Ozônio na COVID dos outros é refresco
Entender as consequências da administração de substâncias em nosso corpo vai além da pandemia de coronavírus. É uma questão de educação científica e de saúde pública. A desinformação que tem circulado tem gerado não apenas polarização, em um momento inoportuno, mas também colocado em risco a saúde coletiva.
Gian Carlo Guadagnin, Cyntia Almeida e Gildo Girotto Júnior.
Qual o impacto que a administração de uma substância provoca no organismo? Realmente conhecemos quais efeitos um determinado alimento, medicamento ou qualquer outro produto pode provocar quando o ingerimos?
Recentemente, não apenas medicamentos têm sido alvo do debate na prevenção e cura contra a COVID-19. Os limites da insensatez ou do desconhecimento foram ultrapassados ao ponto de encontrarmos recomendações totalmente insanas e irresponsáveis. Por exemplo, com a administração de desinfetantes e, agora, de soluções contendo ozônio no combate a doenças. É preciso esclarecer alguns fatos. Assim, propomos neste texto, trazer explicações sobre a prática da administração de ozônio via retal recomendada, dentre outros, por um administrador público de uma cidade brasileira.
Ozônio e seus diferentes “buracos”
É possível que muitos dos que estão lendo este texto já tenham ouvido falar da “Camada de ozônio” ou do “Buraco na camada de ozônio”. Provavelmente, é a situação mais comum associada a esta substância. Em um outro contexto, o ozônio pode ser associado ao tratamento de água. O processo comercialmente conhecido como ozonização consiste em uma alternativa, ou um tratamento complementar da água, para a eliminação de bactérias. Neste procedimento, o ozônio reage quimicamente destruindo microorganismos e, com o surgimento da pandemia, esse mesmo princípio passou também a ser utilizada para a sanitização de ambientes.
Mais recentemente, uma terceira situação associada ao ozônio (sendo esta mais problemática) é o processo de ozonioterapia, um procedimento experimental que consiste na aplicação do ozônio em partes do corpo com intuito de eliminar doenças. Para entender um pouco sobre esses três usos, primeiramente vamos esclarecer um pouco sobre a composição e propriedades da substância em questão.
O ozônio tem em sua composição o elemento químico oxigênio. Entretanto diferente do gás oxigênio que é vital, sua fórmula é um pouco diferente, o que faz com que sua atuação química também seja. Parece confuso? Vamos tentar entender.
O gás oxigênio é formado por moléculas em que dois átomos de oxigênio estão unidos, representamos esta substância pela fórmula O₂. Já o gás ozônio tem suas moléculas formadas pela união de três átomos de oxigênio, e o representamos pela fórmula O₃. Essa pequena modificação faz com que as substâncias sejam bastante diferentes em termos de atuação.
Figura 1: Moléculas de Oxigênio (O₂) e de Ozônio (O₃).
Fonte: CDF/Blogs de Ciência
Conhecendo um pouco mais de cada molécula
Enquanto o gás oxigênio, por exemplo, pode se ligar a moléculas em nosso sangue como a hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio no sangue) sendo levado a diferentes partes do corpo e alimentando reações que nos fornecem energia, o gás ozônio é uma substância extremamente tóxica para o nosso organismo uma vez que, ao invés de se ligar às moléculas, tem o poder de destruí-las.
De fato, o ozônio tem um grande poder de reagir com outras substâncias causando a degradação destas e ao mesmo tempo sofrendo transformações. Assim, quando as moléculas de O₃ encontram outras substâncias elas literalmente “atacam” esses compostos causando a degradação, ou seja, destruindo essas moléculas. Quimicamente, dizemos que esse comportamento do ozônio é relacionado a uma molécula oxidante e bastante reativa.
