Escutar por ouvir

José Fornari (Tuti) – 20 de março de 2019

fornari @ unicamp . br


O artigo anterior abordou brevemente o processo fisiológico da “audição” e a sua participação no processo cognitivo da “escuta”, que pode ser sumariamente definido como “ouvir com atenção”. Escutar exige a participação ativa dos processos cognitivos da memória e atenção e que, algumas vezes, também os transcende evocando emoções naquele que escuta uma peça musical. O antropólogo Sherwood Washburn, em seu livro “Social Life of Early Man” (1962), diz (na página 61) que a audição não foi especialmente importante na evolução humana para a sobrevivência do hominídeo. Segundo Wasburn, na vida selvagem de um primata, por exemplo, muitos perigos ocorrem subitamente e predadores aparecem silenciosamente, onde já não há mais chance de escapar (ex: cobras que deslizam no chão praticamente sem ruído, ou grandes felinos que fazem emboscadas atrás de vegetações ou em cima de árvores). Neste contexto, a audição torna-se na verdade fundamental para que os primatas escutem os seus próprios sons. Washburn diz que, sendo os primatas a espécie mais “barulhenta” (ou vocalmente orientada) de mamíferos, a audição é fundamental para a expressão do indivíduo e consequente para a sua interação social. Através da audição, fêmeas interagem com seus filhotes, indivíduos trocam comunicações específicas, simbolizando, por exemplo, amizade, agressão, dor, presença de uma situação de perigo, etc. onde hierarquias sociais são estabelecidas, ratificadas e desafiadas. Em seres humanos, a evolução deste processo de comunicação sonora possibilitou o desenvolvimento das linguagens, onde a sua sofisticação permitiu a expressão de significados semânticos, onde são expressados contextos relativos a objetos, qualidades e ações específicas, organizados numa estrutura sintática naturalmente coerente, onde uma linguagem é auto-organizada segundo os princípios da gramática universal proposta por Noam Chomsky. Na música, a comunicação sonora continuou expressando o contexto afetivo que antecede e embasa a comunicação semântica da linguagem. Por esta razão a linguagem tende a ser naturalmente separatista, setorializando e distinguindo grupos sociais em diversas camadas hierárquicas, que se estendem desde os grandes grupos linguísticos até os dialetos, coloquialismos locais e léxicos que identificam grupos socioculturais. Já a música, pelo fato desta estar naturalmente mais relacionada à comunicação de estados emocionais, o que compõem um conjunto mais homogêneo na humanidade como um todo, esta tende a ser mais universal, uma vez que as experiências afetivas que temos e que são expressas através da música são de certa forma comuns a todos os indivíduos da espécie humana, onde diferentes grupos sociais, mesmo falando diferentes idiomas e pertencentes a distintos extratos sociais, dentro de certas condições de contorno, são mais capazes de entender e apreciar os diferentes gêneros musicais do que fazer o mesmo com as diferentes linguagens.

Wagakki band. Grupo de rock japonês que utiliza wagakki (instrumentos musicais tradicionais japoneses). Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Wagakki_Band

Para que haja comunicação sonora afetiva através da música, é necessário que os ouvintes estejam atentos à informação sonora processada pela audição. Como podemos constatar em nosso dia a dia, a atenção não é um processo cognitivo totalmente voluntário. A atenção depende do interesse do ouvinte. Somos capazes de escutar, no meio de uma multidão alguém chamar pelo nosso nome, ou mesmo muitas vezes capazes de escutar primeiro, antes de outros ouvintes ao nosso redor, o som do alarme de nosso celular tocando. Também somos involuntariamente “desconectados” de uma informação sonora (como um discurso ou mesmo música) que nos seja entediante, mesmo que estejamos nos esforçando para focar nossa atenção naquela informação sonora. Escutar exige genuíno interesse.

