José Fornari (Tuti) – 09 de fevereiro de 2020
fornari @ unicamp . br
editado em 24 de março de 2020
https://sites.google.com/a/unicamp.br/musicologianamidia
Entre janeiro e fevereiro deste ano começamos a ver nos noticiários a evolução de um novo tipo de coronavirus, um grupo de vírus que causam doenças tanto em aves quanto em mamíferos (como nós). Enquanto escrevia a primeira versão deste artigo, no início de fevereiro, o site https://www.worldometers.info/coronavirus/ relatava que haviam sido registrados no mundo todo 34.974 casos constatados e 724 mortes por covid-19, a doença causada pelo novo coronavirus. Na época isto equivalia a um pouco menos de 0.0005% da população mundial, algo pouco maior do que a chance de ser atingido por um raio (0,0003%) ou menor do que pular de uma avião e o paraquedas não abrir (0,0007%). Este episódio havia me lembrado da legendária morte do grande compositor russo, do final do século XIX, Pyotr Ilyich Tchaikovsky, falecido 9 dias após estrear sua sexta sinfonia (de caráter sombrio, melancólico e até desesperado). Sua morte é por alguns atribuída a uma bem sucedida tentativa de suicídio, por intencionalmente ter obstinadamente bebido água não fervida durante uma grande epidemia de cólera na sua região (uma doença causada por um tipo de bactéria, que é atualmente considerada bem rara, apesar de ainda matar cerca de 15.000 brasileiros por ano, ou seja, cerca de 0,007% da população nacional, o que equivalia no começo de 2020 a mais de 14 vezes o número de mortes ocasionadas pelo novo coronavirus no mundo, até então. Na época ponderei que ninguém se preocupava com a possibilidade estonteantemente maior de morrer de cólera, mas todos estavam muito temerosos com a possibilidade de se infectarem e até morrerem devido ao novo coronavirus. Agora, em 24 de março de 2020, quando editei este artigo, o número de casos do novo coronavirus subiu vertiginosamente, cerca de 10 vezes do que era a menos de 2 meses atrás. Sabemos agora que o novo coronavirus é de fato um problem sério; uma pandemia que provoca a COVID-19, uma infecção pulmonar para a qual a humanidade ainda não tem imunidade, agregado ao fato de se espalhar tão facilmente quanto os virus da gripe, o que poderá levar à morte de cerca de 1% da população global, ao longo do corrente ano. Este é um cenário de calamidade pública que governos do mundo inteiro tem se unido para combater e mitigar. Este fato havia me levado no início de fevereiro, onde o impacto desta epidemia ainda era pouco conhecido e estudado, a pensar sobre o medo, em especial, o medo da morte, o que me inspirou a escrever sobre o medo da morte expresso pela música. Agora, 6 semanas após a primeira edição deste artigo, vemos que este medo é real e os impactos globais quase que inevitáveis.
Durante este período também ocorreu uma mudança súbita e profundamente significativa na política de edição dos blogs de ciência da Unicamp. Antes, cada autor era responsável pelo conteúdo de seu blog e assim livre para publicar seus textos no momento e na forma que desejasse. Agora, o conteúdo publicado nos blogs passou a ser revisado e editado por assessores anônimos. Isto foi outro duro golpe na liberdade e na velocidade de publicação destes blogs, que deixaram de ter o dinamismo típico da comunicação desta mídia e passam, pelo menos na minha opinião, a se assemelhar a conteúdos mais estáticos e vigiados, como aqueles encontrados em artigos impressos ou páginas de websites. Segue abaixo o texto original, conforme havia escrito anteriormente. Havia inicialmente pensado numa continuação deste tema, num novo artigo mas o ambiente de edição dos blog também mudou, limitando acessos e impedindo ações simples como editar links. Se possível, continuarei a escrever blogs sobre musicologia em outra plataforma acadêmica que a Unicamp venha a disponibilizar. Segue um link onde indicarei minhas novas e eventuais publicações sobre o tema da pesquisa em música. https://sites.google.com/a/unicamp.br/musicologianamidia
Eu penso que o sentimento de medo ocorre na mente de alguém ao constatar a possibilidade da ocorrência, num futuro imediato, de algo que venha a ser desvantajoso, como a sua própria morte, dolo, perda de algo estimado, alguém querido, uma condição vantajosa e similares. Na música, que a imensa maioria da população chama de música (imagino eu que esta seja uma porcentagem até acima dos dos que não serão afetados pelo coronavirus), existem estruturas rítmicas, melódicas, harmônicas, timbrísticas (e, no caso da canção, agregando ainda mais nuances, com a prosa e a poesia da letra), que apresentam e contrastam padrões sequenciados ao longo do tempo, que são facilmente detectados pela mente humana, através da audição, de modo a incitar (ou até mesmo tantalizar) na mente do ouvinte uma trama de antecipações, expectativas, surpresas e constatações ordenadas no tempo, da qual este é mais controlado do que controlador; uma torrente guestáltica de padrões que inevitavelmente interpretamos de um certo modo específico.
Ilusão sonora que parece se tratar de um som sempre elevando o seu pitch (ou altura musical) quando na verdade trata-se de um som em looping.
