Homem fotografando um leão marinho. Foto: Divulgação / Arquivo Histórico da Bienal de Veneza – ASACdati

O documentário “Silêncio branco” é uma raridade do cinema brasileiro que poucos conhecem. Trata-se do primeiro filme feito por um brasileiro na Antártica. Este filme histórico exibido em São Paulo, em 1964, foi recuperado pelo Cine Museu de Buenos Aires e exibido 60 anos depois durante a II Mostra de Filmes Polares que ocorreu no último dia 12 no Instituto Principia.

“Houve um esforço enorme para trazer a melhor versão do filme para cá. Podemos assistir a uma cópia que foi restaurada com todo o cuidado pelo Instituto Antártico Argentino e pelo Cine Museu”, destacou João Paulo Barbosa, curador da 2ª edição da Mostra. A cópia remasterizada passou por tratamento de som e por uma limpeza detalhada do negativo. Segundo João, um dos poucos historiadores brasileiros da Antártica, a obra estava abandonada e mesmo depois de restaurada contém alguns defeitos técnicos com trechos sem áudio. Esses sinais, no entanto, não limitam o entendimento da mensagem do filme. 

Apesar de desconhecido para a maioria dos brasileiros, o documentário é um tesouro para os argentinos. Isso porque o diretor Geraldo Junqueira de Oliveira e o cinegrafista Angelo Sciarra documentaram, pela primeira vez, a atividade da Marinha Argentina na Antártica. Os cineastas fizeram a cobertura da expedição da Marinha à Antártica a bordo do navio quebra-gelo San Martin. Enfrentando temperaturas abaixo de 10 graus negativos, a equipe de filmagem documentou trabalhos científicos nas áreas de glaciologia, zoologia e meteorologia.

Pôneis e cavalos ajudaram nas primeiras explorações na Antártica e Ártico. Foto: Cena do filme

Gravado em 1959,  o filme apresenta toda a narração em espanhol, é lento e com poucas falas. Para interpretá-lo é preciso fazer uma reflexão maior, dando tempo e espaço para a percepção. Um filme que mostra aspectos do comportamento humano, importante para entender a história social e ambiental, com as atividades da ciência polar e da Marinha no período.  

Um documento filmográfico e histórico  

Segundo o curador da Mostra, é preciso ir além e compreender esta obra como um documento filmográfico histórico de mais de seis décadas, com um olhar sem julgamentos e com um respeito sobre o que foi. João Barbosa justifica essa opinião em relação ao aparato militar da Marinha Argentina, a forma despreparada como chegaram à Antártica. Ele destaca que era comum usarem explosivos, como a dinamite, para liberar a passagem para o navio – prática iniciada com os belgas em 1898 – quando não era possível serrar o gelo, em situações em que a camada era muito espessa. Essa prática seria considerada um absurdo do ponto de vista ambiental nos dias atuais, embora na época era praxe! 

Outro ponto levantado pelo curador é a onipresença de homens em expedições para a Antártica na época. A presença masculina não se restringia à Antártica, mas a qualquer expedição científica e militar, já que, historicamente, a ciência era uma atividade realizada majoritariamente por homens. Somente a partir dos anos 1970 a presença da mulher começa a crescer, quando a luta pela igualdade de gênero passou a incentivar o acesso delas à educação científica e outros espaços sociais.

Militar da Marinha Argentina. Foto: Cena do filme

A primeira mulher a pisar na Antártica para uma expedição científica foi a estadunidense Jackie Ronne, em 1947. Antes dela, no entanto, a aviadora Amelia Earhart já havia se tornado pioneira  ao atravessar sozinha o Oceano Atlântico e a tentar realizar um voo ao redor do mundo – feito não concluído, pois — infelizmente – a viagem foi encerrada depois de seu desaparecimento no Oceano Pacificio, em 1937. 

Mulheres à frente de grandes expedições e feitos “heróicos” ainda são casos raros, mas há sinais de mudanças. Um exemplo disso foi a convocação em 2023 de Sabrina Fernandes como a primeira mulher capitã-tenente a conduzir uma embarcação da Marinha do Brasil na Antártica. 

Mentalidade marítima e mudanças climáticas

Uma mensagem que fica evidente ao assistir “Silêncio branco” é a busca da Marinha Argentina em construir uma mentalidade marítima que estava em andamento no contexto pós Segunda Guerra. A Argentina junto com o Chile eram os únicos dois países da América do Sul a assinarem, em 1959,  o Tratado da Antártica, acordo de exploração do polo Sul com outros 10 países. Os países signatários devem desenvolver pesquisas científicas em diferentes áreas na Antártica, se comprometem a cooperar sobre o uso do continente com outras nações e se responsabilizam em preservá-lo para garantir a paz mundial. Apesar do Tratado não ter levado nenhuma bomba atômica ao continente, outras consequências silenciosas o afetaram. 

Considerado o maior deserto do mundo, o continente Antártico, apresenta pouca cobertura vegetal, já que está coberta de gelo quase o ano todo. Assim estava quando o filme foi gravado até o final da década de 50, quando os efeitos das mudanças climáticas começaram a afetar de forma mais acentuada todos os ambientes do planeta, incluindo a Antártica. Para se ter uma ideia, entre 1979 e 2022, a camada de gelo da Antártica perdeu em média 109 gigatoneladas de gelo por ano, contribuindo com um total de 13,3 milímetros para o aumento do nível do mar, segundo dados do Instituto Copernicus. A Ilha Deception – um dos dois únicos vulcões ativos na Antártica – tem sido massivamente colonizada por espécies, em decorrência do aumento crescente da temperatura no verão, como resultado das mudanças climáticas. 

Em relação ao florescimento de vida em solo Antártico descongelado, o permafrost, há o risco iminente da bioinvasão com espécies exóticas e invasoras, levado pelas expedições e pelo turismo, que tem se intensificado. De acordo com a Associação Internacional de Operadores Turísticos da Antártida (IAATO, na sigla em inglês), cerca de 105.331 pessoas visitaram a Antártica durante a temporada austral de 2022 e 2023, demonstrando que o turismo de massa está a todo o vapor.

Essas questões levantam dúvidas sobre como dosar o impacto do ser humano em um continente tão sensível? A Antártica na década de 50 e 60 era como um imenso e estarrecedor deserto branco silencioso, não por acaso o título do filme, afinal, era um local onde os ouvidos, acostumados a tantos sons e ruídos tecnológicos, estranham a ausência dos impactos humanos sonoros no ambiente.          

Ainda que muitos sons sejam ouvidos e percebidos na Antártica pela comunicação e interações entre seus habitantes nativos, é necessário refletir sobre que tipos de sons gostaríamos que permanecessem vivos nesse continente, de modo que os nossos próprios sons e ruídos pudessem coexistir. O silêncio presente na Antártica contribui indiretamente para que este ambiente regule o clima, controle as circulações atmosféricas e forneça alimento em abundância para diversas espécies, inclusive a nossa. 

Por todas essas contribuições, a península Antártica no extremo sul do planeta está mais perto do que imaginamos e este documentário, por meio da viagem histórica da expedição da Marinha Argentina, proporciona uma reflexão crítica sobre como a sociedade se relacionou até agora  com a Antártica, e como podemos reconstruir essa relação de modo a desenvolver uma mentalidade polar mais justa, tanto do ponto de vista do gênero, como dos sons que habitam no silêncio do continente gelado.

Ficha Técnica

Título: Silêncio Branco 

Categorias: Longa-metragem / Sonoro / Não ficção

Direção: Geraldo Junqueira de Oliveira 

Ano: 1964

Duração: 82 minutos

País: Brasil

Link para assistir: não disponível

O Blog Um Oceano tem parceria com a Rede Ressoa Oceano


Juliana Di Beo

sou bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atuo com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

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