A musicologia de Descartes à Gestalt

José Fornari (Tuti) – 23 de janeiro de 2019

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No século 17 DC, durante o período Barroco, Descartes produziu a sua primeira obra filosófica, “Compendium musicae”, escrita em 1618 mas publicada apenas após a sua morte. É interessante assim observar que a primeira obra de Descartes é dedicada ao estudo filosófico da música. O pensamento cartesiano, em termos de música, tem suas raízes no movimento humanista da Renascença, que procurou resgatar os ideais musicais da Grécia antiga, tanto em relação à sua fundamentação matemática pitagórica quanto ao seu componente aristotélico, emocional e catártico. Descartes inicia este seu primeiro livro com a seguinte afirmação “A base da música é o som e o seu objetivo é nos agradar e despertar várias emoções”. No entanto, Descartes não acreditava que valores estéticos pudessem ser representados unicamente pela obra musical. Para ele, tais valores ocorrem através da relação da música com o ouvinte, ou seja, através de propriedades relacionais entre objeto e observador. Em seu último livro, “As Paixões da Alma” (1649), Descartes afirma que existem apenas seis tipos de afetos gerados pela mente humana. Estes são: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza). Os demais afetos seriam, segundo Descartes, meras combinações destes afetos primordiais. [1]

Neste período, surgiu a “Doutrina dos afetos”, no campo da estética das artes. Esta doutrina era baseada na ideia de materialização de um afeto através de um símbolo ou evento, seja este musical ou pictórico. Com base neste princípio, a música era vista como um meio para evocar afetos no ouvinte, onde determinados eventos musicais poderiam incitar emoções específicas. Diversos teóricos do século 17 e 18 DC, como é o caso de Athanasius Kircher e Johann Mattheson, defenderam esta doutrina. Em seu livro “The perfect chapelmaster” (1739), Mattheson descreve, por exemplo, que a sensação de alegria pode ser gerada por melodias com grandes intervalos musicais, enquanto que intervalos menores podem evocar a tristeza nos ouvintes; a fúria pode ser gerada por harmonias ásperas juntamente com melodias rápidas; a obstinação pode ser evocada pela combinação contrapontística formada por melodias muito independentes. [2]

O êxtase de Santa Teresa, de Bernini, século 17 DC. Fonte: https://www.walksofitaly.com/blog/art-culture/things-to-see-in-rome-bernini

No século 18 DC, durante o período Iluminista na Europa, surgem diversos pensadores e correntes filosóficas que discorrem, dentre tantas outras questões, também a respeito da música. Gottfried Wilhelm Leibniz pensava na música como uma área do conhecimento na qual a sensação é unida à exatidão numérica. Uma famosa afirmação de Leibniz diz que “a música é um tipo de exercício de aritmética que a mente realiza, sem perceber que está calculando” (“musica est exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi”). Este aforismo foi posteriormente parafraseado por Arthur Schopenhauer, em seu primeiro livro “O Mundo como Vontade e Representação” (Die Welt als Wille und Vorstellung) onde o autor diz que a “música é um exercício metafísico da alma, sem que esta perceba que está filosofando” (“musica est exercitium metaphysices occultum nescientis se philosophari animi“, ou em Inglês “music is a hidden metaphysical exercise of the soul, which does not know that it is philosophizing”). Immanuel Kant (1724-1804), ao teorizar sobre o belo, diz que a música em si é um tipo de arte sem representação; um tipo de beleza livre. Já a música com letra, como no caso da ópera e da canção, deixa de ser esta beleza livre e passa a ser o que Kant define como que uma forma de “beleza aderente”, aproximando-se da literatura; uma arte representacional, que apresenta significado semântico. Uma frase de Schopenhauer, citada por Oliver Sacks, em seu livro “Musicophilia” (2007), diz que “a profundidade da música, tão fácil de perceber e tão difícil de explicar, vem do fato de que esta expressa todas as emoções humanas, porém permanecendo distante da realidade e sem provocar dor”. (“The inexpressible depth of music, so easy to understand and yet so inexplicable, is due to the fact that it reproduces all the emotions of our innermost being, but entirely without reality and remote from pain“). [3,4]