Para tanto, deve-se existir hierarquias e contrastes dos elementos sonoros, afinal de contas, se todos os intervalos, notas e timbres forem iguais ao escrutínio da mente, não haveria como estruturar contrastes e portanto um discurso emotivo musical, baseado em tensão e relaxamento, expectativa e constatação, seria impossível. Isto se baseia no princípio físico da série harmônica, diversas vezes mencionado anteriormente nos artigos aqui apresentados. Desta série vem a noção de consonância e dissonância (intervalos mais próximos do início da série, como a oitava, a quinta e a quarta, são percebidos pela audição como sendo mais consonantes, enquanto que intervalos mais distantes da série harmônica, como a segunda maior e a segunda menor, são percebidos como mais dissonantes).
Outro ponto importante é a mimese, do princípio platônico de onde vem a famosa frase que diz que “a arte imita a realidade” (mencionado anteriormente), que contrasta a narrativa (semântica, que explica um fato) com a mimese (expressiva, que demonstra um fato). Desse modo, a arte e, entre estas, a música, tende a imitar a sonoridade de algo conhecido, a fim de intensificar sua capacidade expressiva. No caso de expressar o medo, a música pode usar sonoridades acústicamente similares a alguma ocorrência que denote perigo iminente, como sons graves e percussivos (ex: trovões e urros de grandes predadores), ou sons agudos e estridentes (ex: ataques de aves de rapina ou o roçar violento de objetos cortantes em texturas rígidas, como facas ou espadas sendo afiadas). Estas sonoridades representam mimeticamente situações de perigo que conhecemos, conscientemente ou não (como os sons de grandes predadores, que normalmente não temos contato na vida urbana, mas quem já escutou, por exemplo, um leão de fato urrando, ao vivo, sabe que esta sonoridade inspira o mais profundo terror). De acordo com o contexto em que tais sonoridades são apresentadas (ex: em trilhas sonoras de filmes de horror ou suspense), estas podem facilmente induzir o medo no ouvinte.
Psycho (1960), filme de Alfred Hitchcock , “The murder”, composta por Bernard Herrmann.
O medo pode também ocorrer em três níveis. O primeiro é a constatação de um perigo iminente mas que ainda não se apresenta como imediato (por exemplo, ver um lobo nos espreitando, na outra margem de um rio) O segundo é a constatação do perigo iminente e imediato (por exemplo, ver que o lobo da outra margem do rio encontrou uma ponte e está agora vindo aceleradamente em nossa direção). O terceiro é a constatação de impossibilidade de qualquer ação que possa evitar a tragédia (por exemplo, estar frente a frente com o tal lobo do exemplo). Estes representam os 3 estágios de reação psicológica frente a um perigo, conhecidos pelos três “f”, em Inglês: fight (“brigar”, quando ainda há o que ser feito para evitar o perigo. É o estágio onde podemos sentir raiva), flight (“fugir”, quando não adiante tentar destruir o que representa o perigo. Neste tipo de situação, sentimos apenas medo, nunca raiva) e freeze (“paralisar”, é quando não há mais nada a ser feito para evitar o perigo. É o momento em que uma presa se entrega ao seu predador, o condenado se entrega ao carrasco, ou como diz o aviso acima do portal do “Inferno” de Dante Alighieri, “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”). A música ad libitum (livre, sem pulsação regular) está associada, na minha opinião, ao primeiro estágio (flight), que apresenta a possibilidade iminente mas não imediata de perigo. A pulsação regular representa o segundo estágio (flight) onde ainda resta tentar fugir. A súbita ausência da música (ou trilha sonora) ou a troca para sons miméticos (que representam diretamente perigo), representa bem o terceiro e último estágio (freeze) onde só resta “abandonar as esperanças”, mas com espaço simbólico e até factual para “pranto e ranger de dentes”. Esta evolução é vista em diversas trilhas sonoras famosas, como a do filme Jaws, no momento em que o tubarão faz a sua primeira vítima.
Cena do filme Jaws (1975) com trilha sonora apresentando os 3 estágios do medo em música.
Referências:
Rick Beato. “What Makes Music Creepy? | Inside the Science of Horror Music”. Feb 3, 2020. https://youtu.be/y-dMimIr1pY
Seinfeld Sofia, Bergstrom Ilias, Pomes Ausias, Arroyo-Palacios Jorge, Vico Francisco, Slater Mel, Sanchez-Vives Maria V. “Influence of Music on Anxiety Induced by Fear of Heights in Virtual Reality”. Frontiers in Psychology. Vol. 6. Pg. 1969. (2016). ISSN: 1664-1078. DOI: 10.3389/fpsyg.2015.01969.. https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpsyg.2015.01969
JESSICA STOLLER-CONRAD. “Putting Fear In Your Ears: What Makes Music Sound Scary”. June 12, 2012. https://www.npr.org/sections/health-shots/2012/06/12/154853739/putting-fear-in-your-ears-what-makes-music-sound-scary
William Aubé, Arafat Angulo-Perkins, Isabelle Peretz, Luis Concha, Jorge L. Armony. “Fear across the senses: brain responses to music, vocalizations and facial expressions”. Social Cognitive and Affective Neuroscience, Volume 10, Issue 3, March 2015, Pages 399–407, https://doi.org/10.1093/scan/nsu067. Published: 01 May 2014.
Como citar este artigo:
José Fornari. “Medo, morte e música – parte 1”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 09 de fevereiro de 2020. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2020/02/09/48/