DANÇA DOS AMINOÁCIDOS

por | maio 23, 2022 | Textos | 0 Comentários

Mutações virais – parte 2

    Você deve estar lendo, ouvindo ou assistindo diferentes notícias sobre as variantes do coronavírus, e, também, sobre novos riscos que elas podem gerar, certo? No texto anterior (que você pode ler clicando aqui) falamos um pouco da dinâmica viral e agora vamos falar de outros detalhes dessa coisa toda.

Gildo Girotto Júnior

O que já sabemos

    Os vírus estão sujeitos aos mesmos mecanismos evolutivos que todos os seres vivos, inclusive nós, humanos. Essas mutações podem, por meio de modificações estruturais e químicas, alterar a forma como eles infectam as células. Algumas dessas alterações têm grande impacto na forma como os vírus se disseminam na população humana e como nosso organismo interage e reage na presença de vírus [1]. Neste texto, vamos falar sobre como algumas alterações já identificadas promovem a maior interação do coronavírus com nossas células.

    Sabemos que as mutações dependem de mecanismos de alteração genética por meio dos quais sequências de genes distintas daquelas do vírus de referência são disseminadas na população dos parasitas, podendo levar a novas variantes [2]. Isso ocorre com o processo de cópia do material genético, RNA ou DNA, e torna a evolução possível. São essas mutações no material genético que irão, eventualmente, desencadear alterações nas estruturas e composição do vírus. Isso porque nem toda alteração genética desencadeia uma alteração estrutural ou melhora na adaptação: se não forem interessantes para a sobrevivência dele, acabam por desaparecer da população; se auxiliarem o parasita nas adaptações ao ambiente e a sua espécie hospedeira são disseminadas em novas cópias. Podemos ressaltar também que a seleção natural e a junção de processos que levam a variações genéticas são os principais responsáveis por definir se uma mutação ocorrerá e se permanecerá naquela população [3].

Um baile a dois: o sistema chave e fechadura

    Na capa proteica do coronavírus há uma proteína denominada Spike (Spike é uma palavra do inglês que significa espinho) ou, simplesmente, S. Essa proteína interage com as nossas células abrindo caminho para que o material genético do vírus consiga penetrar. Precisamos, portanto, entender porque a mudança nessa proteína ocorreria e como identificá-la, bioquimicamente falando.

    Observemos então o caso das variantes do coronavírus, falando especificamente da interação da proteína S com o receptor celular, denominado ACE2. Podemos pensar que quanto maior a atração entre proteína e receptor, mais fácil será do vírus nos contagiar, despejando seu material genético em nossas células.

    A conexão entre a proteína S e a proteína ACE2 da célula pode ser associada à conhecida analogia chave e fechadura que ocorre entre enzimas e substratos, uma vez que o processo de interação química é semelhante [4]. É como se partes da proteína fossem chaves que se encaixam bem nas fechaduras da proteína de nossas células. Mas, no caso de mutações, esses encaixes podem ser melhorados se as interações entre as moléculas de S e do receptor ACE2 se tornarem mais fortes. Vamos considerar este ponto para análise.

    As proteínas são formadas pela união de um conjunto de moléculas que podem se repetir diversas vezes. É como se pegássemos 22 peças diferentes, disponíveis quase que infinitamente no ambiente, e as combinássemos de modo a montar uma grande cadeia. Essas peças são as moléculas de aminoácidos. Por diferentes razões, desde fatores como a temperatura, acidez e ainda fatores que não estão muito bem elucidados, essas combinações podem variar. O que reconhecemos nos estudos é a possibilidade de eliminação de moléculas ou substituição de alguns aminoácidos por outros. Essas mudanças geram proteínas diferentes, sendo uma das razões para termos as variantes virais.

    Assim, como a proteína S atrai e é atraída por nosso receptor ACE2 para uma determinada composição a interação pode aumentar por conta da própria natureza das moléculas e também devido às posições e estruturas dos novos aminoácidos, que podem se ajustar mais adequadamente estabelecendo um contato mais intenso com o receptor. Quanto maior essa interação, maior a quantidade de vírus que consegue efetivamente depositar seu RNA e, como apontam alguns estudos [5][6], o maior número de vírus que efetivamente entram em nossas células pode ser responsável pelo agravamento da doença, pois mais células serão comprometidas e mais órgãos poderão ser afetados.

A música está mudando

    Em janeiro de 2021, pesquisadores da faculdade de medicina de Ribeirão Preto (FMRP), por meio de um conjunto de análises e simulações computacionais, pesquisaram especificamente como a mudança de um dos aminoácidos da proteína S poderia explicar a maior taxa de contágio da mutação viral identificada em setembro de 2020 e conhecida como variante Alfa [7]. O que se sabia por meio de estudos anteriores é que entre o vírus original de referência, identificado em 2019, e essa mutação havia uma troca de um aminoácido identificada por N501Y. Mas o que isso significa?