Fonte: https://www.the-philosophy.com/leibniz-philosophy-summary

No século 19 DC, tivemos os famosos estudos em música de Eduard Hanslick, considerado o primeiro professor de estética musical. Contemporâneo de Richard Wagner e Robert Schumann, Hanslick publicou, em 1854, seu aclamado livro: “Do Belo Musical”, onde discute e critica a Doutrina dos afetos em música, de Kircher e Mattheson. Para Hanslick, a música não deve se limitar ao que ele chama de “estética dos sentimentos”, onde a sua função seria restringida apenas a de representar e transmitir afetos. O “belo musical”, para Hanslick, transcende a representação de afetos, permanecendo belo mesmo quando a música não evoca qualquer emoção no ouvinte. Sendo a essência musical, conforme descrita por Aristóteles, composta por “som e movimento”, para Hanslick, o prazer do ouvinte advém da antecipação inconsciente deste movimento musical, que a sua mente inconscientemente tenta predizer ao escutar uma seqüência de sons ordenados, que geram expectativas no campo de sua imaginação. Friedrich Nietzsche foi um partidário das ideias de Hanslick, bem como um fervoroso amante da música. É atribuída a ele a frase “sem música, a vida seria um erro”. Além do livre pensador que todos conhecem, Nietzsche foi também pianista e compositor clássico, deixando mais de 40 obras para piano, como a “Hymnus an die Freundschaft” (Hino à amizade). Apesar de se declarar “o último discípulo de Dionísio”, a sua estética musical para muitos críticos é vista como Apolínea; sem os excessos e exageros dionísicos, mas ordenada, compenetrada, serena e conservadora. Nietzsche lamentava que Sócrates, segundo ele, tenha contribuído em afastar a música da tragédia e opunha-se à tendência que percebia em muitos filósofos e compositores de secundar a música como uma serva da linguagem. Para Nietzsche, quanto mais a música se afasta de concepções semânticas, mais verdade esta abarca. Desse modo, a música contêm mais estímulos do que a linguagem pode representar; uma verdade inefável, profunda e intuitiva. No estudo da música, tanto Nietzsche quanto Hanslick acreditavam que a verdadeira música é desprovida de palavras, ou seja, é instrumental, e que o seu estudo deve ser empírico, baseando-se na matemática e na acústica, sendo que, para Nietzsche, todo conhecimento advêm da experiência e da matemática. [5,6]

Na área da acústica e percepção sonora, tem-se o importante trabalho do físico e médico Hermann von Helmholtz (1821-1894). Helmholtz desenvolveu importante pesquisa em áreas diversas, como a mecânica, a fisiologia dos sentidos, o sistema nervoso humano, o eletromagnetismo e a psicoacústica (a ciência que estuda a percepção sonora). Em 1863, Helmholtz lançou o livro “On the Sensations of Tone as a Physiological Basis for the Theory of Music” (A sensação sonora como base fisiológica para a teoria musical) que é um trabalho seminal que influenciou profundamente a área da musicologia sistemática no século 20 DC. Neste livro, entre tantos outros assuntos, Helmholtz menciona uma invenção sua, chamada posteriormente de “Ressoador de Helmholtz”. Trata-se de um tipo de vaso metálico, em formato aproximadamente esférico, que isola um parcial específico do som. Todo som natural é formado por inúmeros parciais. Estes podem ser representados por senoides com diferentes e variáveis amplitudes, frequências e fases. Os parciais mais relevantes de um som tonal (como é o caso do som de uma única nota musical) são chamados de harmônicos. Utilizando diversos destes ressonadores, é possível se fazer uma análise primordial dos parciais que compõem um som natural, confirmando na prática musical a série de Fourier (desenvolvida no final do século 18 DC por Joseph Fourier, para explicar a propagação de calor em placas metálicas), que prova matematicamente que todo sinal contínuo no domínio do tempo (como é o caso do som) pode ser decomposto em parciais; componentes ou harmônicos que podem representar este som no domínio da frequência; o que é também conhecido como “espectro sonoro”. 

