ESPECIAL
José Fornari (Tuti) – 17 de julho de 2019
fornari @ unicamp . br
Quando escutamos música, especialmente as que gostamos, temos muitas vezes a vontade ou o impulso quase que insconsciente de nos movimentarmos junto com o seu andamento. Balançamos nossa cabeça, batemos com os pés no chão, estalamos nossos dedos ou percutimos as palmas de nossas mãos, o que nos dá uma agradável sensação de imersão, pertinência e empatia com aquilo que ouvimos. Não sentimos ou fazemos o mesmo quando escutamos outras formas de comunicação não musical, mesmo que a consideremos aprazível, como um discurso inflamado ou uma comovente poesia. A música se distingue dessas outras formas de comunicação sonora por criar uma empatia gestual com o ouvinte. Diversas linguagens e comunidades primordiais, como a nação indígena norte americana Niitsítapi (também conhecidos como Blackfoot), os falantes da linguagem Tok Pisin, da Papua-Nova Guiné, ou os grupos indígenas Suiás, no Norte do Mato Grosso, não possuem palavras distintas para se referirem apenas à música ou apenas à dança. Para estes, música e dança fazem parte de um único e indissociável conceito.Vemos que este fenômeno é particularmente presente nos gêneros musicais populares, como é o caso do: dance, rock, reggae, country, polka, valsa, samba, baião, fandango ou mesmo o tango, que apesar de ter se distanciado dos instrumentos percussivos na formação de suas orquestras típicas (conforme descrito anteriormente) tem uma estrutura particularmente elaborada e elegante de gestos complexos e sutis, sincronizados entre os pares, que compõem esta tão apreciada forma de dança. Gêneros musicais eruditos, ou mesmo os que se encontram nesta fronteira, tendem a se distanciar ou a promover a contenção desta gestualidade espontânea, como é o caso do: jazz, choro, a chamada “música clássica” e os gêneros contemporâneos, atonais e postonais. É como se, para estes,a associaçãoentre música e dançapromovesse uma imersão afetiva do ouvinte à paisagem musicalque o distancia de uma abordagem mais racional e analítica,impedindo-o de apreciar osdetalhes mais sutis e delicados de uma obra composicional, como a sua elaborada linha melódica, a sua complexidade poliritmica ou mesmo a sua intrincada harmonia, as quais só são possíveis de serempercebidas e assim apreciadas através de uma escuta racional,reduzida,distanciada de paixões basais advindas da dança e do gesto sincronizado com experiência musical.Tem-se assim uma tênuelinha que separa a apreciação musical, de uma estado mais afetivo einconsciente para um estado mais elaborado e consciente. Ambos podem trazer grande satisfação.
Fonte: http://www.escolamovimento.com/br/wp-content/uploads/2012/07/dança-ind%C3%ADgena.jpg
Esta linha parece ter sido definida ao longo da história no processo de emergência de gêneros menos sociabilizantes e mais performáticos. Nas comunidades primordiais, a música possuía um aspecto mais funcional e comunitário, executada em ritos sociais, como colheitas, caças, batalhas, cerimônias de casamento ou funerais. Nestes contextos, a música era produzida e apreciada por todos. Com o surgimento gradual de contextos musicais mais complexos, começatambém aexistir uma seleçãonatural de talentos, que dá destaquee notoriedade aospoucosindivíduos com maior habilidade para executa-los; por exemplo, uma passagem musical muito rápida oucomplexa, que a maioria dos indivíduos não consegue realizarcom perfeição (ou seja, com erros perceptualmente indetectáveis) e expressividade (com variações de tempo e intensidade tais que potencializam o impacto emotivo da escuta musical). O destaque gradual que estesindivíduos, capazes de executar tais manobras musicais ou gestuaismais complexas e de forma mais expressiva,trouxeram destaque a estes, que foram pouco a pouco compondo a seleta casta de interpretes, que impressionam ecativam o restante dacomunidadepelas suas habilidades musicais incomuns.Com isso, uma boa parte da produção musical aos poucos deixa de ser comunitária e passa a ser performática, onde a maioria dos indivíduos deixa de participar da produção musical coletiva para compor as platéias, dispostas a dar atenção e recursos para assistir um pequeno grupo de indivíduos criar e executar música de forma afetivamente mais impactante.
No entanto, este recrudescimento da separação entre plateia e performer não impediu que o público mantivesse um canal de participação com a fonte do fazer musical. Mesmo distilando-se uma clara divisão entre o músico e sua audiência, esta reteve a participação gestual, com a sua sincronização; desde sua forma mais sutil, como através de expressões faciais, até sua forma mais forte e evidente; a dança. Gêneros atuais, como a música dos DJs, a música eletrónica (conforme vista no artigo anterior) são amplamente sectarizadas no que tange a divisão entre performer e público e no entanto possuem uma enorme interação gestual de mão dupla.
Pesquisadores do LEEM (Laboratorio para el Estudio de la Experiencia Musical), onde estive no mês passado, vem realizando estudos sobre estas questões, especialmente no que tange a união indissociávelde muitos gêneros de músicacom uma forma dedança; onde a música neste caso éessencialmentevistacomo uma forma de experiência corporalizada. Estes estudos procuram distanciar o entendimento e aconceituação de músicade ummodelo tradicional que atrata como um tipo de texto, que pode ser lido e declamado (como num solfejo musical)etentase aproximarde uma definiçãomusicalsocialmentemaisinterconectada. Neste sentido, a obra musical é vista como uma criação participativa, que inicia no compositor masquedependefortementedo interprete, que de um certo modo, co-cria a obra,uma vez que asua performance à recria.Segundo a Dra. Martinéz, coordenadora do LEEM, é necessário repensar a ontologia musical (o entendimento da essência do fenômeno musical),abandonandouma abordagem tradicional,puramente essencialista (que define a músicaa partir de seus próprios exclusivos e isoladosatributos), para uma definição de música mais ampla, que abarca suas ramificações e interveniênciascomunitárias, transformando-a num verdadeirofenômeno social. Também é importante repensar o conhecimento musical como algo situado notempo e noespaço (portanto dependente de sua época e de suacomunidade de origem), ao invés de algo universal (atemporal e atávico), o que levariaà errôneas conclusões, como a existência de gêneros musicais melhores, ou piores, que outros. Torna-se assim importante atentar para o papel do corpo (no sentido dos seus padrões de movimentos,gestos,dança)expressosno fazer eno apreciar musical, que é um canalque promove sua interação social através da comunicação gestualcom outros, por meioda dança. Com isso, tem-se o conceito de “cognição musical corporificada”, onde o significado musical também depende de sua corporificação participativa.
No próximo artigo, continuarei esta discussão, tratando do conceito de “improvisação e oralidade”.
Referências:
Lewis, Jerome. “A Cross-Cultural Perspective on the Significance of Music and Dance to Culture and Society” from “Language, Music ena the Brain”, edited by Michael A. Arbib. 2013. Strungmann Forum Reports, vol. 10, J. Lupp, series ed. Cambridge, MA: MIT Press. 2013. https://www.academia.edu/3480517/A_Cross-Cultural_Perspective_on_the_Significance_of_Music_and_Dance_to_Culture_and_Society
Martínez, Isabel Cecilia; Pérez, Joaquín Blas. “La improvisación como conciencia en acto: Hacia una perspectiva corporeizada y ecológica de la improvisación musical”. VI Jornadas de Investigación en Disciplinas Artísticas y Proyectuales. 2012. http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/40694
Como citar este artigo:
José Fornari. “A união estável da música com a dança”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 17 de julho de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/07/17/27/