Leonardo Porto Passos – 4 de abril de 2021
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- Há 50 anos, Karlheinz Stockhausen já era um compositor consagrado e tornava-se professor de composição na Universidade de Música e Dança de Colônia (Hochschule für Musik und Tanz Köln, onde lecionou até 1977), Alemanha, cidade próxima ao vilarejo de Kürten, na qual ele vivia desde 1965 e permaneceu até os anos finais de sua vida.
1971 também foi o ano em que Stockhausen compôs suas peças musicais Sternklang e Trans, suas composições de número 34 e 35, respectivamente. A primeira é uma “música de parque” para ser executada ao ar livre por 21 cantores e instrumentistas (incluindo sintetizadores) divididos em cinco grupos de quatro pessoas, em locais esparsos, com considerável distância entre si. Os artistas são captados por microfones e amplificados em alto-falantes, e um percussionista fica numa região central para ajudar a sincronizar os cinco grupos. Já a segunda é um trabalho orquestral semiacusmático, pois os músicos mais ativos ficam escondidos da vista do público, enquanto, aos olhos da plateia, 42 instrumentistas de cordas (incluindo um órgão elétrico) realizam paródias da música erudita moderna e um enorme tear de madeira em atividade se move pelo palco, realizando em conjunto uma obra onírica, baseada em um sonho do compositor.
Stockhausen não foi o primeiro compositor a utilizar instrumentos ou equipamentos eletrônicos em suas obras. Antes dele, experimentos em música eletroacústica vinham sendo realizados por vanguardistas como John Cage, Pierre Schaeffer (Musique Concrète francesa) e Herbert Eimert e Werner Meyer-Eppler (Elektronische Musik alemã, termo criado por Meyer-Eppler), fundadores do Estúdio de Música Eletrônica (Studio für Elektronische Musik, da emissora de rádio alemã Westdeutscher Rundfunk Köln), o primeiro estúdio do gênero do mundo, na mesma Colônia onde viveu Stockhausen, que começou a frequentar o estúdio em 1951 e lá gravou duas composições: Elektronische Studien I e II (1953-54, suas composições de nº 3) e Gesang der Jünglinge (1955-56, composição nº 8). Portanto, Munique e Berlim não eram os únicos centros de experimentação na época. O coração da tradição eletrônica europeia era em Colônia. E ainda que Stockhausen não tenha sido o pioneiro da música eletrônica, ele foi um dos mais profícuos, e provavelmente o maior influenciador de uma geração de jovens músicos que fizeram parte daquilo que viria a ser conhecido como krautrock.
Toda uma geração de jovens – em grande parte filhos de simpatizantes do nazismo durante a Segunda Guerra que agora se calavam diante de todas as atrocidades ocorridas – se rebelara contra o legado de seu país nas duas grandes guerras, e isso eclodiu nos protestos dos movimentos estudantis de 1968 na Alemanha Ocidental, marcados pela rejeição ao tradicionalismo e às autoridades alemãs, que incluíam diversos ex-oficiais do regime nazista. A ligação do krautrock com a extrema esquerda era íntima, e daí infere-se a grande rejeição às tradições e ao conservadorismo alemães. Em 1967, surgiu em Munique o coletivo radical de arte política Amon Düül, que realizava shows e happenings de improvisação livre, e que deu origem à banda Amon Düül II, um dos grupos seminais do krautrock. Entre os apoiadores do coletivo, estavam os diretores de cinema Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog, este último, inclusive, teve algumas trilhas musicais de alguns de seus filmes compostas pela banda Popol Vuh, que tinha estreitas ligações com a Amon Düül II. A polêmica se dá por conta de dois famigerados seguidores do coletivo: Andreas Baader e Gudrun Ensslin, fundadores do Rote Armee Fraktion – RAF (Fração do Exército Vermelho), ou Grupo Baader-Meinhof, como era comumente chamado pela imprensa alemã, uma organização guerrilheira de extrema-esquerda fundada em 1970 na Alemanha Ocidental e dissolvida em 1998.