O livro “Listening” (1992), de Andrew Wolvin e Carolyn Coakley, define 5 tipos de “escuta” que são atualmente bastante aceitos pela comunidade de pesquisadores na área de linguística. As escutas são catalogadas como: 1) Discriminativa, 2) Compreensiva, 3) Apreciativa, 4) Empática e 5) Crítica. A escuta discriminativa ocorre quando o ouvinte é capaz de discriminar, ou seja, distinguir, entre o que é dito e o que é intencionado (ex: alguém dizendo estar feliz quando a sua voz exprime tristeza). A escuta compreensiva é aquela que permite ao ouvinte entender o conjunto da informação sonora como um todo, e não apenas as suas partes componentes, de modo fragmentado (ex: compreender o significado de um parágrafo ao invés de entender apenas algumas de suas frases ou palavras). A escuta apreciativa ocorre quando o ouvinte aprecia o significado estético de uma comunicação sonora (ex: o ouvinte gostar do timbre de voz de um palestrante ou o beleza de uma peça musical). A escuta empática é aquela que permite ao ouvinte empatizar-se pela informação sonora e sentir-se próximo do falante ou afetado por aquilo que é descrito (ex: se impactado por alguém descrevendo uma situação de sofrimento). A escuta crítica ocorre quando o ouvinte não apenas entende mas também forma um julgamento sobre aquilo que está sendo expresso (esta é considerada como a mais difícil forma da escuta). Estes 5 tipos de escuta não são mutuamente exclusivas ou estáticas. É comum que o ouvinte migre entre elas ou mesmo acumule-as, usando simultaneamente diversas dessas estratégias de escutas. Apesar desta catalogação ser claramente voltada à linguagem, muitas dessas categorias podem ser aplicados à escuta musical, sendo que algumas (como a apreciativa e a empática) ocorrem mais naturalmente entre ouvintes leigos, e outras (como a discriminativa, a compreensiva e a crítica), entre os instrumentistas e compositores.

Percebe-se assim que, enquanto o processo de ouvir é passivo, o processo de escutar é ativo. Deste modo, o “escutador” exerce uma função no processo de intencionalmente migrar entre diferentes estratégias de escuta a fim de maximizar a sua capacidade de coleta de informação e apreciação sonora. Esta habilidade é conhecida como “escuta ativa” (active listening) introduzida inicialmente por Rogers and Farson, em seu livro, de mesmo nome, de 2015. Apesar de não ser um livro científico, este toca na questão da necessidade do que escuta estabelecer estratégias e feedbacks para maximizar a comunicação. No caso da música, temos o exemplo da “escuta reduzida” de Pierre Schaeffer, onde são apresentadas as 4 funções da escuta musical: 1) Écouter (prestar atenção ao que se ouve); 2) Ouïr (perceber pelo ouvido); 3) Entendre (ter intenção de escutar; considerada como a mais importante função, segundo Schaeffer); 4) Comprendre (Écouter+ Entendre= entender). Segundo Schaeffer, estas 4 funções ocorrem simultaneamente no processo de escuta. e a relaciona com outros sentidos.

As duas etapas de redução do som da fonte para o objeto sonoro. Fonte: http://browsebriankane.com/My_Homepage_Files/documents/L%27objetSonore.pdf