Há outros exemplos de moléculas parecidas que têm comportamento bastante distintos. Você já deve ter ouvido falar de água oxigenada, certo? Enquanto a molécula de água (H₂O) é pouco reativa e vital para os seres humanos, a água oxigenada, que tem fórmula H₂O₂, é uma substância bastante reativa e também oxidante. Percebam que, mesmo a alteração sendo de apenas um átomo a substância muda completamente de propriedades. Ou seja, substâncias diferentes têm atuações diferentes.
Podemos agora voltar a falar dos usos do ozônio, tudo bem?
A “camada de ozônio”
Na nossa estratosfera (uma das partes da atmosfera terrestre que se encontra a mais de 11 km de altitude, acima da maior parte das nuvens) as moléculas de ozônio se formam naturalmente devido às diferentes condições existentes nessa região e essa grande quantidade de moléculas de O₃ tem uma função importantíssima na vida do nosso planeta. Simplificadamente dizemos que ali há uma camada de ozônio. Como assim? O que queremos dizer é que é uma região que possui muitas moléculas desse gás.
A radiação do sol carrega uma grande quantidade de energia. Se toda a energia chegasse ao planeta seria capaz de destruir algumas espécies vivas e causar diferentes problemas incluindo riscos a nossa pele. Entretanto, quando essa radiação chega à estratosfera, uma parte da energia é absorvida pelas moléculas de ozônio que se transformam em moléculas de gás oxigênio. Deste modo, o ozônio se degrada após absorver parte da energia solar, como se formasse um verdadeiro filtro solar. Como resultado, apenas uma parte do conteúdo energético dos raios solares “entra” no planeta, possibilitando condições de vida adequadas.
Esse ciclo de formação e destruição do ozônio pela absorção de energia solar é contínuo e natural. Portanto, o ozônio lá na estratosfera é benéfico e fundamental ao planeta e a todos que o habitam.
Figura 2: Transformações que ocorrem na atmosfera.
Fonte: CDF/Blogs de Ciência.
O ozônio no tratamento de água
Como mencionado anteriormente, as moléculas de ozônio são muito reativas, o que significa que “atacam” outras moléculas e tem o poder de destruir principalmente os compostos orgânicos, como as proteínas, que compõem microorganismos, bactérias, nossa pele, nossas células, etc. Então podemos imaginar que se água estiver contaminada com agentes causadores de doenças (vírus, bactérias, protozoários, por exemplo) o gás ozônio borbulhado nesse sistema reagirá matando os microorganismos e contribuindo para a potabilidade da água.
De fato, isso ocorre e é possível utilizar o processo no tratamento de água para o consumo ou para ambientes como piscinas. Esse processo tem sido utilizado como uma alternativa ao uso de “cloro” e a vantagem é que após a reação, o ozônio se transforma em oxigênio, não deixando resíduos na água. Então, a água não fica com aquele “gosto ou cheiro de cloro”. Em larga escala esse processo ainda é mais caro do que o uso de “cloro” e, por isso, as empresas que cuidam da nossa água ainda não fazem esse tratamento.
Mas você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com o tratamento para a COVID-19?
Finalmente chegamos lá.
A ozonioterapia é, na melhor das hipóteses, um método experimental que consiste na administração de ozônio de forma localizada ou intravenosa (aplicação nas veias) ou via retal (ânus) com objetivo de combater infecções diversas. (veja nosso texto sobre método científico e entenda a diferença entre hipótese e resultados científicos comprovados aqui)
Já mencionamos sobre a reatividade do ozônio e seu poder oxidante, certo? Desta forma, imaginemos que uma pessoa possua uma infecção superficial na pele. Diversos tratamentos poderiam ser realizados neste caso sendo um deles (ainda experimental) a aplicação de ozônio diretamente sobre a região. Assim, o ozônio reagiria destruindo possíveis micro organismos causadores da infecção. A depender do tipo de infecção e do grau de complexidade, uma intervenção desse tipo, considerada de forma localizada poderia funcionar como têm sido apontado em estudos teste realizados¹. Seguindo a mesma ideia, outros estudos têm investigado a administração de ozônio diretamente em regiões internas no corpo que possuem células cancerosas e/ou infecções².