Além da rejeição às tradições e ao passado nazista, a juventude alemã carecia de representatividade nas artes e na música, principalmente diante do schlager, um estilo de música popular de entretenimento predominante na época, com melodias singelas, quase caricatas, e letras sentimentalistas e ingênuas. De acordo com Dieter Moebius (Kluster, Cluster e Harmonia): “Schlager é música com letras e melodias estúpidas que todo mundo adora” (KRAUTROCK, 2009). E o que não era schlager eram releituras ou cópias da cultura pop estrangeira. “Até o final dos anos 1960, tudo vinha de fora. Tudo era imitação, principalmente das bandas inglesas. Isso era normal, principalmente depois da devastação sofrida pela cultura alemã. Não eram apenas as cidades que estavam em ruínas, mas toda a cultura que estava em ruínas. As mentes estavam em ruínas. Tudo estava arruinado”, como bem descreve Irmin Schmidt (STUBBS, 2015), tecladista do Can.
Os traumas e as consequências decorrentes da Alemanha ter protagonizado duas guerras de escala global somados a uma cultura musical popularesca e alienante motivou a inquietante juventude alemã do final da década de 1960 a buscar sua própria identidade e a criar algo que pudesse representá-la. Edgar Froese, principal membro do Tangerine Dream, diz que, “[Após a Alemanha iniciar e perder duas guerras] Não havia mais nada a perder. Nós perdemos tudo. E então, quando pensamos em fazer música de uma forma diferente, nos restava apenas a forma livre, a forma abstrata” (KRAUTROCK, 2009). E isso foi um dos fios condutores do krautrock. Jean-Hervé Péron, da banda experimental Faust, defende que os artistas serviam como um espelho para os pensamentos revolucionários da época, e que o rock’n’roll não era suficiente para os jovens darem vazão a tudo o que estava acontecendo (KRAUTROCK, 2009).
Se o rock’n’roll não era a referência ideal para os jovens alemães por não dar conta de seus anseios, motivações e necessidade de uma identidade própria, quem ou o que poderia, então, cumprir esse papel?
A resposta estava dentro da própria Alemanha: Stockhausen e a elektronische musik.
Holger Czukay e Irmin Schmidt (que trabalhou como professor de piano e maestro), respectivamente baixista e tecladista do Can, foram alunos de Stockhausen. Membros do Kraftwerk e do Tangerine Dream declararam abertamente terem Stockhausen como influência. O compositor alemão foi uma figura central para a emergente cena que buscava uma identidade em meio aos constantes pastiches pós-guerra. E como defendeu Danny Fichelscher (Popol Vuh, Gila e Amon Düül II): “A verdadeira música alemã, é claro, é a música eletrônica” (KRAUTROCK, 2009). Não por acaso, Klaus Schulze (Tangerine Dream) foi um dos primeiros a usar o recém-popularizado sintetizador, que já existia desde 1957, mas só começou a ser realmente difundido quando seus preços começaram a ficar mais acessíveis, a partir da segunda metade da década de 1960.
Ao misturar o experimentalismo de Stockhausen com a novas possibilidades trazidas pela música eletrônica e as vanguardas da época, como a música contemporânea, o free jazz, a livre improvisação, o funk e o protopunk, os jovens alemães – pelo menos aqueles ligados à contracultura e à rebeldia – começaram a desenvolver um estilo musical único, sem precedentes no resto do globo, e que, portanto, possuía toda a identidade da qual esses jovens eram carentes e que podia bem representá-los naquele espaço e tempo.
Os padrões recorrentes de verso e refrão deram lugar, de um lado, ao improviso, e de outro, à repetição. O krautrock lidava com esses dois extremos. John Cage e Steve Reich eram influências constantes. As estruturas do rock foram incorporadas por certos grupos, mas sem as mesmas progressões de acordes, e quase sempre com exagero proposital de repetições. Composição espontânea aliada à improvisação idiomática.
As primeiras manifestações dessa nova forma de encarar a música popular na Alemanha ocorreram no Zodiak Free Arts Lab, uma casa de shows inaugurada em 1967, em Berlin Ocidental, por Hans-Joachim Roedelius (Kluster/Cluster) e Conrad Schnitzler (Tangerine Dream, Kluster), onde se apresentavam grupos como Kluster, Tangerine Dream, Ash Ra Tempel e The Agitation.
O primeiro registro encontrado do termo é de um anúncio de página inteira da Popo Music Management e Bacillus Records para promover o rock alemão no Reino Unido, publicado na Billboard Newspaper, v. 83, n. 22, de 29 de maio de 1971, há exatos 50 anos. Porém, o termo krautrock já era usado antes disso por radialistas britânicos para se referir às bandas alemãs do final da década de 1960 e começo de 1970 – termo, aliás, de cunho pejorativo, já que a palavra “kraut” (“repolho”, por conta de “sauerkraut”, “chucrute”) era utilizada pelos ingleses como apelido para seus inimigos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Por conta disso, diversos músicos dessa geração rejeitavam o termo, e preferiam se autodefinir de outras formas, como kosmische musik (música cósmica), termo cunhado por Edgar Froese e que aparece primeiramente no encarte do álbum “Alpha Centauri”, de sua banda Tangerine Dream, lançado em 1971. E no ano seguinte, a Ohr Records – que lançou LPs e singles de diversas bandas de krautrock –, então gravadora da banda, lançou a coletânea em vinil “Kosmische Musik”, com músicas de Tangerine Dream, Klaus Schulze (Tangerine Dream, Ash Ra Tempel e The Cosmic Jokers), Ash Ra Tempel e Popol Vuh. O termo também deu nome a um selo da Ohr, que não teve vida longa.
Mas a verdade é que até então nem sequer existia uma cena krautrock propriamente dita, pois as bandas eram de regiões distintas, espalhadas por toda a Alemanha, e a maior parte dos músicos nem ao menos se conhecia. Uma ponte entre muitos grupos alemães de rock experimental da época foi o produtor e engenheiro de som Conny Plank, que trabalhou com bandas como Can, Cluster, Neu!, Kraftwerk, Guru Guru, Harmonia e La Düsseldorf. Plank foi o principal produtor musical dessa geração de bandas e contribuiu para que o krautrock realmente viesse a se tornar uma cena musical.
Além disso, houve também a contribuição da imprensa britânica, que passou a chamar de krautrock toda e qualquer banda que fizesse rock experimental na Alemanha, e até algumas que estavam distantes de qualquer experimentalismo, vanguardismo, propostas inovadoras ou quebras de padrões, como alguns grupos de hard rock ou rock progressivo, gêneros que estavam em seu auge no Reino Unido no início da década de 1970. Com a ajuda da imprensa britânica, o krautrock foi bem recebido na Grã-Bretanha e acabou se popularizando, o que gerou a venda de muitos discos, a ponto de a maior gravadora da época, a Virgin, fechar contrato com grande parte dos grupos de krautrock.
Foi também em 1971 que Conrad Schnitzler deixa a banda Kluster, e os membros remanescentes, Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius, lançam o primeiro disco do agora reformulado Cluster. Wolfgang Seidel (Ton Steine Scherben e Eruption) teceu uma concisa descrição para o grupo: “Um bom exemplo de música feita por não músicos. Eles tiveram a visão de criar um tipo de ‘utopia sônica’, um mundo diferente, com sons diferentes. Uma espécie de promessa de que existe uma maneira de sair do ambiente, da sociedade”. Porém, talvez por conta da ênfase no experimentalismo, o Cluster não obteve o mesmo sucesso de alguns de seus conterrâneos, como o Kraftwerk (que logo de início abriu mão do krautrock para imergir por completo na música eletrônica minimalista, tornando-se a primeira banda totalmente eletrônica e considerados os pioneiros do que hoje se conhece por “música eletrônica”, ligada ao house, techno, raves etc.), e assim, na mesma época da transição de Kluster para Cluster, Roedelius e Moebius resolvem deixar Berlim e se mudam para um vilarejo do século XVI, em Forst, na Baixa Saxônia, em uma casa próxima ao rio Weser. Dois anos depois, em 1973, a dupla se junta ao guitarrista Michael Rother (Kraftwerk, Neu!), para formar um supergrupo do krautrock, o Harmonia.