    Essas letras e números identificam de qual aminoácido estamos falando e a posição em que ele se encontra na estrutura da proteína. O N se refere a um aminoácido chamado asparagina, o número, 501, indica sua posição e o Y se refere a um aminoácido chamado tirosina, que substituirá o primeiro. Dessa forma, N501Y significa a troca de uma asparagina por uma tirosina na posição 501[8]. Essa troca de moléculas gera uma interação mais forte junto ao receptor de nossas células. A figura 1 busca representar as interações antes e depois da mudança dos aminoácidos.

Figura 1: Alteração na estrutura química de aminoácidos do Sars-Cov-2
Gian Carlo Guadagnin/Sala Cinco
Fonte: Universidade de São Paulo [7]

    Outras variantes também já tiveram as interações entre a proteína e o receptor identificadas. Por exemplo, a variante Delta apresenta mudanças nos nos aminoácidos L452R e T478K. Já sabemos o que esses códigos significam: na L452R a primeira letra determina o aminoácido leucina (L), que será substituído na posição 452 pelo aminoácido arginina (R); no caso da T478K temos, de forma semelhante, a substituição de uma treonina (T), na posição 478 por uma lisina (K), o que faz com que o vírus consiga interagir melhor com as células. Uma das consequências dessa alteração é a maior transmissibilidade comparada com outras variantes.

Sem errar o passo

    Um fator que é apontado pela ocorrência de mutações é a alta taxa de transmissão do vírus, uma vez que, quanto mais vírus circula, maior a quantidade de replicações e maiores são as chances de alteração [5][6]. Deste modo, a dificuldade de controle dos casos de contaminação podem levar a novas adaptações do vírus tornando-o mais transmissível.

    Se ainda existem muitas pessoas que não estão imunizadas, o vírus tem maiores possibilidades de se reproduzir, aumentando as chances de ocorrerem alterações no material genético. Assim, com a taxa de vacinação ainda baixa, temos dois problemas. Primeiro, ainda que as vacinas tenham se mostrado eficientes frente às variantes [9], muitas pessoas não estão imunizadas e as variantes podem gerar casos mais graves da doença. Segundo, mesmo vacinados ainda podemos transmitir a doença. Logo, algumas medidas, como manter o distanciamento e o uso de máscaras, devem continuar por algum tempo.

    Ter consciência disso e manter essas medidas nos levará ao enfrentamento mais rápido desse cenário de pandemia diminuindo as possibilidades de novos surtos da doença.

Referências:

[1] The Virus: How do mutations cause viral evolution? YALE School of medicine. Disponível em:
<https://medicine.yale.edu/coved/modules/virus/evolution/>

[2] O que são mutações, linhagens e cepas. Fiocruz. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/o-que-sao-mutacoes-linhagens-cepas-e-variantes>

[3] FLEISCHMANN, W. R. Viral genetics. In S. Baron (Ed.), Medical microbiology (4 ed., cap. 43). Galveston, TX: University of Texas Medical Branch at Galveston. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK8439/#_A2323_>

[4] NISHIOKA, S. de A. Seleção de um anticorpo de domínio único e seu potencial para o tratamento e prevenção da COVID-19. Una SUS. Disponível em: <https://www.unasus.gov.br/especial/covid19/markdown/298>

[5] MOHAMMAD, A. et al. Higher binding affinity of furin for SARS-CoV-2 spike (S) protein D614G mutant could be associated with higher SARS-CoV-2 infectivity. International Journal of Infectious Diseases. v 103, February 2021, p. 611-616. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1201971220322372#>

[6] Variante Delta: as 5 mutações que tornam coronavírus mais contagioso e preocupante. BBC. Disponível em :
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-57760985#:~:text=Um%20estudo%20liderado%20por%20pesquisadores,pandemia%2C%20no%20fim%20de%202019.>

[7] Estudo indica um dos fatores que tornam nova variante do coronavírus mais contagiosa. USP. Disponível em:
<https://jornal.usp.br/ciencias/estudo-indica-um-dos-fatores-que-tornam-nova-variante-do-coronavirus-mais-contagiosa/>

[8] SANTOS, J. C.; PASSOS, G. A. The high infectivity of SARS-CoV-2 B.1.1.7 is associated with increased interaction force between Spike-ACE2 caused by the viral N501Y mutation. bioRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.12.29.424708 Disponível em:
<https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.12.29.424708v1>

[9] BERNAL, J. L. et al. Effectiveness of Covid-19 Vaccines against the B.1.617.2 (Delta) Variant. The New England Journal of Medicine. 2021. Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2108891>

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *