
“O maior crime que se pode cometer com crianças pobres é ter baixas expectativas para com elas!”
Li esta frase em uma epígrafe há quase duas décadas, e na época, infelizmente não anotei sua autoria, mas a mensagem me impactou grandemente. Neste período trabalhava na maior favela do estado de São Paulo, Heliópolis, e enfrentava resistência quando dizia que deveríamos ensinar bem o voleibol.
Não estava defendendo que nos tornássemos um centro de formação de atletas voltados para o rendimento, mas que oferecêssemos continuidade no aprendizado e aperfeiçoamento conforme o desejo e desempenho de nossos alunos e alunas, todos moradores daquela comunidade.
Insistindo nesta proposta chegamos a participar de alguns campeonatos da região metropolitana e, mesmo sem resultados positivos com relação à colocação, a experiência revelou (expresso em meu estudo de mestrado) que esta busca contribui para a formação daqueles jovens em diversos aspectos, desde a possibilidade de sair da comunidade e conhecer outros espaços esportivos e equipes até o estímulo da autoestima, por meio da compreensão da própria evolução individual e coletiva, através de valores como o comprometimento, a cooperação, a cumplicidade, o esforço.
Willian Damon, estudioso norte-americano que investiga adolescentes, afirma que a busca por alcançar objetivos planejados, que chama de projetos de vida, tem função primordial para o jovem, visto que se desenvolve significado em sua trajetória. Por outro lado, milhares de adolescentes tem vivido sem este projeto vital e se apresentam desmotivados, perdidos, muitas vezes, depressivos.
Portanto, o engajamento de crianças e jovens em um projeto socioesportivo pode ter este significado, desde que se observe a busca por desenvolvimento constante. Alba Zaluar, pesquisadora brasileira, destacou que a oferta de esporte apenas para recreação em projetos sociais acarretou em desestimulação na participação. Riller Reverdito, pesquisando o projeto Segundo Tempo também faz o mesmo alerta, sugerindo que o aprofundamento no aprendizado das modalidades.
Esta postagem foi escrita, logicamente, motivada pela grandiosa conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio 2016 pela judoca Rafaela Silva. Ela, nascida e crescida na também conhecida comunidade da Cidade de Deus, teve a oportunidade de aprender o esporte em uma organização não-governamental (ONG) que oferece o ensino desde a iniciação, passando pelo aperfeiçoamento, até o alto-rendimento. Em meados de 2005 ouvi numa palestra do também judoca Flávio Canto, idealizador desta ONG (Instituto Reação), que haviam duas irmãs na instituição que nós ouviríamos falar em breve e que estavam trabalhando para oferecer continuidade para elas e outros destaques do projeto. (Ambas estavam na arena no dia da conquista olímpica, a mais velha, Raquel Silva, faz parte do grupo de treinamento da seleção brasileira, e sua irmã, Rafaela, no alto do pódio)
Nas entrevistas, Flávio Canto sempre deixa claro que o objetivo do Instituto é a formação humana, expressa claramente na missão da ONG. Portanto, a busca central não é a “construção” da campeã olímpica, mas provou que este “detalhe” pode ser consequência do trabalho sério e compromissado com as crianças e jovens das comunidades que atende.
A enorme conquista da Rafaela Silva de maneira alguma minimiza o feito diário dos mais de 1200 jovens (Número de jovens atendidos pela ONG), que apoiados pelo esporte, aprendem a ter uma vida digna, buscando superar suas dificuldades pelo próprio esforço, algo que o judô ensina desde os primeiros passos no dojô: cair e levantar. Mas pode ser também, em qualquer espaço esportivo deste enorme país de tantas crianças pobres, levantar e atacar, passar e arremessar, montar e pedalar, mergulhar e nadar… Desde que não tenhamos pequenas expectativas para com estas crianças e jovens, vitórias olímpicas ou não, é o que iremos comemorar juntos!
Bibliografia sobre o tema:
DAMON Willian. O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. Tradução Jacqueline Valpassos. São Paulo: Summus, 2009.
HIRAMA, Leopoldo Katsuki. Algo alem de tirar as crianças da rua: a Pedagogia do Esporte em projetos socioeducativos. 2008. 358p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Fisica, Campinas, SP. Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=000433101>. Acesso em: 9 ago. 2016.
REVERDITO, Riller Silva. PEDAGOGIA DO ESPORTE E MODELO BIOECOLÓGICO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO: indicadores para avaliação de impacto em programa socioesportivo. 2016. Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Fisica, Campinas, SP.
ZALUAR, Alba. Cidadãos não vão ao paraíso: juventude e política social. Campinas: ed. da Unicamp , 1994.
Foto de Marcelo Theobald / Extra retirada de http://extra.globo.com/esporte/rio-2016/rafaela-silva-sai-das-ruas-de-uma-das-favelas-mais-violentas-do-rio-para-podio-olimpico-19881235.html
Excelente texto!
Faz a gente pensar sobre o quanto somos aptos a oferecer uma educação de qualidade ao nosso aluno... E se não formos? Fazer o quê? Que corramos atrás do prejuízo... Afinal, é da necessidade do aluno que nasce um professor, e é do suor de um professor que nascem verdadeiros alunos críticos e participativos, vitoriosos e em constante evolução (não alienados).
Ótimo texto. É muito importante lembrar que as crianças respondem ao que esperamos dela, principalmente porque é cada vez mais comum ver pofessores pensando "vou ensinar de qualquer jeito, pois não estão interessados mesmo", quando deveriam pensar em estimular e cobrar cada vez mais.
Obrigado Mari pelo comentário! A questão que levanta é primordial, afinal as crianças não estão interessadas e por isso ensinamos de qualquer jeito ou porque ensinamos de qualquer jeito as crianças não se interessam? Acho que esta pergunta devemos nos fazer constantemente! Grande abraço!