Memórias póstumas da água: os “segredos” da homeopatia

por | maio 23, 2022 | Textos | 0 Comentários

Memórias póstumas da água: os “segredos” da homeopatia

    Você provavelmente já ouviu falar em tratamentos alternativos utilizados no combate às diferentes doenças. A homeopatia, por exemplo, é aquela prática que busca o tratamento de diversos problemas sem a necessidade de um medicamento dito convencional, aquele produzido por indústrias e comercializado em farmácias. Talvez você se lembre daquelas bolinhas homeopáticas doces que até crianças tomam. Mas, afinal, você já se questionou por que isso funcionaria em nosso corpo? O que tem por trás desse tipo de tratamento? No material deste mês, abordaremos um dos principais argumentos da homeopatia: a memória da água.

Um início de conversa

    Para começarmos, é preciso, inicialmente, definir a homeopatia. Apesar de ser muitas vezes confundida com a fitoterapia ― que é uso de medicamentos de origem vegetal ―, ela consiste em uma abordagem diferente, com origem na similia similibus curantur, ou “lei dos semelhantes”. Essa ideia foi proposta pelo médico alemão Samuel Hahnemann por volta de 1779 e indica que sintomas poderiam ser curados ao se ingerir uma substância que gerasse esses mesmos sintomas. No entanto, ele enfatizava que, quanto mais diluída essa substância estivesse, maior seria seu efeito.

    Mas, como assim “semelhante”, “diluído”?

    Pode parecer estranho (e de fato é), mas a ideia é que para azia, ou queimação no estômago, por exemplo, se você ingerisse algo ácido você resolveria o problema. Talvez até seja por esse fato que uns e outros afirmam que ingerindo limão você deixa o seu estômago com pH básico (mas essa é uma discussão que fizemos em outros textos AQUI). A diferença é que você deve ingerir essas substâncias em soluções bem diluídas, ou seja, coloque o ácido em muita, muita, muita água e depois beba apenas um golinho dessa mistura. Mas isso funcionaria como tratamento, cura ou prevenção?

Convencionalmente falando

    Para explicar ou refutar os argumentos da homeopatia, precisamos entender os princípios básicos do funcionamento de um medicamento. A farmacologia é uma das áreas que estuda como os medicamentos interagem no nosso organismo e é com base nos princípios dela que vamos buscar tal explicação (1).

    De forma simplificada, o medicamento ao entrar no corpo precisa chegar ao seu local de atuação, o que depende de vários fatores como o pH dos ambientes pelo qual ele irá passar, se o medicamento é mais solúvel em gordura (lipofílico) ou em água (hidrofílico), das transformações que pode sofrer ao longo do caminho, para citar algumas. Depois de passar por tudo isso, se o medicamento chegar ao local ele vai interagir com receptores adequados ou entrar em células por difusão ativa ou passiva e então promover efeitos no organismo. Ou seja, a trajetória não é tão simples assim. É uma corrida com muitas barreiras e, além de tudo isso, uma parte do medicamento, ainda que não fique no meio do caminho, pode ser descartada em nossa urina e fezes.

    Por esta razão, há perdas consideráveis do medicamento antes que ele encontre o seu local de atuação. Não à toa, em geral, ingerimos uma carga alta da substância porque só uma parte efetivamente chega ao local ideal ou, como dizemos, ao sítio ativo. Chegando finalmente ao local desejado, o medicamento vai interagir, muitas vezes tendo parte de sua estrutura atraída por outras moléculas presentes no receptor. Um texto interessante sobre o assunto pode ser lido AQUI

Retomando…

    Partindo da ideia de que na homeopatia nós colocamos a substância que irá interagir com nosso organismo em uma solução muitíssimo diluída (pouca substância em muita água, por exemplo), podemos considerar que praticamente nenhuma molécula dessa substância chegará ao seu receptor, ao seu alvo. Qual então o argumento para seu funcionamento?

    Um dos argumentos utilizados pela comunidade homeopática para explicar a eficácia da excessiva diluição a que a substância seria submetida é a denominada “memória da água”. Esse tópico ganhou fama após um artigo ser publicado pela revista científica Nature defendendo estudos e experimentos realizados a partir dessa hipótese (2). E ela consiste na ideia de que a água, supostamente, se “lembraria” de substâncias com as quais teve contato e, através dessa “memória”, transferiria o princípio ativo da cura para o organismo. Por isso, mesmo com a diluição extrema pela qual a mistura passaria, ela ainda seria eficaz graças à memória da água.

    Calma lá. Que negócio é esse de memória da água? Isso tem alguma relação com a nossa memória? A resposta é NÃO!