O filósofo e psicólogo Carl Stumpf (1848-1936) lançou diversos livros sobre o estudo da música, como “The Origins of Music” e “Tone psychology” (psicologia tonal) que foi publicado em 2 volumes (nos anos de 1883 e 1890). Stumpf tem uma abordagem principalmente qualitativa e fenomenológica, deixando clara a distinção entre o fenômeno em si e a sua representação mental. Ele realizou diversas investigações, como: as características particulares dos sons de distintos instrumentos musicais, os fatores determinantes da melodia, a fusão tonal (o fenômeno que ocorre quando os parciais, ao serem ordenados linearmente, numa determinada sequência em termos de suas frequências de f, 2.f, 3.f, etc. e com intensidades decrescentes, são percebidos pela mente como uma única nota de um tom complexo) e a definição da consonância e da dissonância musical. 

Carl Stumpf (direita) durante uma gravação. Fonte: https://www.smb.museum/en/exhibitions/detail/laut-die-welt-hoeren.html

Wilhelm Wundt (1832-1920), considerado pai da psicologia moderna, foi também um pioneiro no estudo sistemático da música. Ao contrário de Stumpf, Wundt possuía uma abordagem quantitativa de investigação científica. Em seu livro “An introduction to psychology” (1912), Wundt apresenta sua teoria da “expectativa” e “compreensão”, que influenciou o trabalho de musicólogos do século 20 DC, como Leonard Meyer. Wundt antecipou alguns conceitos da psicologia da Gestalt (termo que significa “forma”), cujo mote é “o todo é maior do que a soma de suas partes”.

Wilhelm Wund (sentado) em seu laboratório de psicologia experimental. Fonte: https://bibliolore.org/tag/wilhelm-wundt/

Existe uma forte ligação entre o estudo da música e os criadores da psicologia da Gestalt, ainda mais pelo fato de que muitos deles (Köhler, Koffka, Wertheimer e Ehrenfels) eram também músicos amadores e, como tais, englobaram e descreveram fenômenos gestálticos através de exemplos musicais. Ehrenfels, por exemplo, mencionava que, ao transpormos uma melodia para outra tonalidade, ainda assim facilmente a reconhecemos, apesar do fato de que todas as suas notas tenham de fato mudado. Isto só ocorre porque a relação entre as alturas das notas (os intervalos) se mantêm [“If we change the key of a melody, all the elements are replaced. The only way that we still recognize the melody is not because of the sum of the elements but by the totality of the relationship between them”] o que é, em si, um exemplo musical de um processo gestáltico. 

 

Referências: 

[1] Jorgensen, L. M. (2012). Descartes on Music: Between the Ancients and the Aestheticians. The British Journal of Aesthetics, 52(4), 407–424. doi:10.1093/aesthj/ays041

[2] https://www.britannica.com/art/doctrine-of-the-affections

[3] Kant’s Aesthetics and Teleology. First published Sat Jul 2, 2005; substantive revision Wed Feb 13, 2013. https://plato.stanford.edu/entries/kant-aesthetics/

[4] Klempe SH (2011). “The role of tone sensation and musical stimuli in early experimental psychology”. Journal of the History of the Behavioral Sciences. 47 (2): 187–199. PMID 21462196. doi:10.1002/jhbs.20495. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/jhbs.20495

[5] Helmut Walther. “Nietzsche as Composer” (Nuremberg). http://www.f-nietzsche.de/n_komp_e.htm

[6] Sophie Bourgault. FRIEDRICH NIETZSCHE’S MUSICAL AESTHETICS: A REASSESSMENT. University of Ottawa. Symposium, vol. 17 no. 1. Spring Printemps. 2003. https://www.artsrn.ualberta.ca/symposium/files/original/8d13d631c8779d8a81ace522d8aafdde.pdf


Como citar este artigo: 

José Fornari. “A musicologia de Descartes à Gestalt”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 23 de janeiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/23/4/