No artigo “The psychological functions of music listening”, Thomas Schäfer e colegas realizaram um extenso estudo das funções comportamentais que levam indivíduos à escutarem música. Das 129 funções distintas destacadas, que foram julgadas por 839 voluntários, reduziu-se às 3 principais dimensões que levam pessoas a escutarem música com regularidade. Estas são: 1) Regulação de estado emocional (mood regulation); 2) Auto-entendimento (self-awareness); 3) Relacionamento social (social relatedness). O primeiro trata da capacidade da escuta musical em afetar o estado de espirito do ouvinte. É comum pessoas voltarem de um concerto ou show musical com o seu estado emocional prolongadamente alterado, normalmente para melhor (sentindo-se mais leves, satisfeitas e resolvidas), onde este efeito pode vir a durar por muitas horas ou até mesmo dias. O segundo trata da capacidade da escuta musical em mitigar conflitos psicológicos internos, reforçando ou focando um determinado estado emocional ou conclusão, aliviando assim um sofrimento ocasionado por uma incongruência ideológica ou afetiva. O terceiro trata da capacidade da escuta musical em criar, manter e reforçar laços sociais, do indivíduo com um determinado grupo, integrando-o com interesses ou ideologias em comum. Sendo a escuta musical um processo cognitivo tão amplo, envolvendo a atenção, a disposição e a intenção do ouvinte, e de significativo impacto afetivo, podemos dizer que a sua diversidade e abrangência é tão ampla quanto os interesses e as predileções humanas. David Huron, numa conferência para a “Society for Music Theory”, em 2002, propôs a existência de 21 modos distintos de escuta musical. Estes são: 1) Distracted listening(escuta distraída), 2) Tangential listening(escuta tangencial), 3) Metaphysical listening(escuta metafísica), 4) Signal listening(escuta sinalizadora), 5) Sing-along listening(escutar cantando junto), 6) Lyric listening(escuta lírica), 7) Programmatic listening(escuta programática), 8) Allusive listening(escuta alusiva), 9)Reminiscent listening(escuta reminiscente), 10) Identity listening(escuta identificadora), 11) Retentive listening(escuta retentiva), 12) Fault listening(escuta falsa), 13)Feature listening(escuta destacada), 14) Innovation listening(escuta inovadora), 15) Memory scan listening(escuta interna, com intenção de lembrar um episódio de vida), 16)Directed listening(escuta direcionada), 17) Distance listening(escuta distanciada), 18) Ecstatic listening(escuta que leva ao estado êxtase) , 19) Emotional listening(escuta emocional), 20) Kinesthetic listening(escuta com movimentos corporais e/ou dança), 21) Performance listening(escuta durante a atividade de performance musical). Ao terminar de apresentar esta extensa lista de possíveis escutas musicais, Huron conclui dizendo: “This list is not intended to be exhaustive!”, ou seja, que esta sua lista de escutas musicais não tem o objetivo de ser uma lista completa, contendo todos os possíveis modos de escuta musical. Estas parecem ser são tão diversas quanto as intenções e predileções humanas.

 

 

Referências

[1] Sherwood Washburn. “Social Life of Early Man”. New York: Distributed through Current Anthropology for the Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, 1962.

[2] Frederick Cooley. “A Perspective on Hearing & Listening”. https://coachcampus.com/coach-portfolios/research-papers/frederick-cooley-a-perspective-on-hearing-listening/

[3] Andrew Wolvin, Carolyn Gwynn Coakley. “LISTENING”. 4thedition. Published by William C. Brown Publishers, Dubuque, IA, 1992

[4] Wolvin, A. D., & Coakley, C. G. (1994). Listening Competency. International Listening Association. Journal, 8(1), 148–160. doi:10.1080/10904018.1994.10499135

[5] Carl R. Rogers, Richard Evans Farson. “Active Listening”. November 10, 2015

[6] Davi Donato. “As quatro funções da escuta de Pierre Schaeffer e sua importância no projeto teórico do Traité”. DEBATES | UNIRIO, n. 16, p.32-51, jun. 2016.

[7] http://www.arj.no/2008/04/01/david-huron-listening-styles-and-listening-strategies/

[8] Tuomas Eerola. “Formulating a Revised Taxonomy for Modes of Listening”. June 2012. Journal of New Music Research. DOI: 10.1080/09298215.2011.614951

[9] Paul Vickers. “Ways of Listening and Modes of Being: Electroacoustic Auditory Display”. Northumbria University, Dept. of Computer Science & Digital Technologies, Pandon Building, Camden St., Newcastle upon Tyne NE2 1XE, UK. https://arxiv.org/pdf/1311.5880.pdf


Como citar este artigo: 

José Fornari. “Escutar por ouvir”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 20 de março de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/03/20/12/