    Quimicamente falando, quando você adiciona uma substância na água, as moléculas de água passam a interagir com as moléculas da substância e podem adquirir um arranjo específico. Ou seja, podem, por exemplo, momentaneamente formarem um hexágono de moléculas, como se estivessem dando as mãos umas às outras. Esses arranjos são possíveis pois as moléculas realizam o que chamamos de forças intermoleculares.

    Os adeptos da “memória da água” afirmam que, se formos adicionando, lentamente, mais e mais água na mistura inicial, as moléculas que chegam na mistura vão adquirindo esse mesmo formato, independente de existir o princípio ativo ou não. Conclusão, na solução homeopática, na verdade, quem cura é a água (no formato específico) e não o princípio ativo, como ocorre nos remédios convencionais.

Problemas de memória

    E como podem dois métodos tão diferentes e, aparentemente, sem nenhuma relação, surtirem o mesmo efeito de cura?

    Na verdade, as pesquisas realizadas utilizando a memória da água como agente de cura não foram tão bem sucedidas quanto clamam os “homeopatas”. Apesar de publicadas em uma revista de destaque, elas não passam credibilidade, pois, além de ocorrer uma omissão parcial de resultados ― para que, dessa forma, os únicos resultados “que valessem” fossem os de interesse dos “homeopatas” ―, o experimento não pôde ser reproduzido o que nos leva a concluir que o suposto sucesso desse experimento se deu ao acaso, não à eficácia de um método milagroso (3 e 4).

    Além disso, do ponto de vista das interações químicas entre as moléculas de água, à luz de todo o conhecimento que temos construído ao longo da história, tais interações (as chamadas ligações de hidrogênio) são constantemente feitas e desfeitas entre as moléculas. A agitação e a movimentação das moléculas quando a água está no estado líquido impossibilita que um arranjo ou uma forma fixa se mantenha, descartando, inclusive com base em dados experimentais, a tal memória da água.

Mas…

    “Mas, eu já consegui me curar com homeopatia! Como isso se explica”?

    Para sugerir uma hipótese para essa questão, antes é necessário abordar outro conceito: o efeito placebo.

    O efeito placebo consiste em um paciente ingerir uma substância (remédio ou não) e, com o pensamento de que será curado, se curar, de fato, devido à diminuição do estresse e ansiedade. Estudos mostraram que há uma melhora física mesmo quando o paciente sabe que está sendo tratado com placebo (5).

    A memória da água, apesar de não ter sido completamente refutada por estudos e pesquisas, também não tem estudos de qualidade que a sustentem. Então, é possível que a cura homeopática que as pessoas experimentem se dê pela crença de que irão se curar, como um placebo e, obviamente, não há relatos de curas homeopáticas de doenças mais graves.

Homeopatia na doença dos outros é refresco

    Ainda que não exista a comprovação, há diferentes grupos e pessoas que recomendam a homeopatia. Mas por quê? Esta talvez seja uma questão com múltiplas razões. A confusão entre homeopatia e fitoterapia, o desconhecimento dos princípios por trás do seu “funcionamento”, a falsa percepção de que medicamentos sintéticos fazem mal porque “tem química” e, se tem química, faz mal (quando na verdade tudo tem química, a água é uma substância química) e até mesmo posicionamentos políticos e religiosos podem ser razões para o uso de homeopáticos. De fato não sabemos.

    O que sabemos e tentamos mostrar aqui é que química e biologicamente falando, não há qualquer explicação razoável para um medicamento homeopático funcionar. Você pode se curar de uma gripe tomando um preparado homeopático não porque ele fez efeito mas porque seu próprio organismo deu conta de combater a doença, mas com certeza não terá os mesmos resultados para uma doença mais grave. Então, como diria o ditado popular, homeopatia na doença dos outros é refresco, ou algo assim.

Referências:

1. Fitoterapia. Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/fitoterapia/

2. The memory of water. Nature. Disponível em: https://www.nature.com/news/2004/041004/full/news041004-19.html

3. GRIMES, D. R. Proposed mechanisms for homeopathy are physically impossible.

4. Livro sobre “memória da água” não chega nem a estar errado. Questão de Ciência. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/resenha/2020/03/20/livro-sobre-memoria-da-agua-nao-chega-nem-estar-errado

5. GUEVARRA, D. A.; MOSER, J. S.; WAGER, T. D.; KROSS, E. Placebos without deception reduce self-report and neural measures of emotional distress. Nature. Disponível em:
https://www.nature.com/articles/s41467-020-17654-y?
fbclid=IwAR3j7N_1FZrISesy7j8J9yHwL5wtgridD7iXgJSoBAFH1VDYn4HRDaZyZFw

6. SILVEIRA, G. P. Introdução à Química Medicinal. BioLab. Disponível em: http://www.iq.ufrgs.br/biolab/images/courses/aula13-16.pdf

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