Um fator importante que deve ser destacado é que, sem exceções, os estudos afirmam que não há resultados 100% conclusivos (devido a fatores diversos) e a ozonioterapia é sempre considerada como tratamento experimental, ou seja, em fase de teste e ainda, nenhum dos casos mencionados têm relação com a administração retal de ozônio.
Mas então, como o ozônio por administração retal pode combater a COVID-19?
A resposta é bastante simples. NÃO PODE!
Vamos repetir aqui só para deixar bem evidente, caso tenha ficado alguma dúvida sobre o que estamos argumentando neste texto:
O OZÔNIO COM ADMINISTRAÇÃO RETAL NÃO COMBATE A COVID-19
Mas pode usar ozônio como tratamento para Coronavírus?
Não! Não pode!
Ao injetarmos a molécula em qualquer parte do nosso corpo ela rapidamente reage degradando as substâncias que estiverem em contato, e ela mesma, a molécula de ozônio, sofre transformações produzindo novas substâncias.
Portanto é inimaginável que a substância injetada chegue às células onde o coronavírus se encontra (as quais estão espalhadas por todo o corpo), uma vez que ela teria que percorrer um longo percurso. Então, a menos que todo o vírus esteja concentrado na região onde se injetou o ozônio, não haveriam consequências benéficas e, mesmo nesta situação, não se têm estudos a respeito.
Para se ter ideia, a própria Sociedade Brasileira de Ozonioterapia afirmou que “O efeito da ozonioterapia em humanos infectados por coronavírus é desconhecido e não deve ser recomendado como prática clínica ou fora do contexto de estudos clínicos”. Isto é, não há qualquer evidência e comprovação científica de que isto pode ser usado para cura e/ou tratamento da Covid-19!
Ainda, o Conselho Federal de Medicina, em sua resolução 2.181, DE 20 DE ABRIL DE 2018, estabelece “a ozonioterapia como procedimento experimental, só podendo ser utilizada em experimentação clínica dentro dos protocolos do sistema CEP/Conep.”³, o que basicamente nos diz: “olha, isso precisa ser testado porque ainda não temos comprovação de qualquer efetividade”.
Mas, será que há efeitos prejudiciais? Sim. Basta pensarmos que estamos injetando uma substância extremamente agressiva em uma região relativamente sensível.
Enfim, entender as consequências da administração de substâncias em nosso corpo vai além da pandemia de coronavírus. Isto é uma questão de educação científica e de saúde pública. A desinformação que tem circulado gera não apenas polarização num momento inoportuno, mas também coloca em risco a saúde coletiva. Ou seja: sigamos e fiquemos atentos e informados. Afinal, Ozônio na COVID dos outros é refresco.
Referências
1. MARCHESINI, Bruna Fuhr; RIBEIRO, Silene Bazi. Efeito da ozonioterapia na cicatrização de feridas. Fisioterapia Brasil, [S.l.], v. 21, n. 3, p. 281-288, jun. 2020. ISSN 2526-9747. Disponível em: <http://www.portalatlanticaeditora.com.br/index.php/fisioterapiabrasil/article/view/2931>. Acesso em: 06 ago. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.33233/fb.v21i3.2931.
2. DE ANDRADE, Raul Ribeiro et al. Efetividade da ozonioterapia comparada a outras terapias para dor lombar: revisão sistemática com metanálise de ensaios clínicos randomizados. Rev. Bras. Anestesiol. [online]. 2019, vol.69, n.5 [cited 2020-08-06], pp.493-501. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942019000500493&lng=en&nrm=iso>. Epub Dec 20, 2019. ISSN 1806-907X. http://dx.doi.org/10.1016/j.bjane.2019.06.007.
3. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA RESOLUÇÃO 2.181, DE 20 DE ABRIL DE 2018. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=10/07/2018&jornal=515&pagina=106&totalArquivos=107
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