Som e sabor – parte 1

José Fornari – fornari@unicamp.br

30 outubro 2022

 

Do modo que entendo, num sentido brando e até subliminar, todos nós temos experiências sensoriais sinestésicas (que misturam sensações de distintos sentidos). Como se sabe, tais experiências são exacerbadas em estados mentais alterados, por exemplo, sob a influência de substâncias alucinógenas, como LSD ou DMT, em pacientes com disfunções cerebrais, em sonhos intensos ou até mesmo em experiências místicas, com muitos relatos de sinestetas que ouvem cores ou que veem sons, ou até mesmo as “alucinações musicais” descritas por Oliver Sacks

Porém, em menor escala e de modo até subconsciente, frequentemente temos experiências sensoriais multimodais (envolvendo diversos modos de percepção), que se apoiam num princípio sinestésico para fomentar o entendimento quantitativo e a apreciação qualitativa que compõem a nossa noção de realidade, tanto objetiva quanto subjetiva. Para mim, uma simples prova disso ocorre naturalmente, quando definimos a qualidade da sensação de um certo sentido com adjetivos de outro, por exemplo, ao mencionarmos que a voz de alguém é “macia” ou “áspera”, que um dado som é “brilhante” ou “opaco”, ou que um arquivo de áudio está muito “seco” ou “molhado” (este normalmente ligado ao nível de reverberação e outros efeitos sonoros que agregam a sensação de espaço e distância ao som). De fato, todos os nossos sentidos são estratégias biológicas evolutivas para a coleta dinâmica de dados em tempo real, tanto externos (ex: imagens, sons, cheiros) quanto internos (ex: fome, dor, sono). Esta intrincada tarefa é realizada pelo sistema nervoso, iniciando pelos neurônios sensoriais, cada qual especializado na coleta e na transdução de uma forma específica de energia (ex: eletromagnética para visão, mecânica para o tato, química para o olfato e paladar, acústica para a audição), cada qual convertida em potenciais de ação que são transmitidas de forma eletroquímica (impulsos elétricos que caminham pelos axônios dos nervos aferentes e são mediados por neurotransmissores nas suas sinapses). Toda essa gama informacional multimodal e dinâmica tem a mesma natureza (todos são potenciais de ação) e chegam constantemente ao encéfalo onde são discriminados de acordo com sua natureza sensorial, muitas delas de modo subconsciente (como a sensação táctil da roupa que você vestindo agora mas que provavelmente só reparou ao ler esta frase). 

A evolução não criou os sentidos para descreverem precisamente a realidade externa, mas para viabilizar e otimizar a nossa navegação e interação, de modo a propiciar a nossa sobrevivência e o nosso bem estar. Quando olhamos as paredes e o teto de uma sala, sabemos que os ângulos são retos (de 90 graus) mesmo não os vendo desse modo (vemos em seu lugar ângulos agudos ou obtusos que nos dão a sensação de perspectiva). Quando escutamos, componentes em frequência relacionados à voz humana são percebidas mais nitidamente (pois nossa audição evoluiu para ser mais sensível à fala humana, facilitando assim a comunicação humana através da voz e da linguagem). Nos acostumamos facilmente com um cheiro constante (por isso é tão difícil, por exemplo, alguém detectar o seu próprio mau hálito) ou um estímulo tátil constante (como no exemplo acima, do contato da nossa própria roupa) mas não nos acostumamos com a sensação de dor continuada (pois esta age como um tipo de alarme corporal para nos alertar de alguma anomalia).  As inúmeras ilusões (tanto visuais quanto sonoras) se baseiam nessas discrepâncias sensoriais, focando em inconsistências interpretativas da realidade, de modo a confundir nosso entendimento e nos comprovando assim que não percebemos “a vida como ela é” (aqui parafraseando Nelson Rodrigues

Qual lado parece mais alto; o da esquerda superior ou o da direita inferior? Para inverter a percepção do lado mais alto, basta fixar o olhar no lado mais baixo e imaginá-lo acima. Após alguns instantes a imagem irá, como que mágicamente, trocar o lado que aparece acima.   Menos impressionante, porém também relevante é notar que as faces pretas e brancas dos degraus, que na realidade são retângulos (formadas por 4 ângulos retos) são aqui desenhadas como losangos, cuja distorção nos dá a sensação de profundidade.

 

No cotidiano, os sentidos agem simultaneamente, em cooperação, a fim de nos prover informação útil e robusta. Por exemplo, é mais difícil se equilibrar num só pé estando de olhos fechados, ou assobiar uma escala musical ascendente (dó, ré, mi, fá, sol)  ao mesmo tempo que baixamos nossos braços. A integração sensorial multimodal (entre sentidos distintos) promove um melhor entendimento da realidade. Sendo assim, não é de se estranhar que sensações de um determinado sentido influenciem a sensação de outro sentido. Um exemplo disso é a sensação de sabor, que é dada pela integração quase que inconsciente dos sentidos do paladar e do olfato (por isso que quando se está com o nariz tampado, o sabor dos alimentos parece atenuado ou até ausente).  

No entanto, outras integrações menos óbvias também ocorrem e têm sido objeto de estudo científico, com forte apelo comercial. Este é o caso da integração entre a sensação de sabor (paladar e olfato) e a sensação sonora. Conhecida como “sonic seasoning” (tempero sonoro), esta tem sido uma área de estudos da influência do som e da música no sabor percebido ao ingerir alimentos e bebidas. Recentemente, o pesquisador Felipe Reinoso Carvalho, professor de marketing da Universidad de los Andes deu uma interessante palestra sobre o tema, para o grupo de Neurociência e Música da UFABC, o que me inspirou a escrever este artigo. A influência da música na propaganda já é algo bastante conhecido, utilizado como fator persuasivo pelo menos desde os trabalhos de Edward Bernays, considerado por muitos como o “pai da propaganda”, e estudado por teóricos como Theodor Adorno, em trabalhos como o seu conceito de indústria da cultura. O que há de novo no conceito aqui apresentado (sonic seasoning) é estudar a influência não psicológica ou cultural, mas sinestésica, de mediação sensorial do sabor através de estímulos tanto puramente sonoros desprovidos de contexto (notas, sons senoidais) quanto musicais (através de programação musical especificamente escolhida para estimular ou inibir determinadas nuances do sabor). É sabido por todos como a maioria das pessoas gosta de consumir alimentos enquanto escuta música ou assiste vídeos. Talvez a influência sonora já seja intuitivamente utilizada por todos ao escolher e harmonizar um cardápio com uma programação musical específica. O que os estudos aqui tratados tentam realizar, a meu ver, é avançar o conhecimento científico no sentido de compreender um pouco mais as razões perceptuais (os fatores psicoacústicos) e os emotivos (os fatores musicais) que permitem mediar sonoramente a promoção ou contenção de provavelmente o maior dos prazeres humanos; beber e comer; e por isso mesmo, fonte de tanta satisfação e sofrimento. 

 

continua…

 

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “Som e sabor – parte 1”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 30 de outubro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/10/30/som-e-sabor-parte-1/