasse mais direta e efetiva, expressando mais fidedigna e profundamente os sofrimentos e anseios naturais da essência humana que se manifestam em sua comunidade de origem através do inefável filtro de suas idiossincrasias etnogeograficas e socioculturais que destilam essa expressividade na forma de um autentico e original gênero musical. Também, como muitos gêneros de grande sucesso, o Tango é associado à uma forma de dança, o que nos relembra da inseparável conexão da música com sua corporificação através do gesto. O Tango é dançado em pares, cujos passos e gestos são muito elaborados e complexos. Esta dança foi, com o passar dos anos, se formalizando e é atualmente praticada em diversas partes do mundo.

O Tango surgiu no final do século 19 DC, na região do rio de la Plata, entre Argentina e Uruguay, nos bordeis localizados próximos aos portos deste rio, onde uma grande confluência de culturas distintas passaram a conviver devido a um plano de abertura econômica; diferente do que se imagina, não relacionado à possível exploração de prata na região, elemento químico (Ag, do latim Argentum) que dá nome tanto ao rio quanto ao país. No entanto, este plano econômico não foi completamente bem sucedido e muitos dos imigrantes que vieram para esta região não alcançaram a bem aventurança econômica que sonhavam, o que gerou muitos atritos sociais, como a violência e a saudade da suas terras natais. Entre eles estavam europeus, latino americanos e escravos africanos. Os gêneros musicais europeus, como a Valsa e a Polca, se misturaram com gêneros locais, como a Milonga, a Habanera cubana e gêneros africanos, como o Candombe. Segundo Sylvain Poosson, o nome “Tango” vem justamente de sua influência africana, do erro de pronuncia da palavra “Tambor” (o instrumento de percussão) que passou a ser “Tambo” e por fim “Tango”. Curiosamente, não se utilizam instrumentos de percussão na orquestra típica de Tango. Neste período surgiu na região o bandoneon; um instrumento musical alemão, parecido com o acordeon porém com botões no lugar de teclas, e inicialmente destinado a substituir os órgãos em igrejas com menor recurso financeiro. Este instrumento, destinado ao ato liturgico, acabou se popularizando nos bordeis da região e assim definitivamente incorporado ao Tango. Em 2009, a UNESCO incluiu o Tango em suas listas de “Intangible Cultural Heritage”.

Mesmo sendo um gênero musical bastante formalizado, o Tango permite a expressividade do artista através de seu estilo. Este pode ocorrer tanto em nível individual, como é o caso quando se tem um único instrumentista e este apresenta similaridades em diferentes interpretações, quanto em nível grupal, onde um conjunto musical ou mesmo uma orquestra apresenta um estilo característico, normalmente relacionados à interveniência artística de um elemento fundamental de sua formação, como é o caso do líder da banda ou do regente da orquestra. No caso do Tango, a orquestra típica foi desenvolvida a partir da expansão do sexteto de Tango, formado inicialmente por 2 violinos, 2 bandoneons, baixo e piano. Na orquestra típica, tem-se: uma seção de cordas (violino, viola e cello), uma seção de bandoneons (contendo 3 ou mais instrumentos) e uma seção rítmica (piano e baixo).

Orquestra típica da Tango. Fonte: http://escuelatangoba.com/tag/buenos-aires/page/11/

O estilo das orquestras típicas está perceptualmente caracterizado pelo que se chama de fraseado. Este se refere ao conjunto característico de padrões rítmicos e melódicos que se apresentam com grande similaridade perceptual e que, devido à sua complexidade e ubiquidade de entendimento local, acabam por serem grafados em notação musical de forma simplificada.

O estudo conduzido pelo pesquisadores Demian Alimenti Bel e Isabel Cecília Martínez, coordenadora do LEEM, vem analisando o estilo de fraseado encontrado frequentemente nos diferentes estilos do gênero Tango. Em estudo recente, estes pesquisadores analisaram o estilo musical de Anibal Troilo, um dos maiores bandoneonistas e compositores do Tango clássico. O seu estilo musical, que se constrói por seus fraseados característicos, inspirou gerações de músicos e compositores de Tango, como foi o caso de Astor Piazzolla, compositor de renome internacional que, no início de sua carreira, foi bandoneonista na orquestra típica de Troilo.

Os pesquisadores analisaram o que se chamam de “rasgos” dos padrões rítmicos, ou seja, as variações características e intencionais, que levam a estrutura musical da performance a se distanciar de sua forma grafada na partitura, mas que definem a expressividade e o estilo característico deste músico ou grupo musical. Para isso foram analisados fragmentos de áudio de uma mesma peça musical interpretada pela orquestral de Troilo, em 1972. Os pesquisadores realizaram as seguintes etapas de análise: 1) Escutaram e anotaram os ataque que sustentam os padrões rítmicos e melódicos (articulatórios) dos arquivos de áudio. 2) Utilizando a ferramenta de software livre Sonic Visualiser (ww.sonicvisualiser.org), calcularam o espectrograma de cada trecho de áudio e analisaram manualmente a sua “superfície musical” a fim de elaborar gráficos contendo a redução notacional que a distingue da partitura. 3) Aplicaram técnicas “micro analíticas” para anotar as superfícies musicais de modo a evidenciar e descrever a componente “expressivo dinâmica” que caracterizam o estilo musical do artista.

Esta análise comprovou que a variação estilística do Tango, e por conseguinte, do estilo de um músico ou compositor, não é aleatória, mas obedece um padrão regular e característico, apesar de criado pelo artista de modo não intencional. Esta estrutura auto-organizada contém intrinsecamente características invariantes que estão relacionadas ao interprete (no caso deste experimento, Anibal Troilo) permitindo que os ouvintes mis atentos (norma;mente os que o admiram) possam identifica-lo. As variações detectadas entre a partitura e a interpretação determinam a existência de uma identidade musical típica do artista, que se expressa e permeia toda a sua obra, tanto em nível local (pertencente à obra em si) quanto em nível global (permeando a expressividade de todos os componentes de um grupo musical fazendo com que estes sincronamente expressem o mesmo estilo musical).

 

Referências:

[] Sylvain B. Poosson. “Entre Tango y Payada”: The Expression of Blacks in 19th Century Argentina. Confluencia Ed. Vol. 20, No. 1 (Fall 2004), pp. 87-99. Published by: University of. Northern Colorado.https://www.jstor.org/stable/27923034

[] UNESCO “Intangible Cultural Heritage”. https://ich.unesco.org/en/RL/tango-00258

[] Alimenti Bel, Demian. Martínez, Isabel Cecilia. “Atributos de la variación como rasgos de estabilidad en el tango: Patrones estilísticos en la producción de la música de Aníbal Troilo y Osvaldo Pugliese”. Epistemus – Revista de estudios en Música, Cognición y Cultura. ISSN 1853-0494 http://revistas.unlp.edu.ar/Epistemus Epistemus es una publicación de SACCoM (www.saccom.org.ar). Vol. 5. No 2 (2017) | 27-56. 2018


Como citar este artigo:

José Fornari. “Musicologia do Tango”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 26 de junho de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/06/26/25/