No mesmo ano de 1971, Michael Rother e o baterista Klaus Dinger saíram de uma das primeiras formações do Kraftwerk para formarem o influente duo Neu!. Além de lançar excelentes discos, a dupla ficou conhecida pelas linhas de bateria que passaram a levar o nome de motorik (algo como “habilidades motoras” em alemão), um beat 4/4 minimalista que passou a ser largamente associado aos grupos de krautrock e que veio influenciar diversos grupos e gêneros futuros, como o punk, pós-punk, rock alternativo e indie rock.
1971 também foi o ano em que diversos discos importantes de krautrock foram lançados:
- Amon Düül II – Tanz der Lemminge (3º)
- Ash Ra Tempel – Ash Ra Tempel (1º)
- Can – Tago Mago (3º)
- Cluster – Cluster (1º)
- Embryo – Embryo’s Rache (2º)
- Faust – Faust (1º)
- Floh de Cologne – Rockoper Profitgeier (3º)
- Gila – Gila: Free Electric Sound (1º)
- Guru Guru – Hinten (2º)
- Kluster – Zwei-Osterei (2º)
- Kluster – Eruption (3º, ao vivo)
- Popol Vuh – In den Gärten Pharaos (2º)
- Tangerine Dream – Alpha Centauri (2º)
O legado do krautrock é inegável para toda a música pop que a precedeu: “Uma série extensa de estilos descende do krautrock: ambiente, hip-hop, post-rock, electropop, psych-rock, trance, rave, pós-punk e outros ainda não nascidos” (STUBBS, 2015). E mesmo que o krautrock não seja mais levado como um movimento musical e que não haja uma cena krautrock, suas influências são, quando não evidentes, latentes em boa parte da música pop contemporânea.
REFERÊNCIAS:
ADELT, Ulrich. Krautrock: German music in the seventies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2016.
BRITANNICA, The Editors of Encyclopaedia. Karlheinz Stockhausen. Encyclopedia Britannica, 1 dez. 2020. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Karlheinz-Stockhausen>. Acesso em: 26 mar. 2021.
HARDEN, Alexander C. Kosmische musik and its techno-social contexto. IASPM@Journal, v. 6, n. 2, p. 154-173, 2016. Disponível em: <https://iaspmjournal.net/index.php/IASPM_Journal/article/view/784>. Acesso em: 29 mar. 2021.
KRAUTROCK: the rebirth of Germany. Direção e Produção: Ben Whalley. Produção Executiva de Mark Cooper. Documentário televisivo, colorido, sonoro, 60 minutos. Londres: BBC, 23 out. 2009 [1. exibição].
STOCKHAUSEN Foundation for Music. Disponível em: <http://www.karlheinzstockhausen.org/>. Acesso em: 26 mar. 2021.
STOCKHAUSEN: Sounds in Space. Disponível em: <http://stockhausenspace.blogspot.com/>. Acesso em: 26 mar. 2021.
STUBBS, David. Future days: krautrock and the birth of a revolutionary new music. New York: Melville House Publishing, 2015.
Como citar este artigo:
Leonardo Porto Passos. “Krautrock: Stockhausen, elektronische musik e o legado para a música pop”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 4 de abril de 2021. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2021/04/04/krautrock-stockhausen-elektronische-musik-e-o-legado-para-a-musica-pop/