A forma como o brasileiro lida com seus ídolos

No dia 17/10/16, a Faculdade de Educação Física da Unicamp recebeu Fabiana Murer, bi-campeã mundial no salto com vara, para uma palestra sobre sua trajetória. Ao final lhe fiz uma pergunta sobre algo que me inquieta há tempo: Qual sua impressão sobre a pressão que o brasileiro exerce sobre seus ídolos e se isto acontece em todo mundo?

Ela respondeu que esta relação existe em qualquer país, mas que tem a impressão que no Brasil ela é maior, o que incomoda os atletas.

A pressão que me refiro não é a expectativa pelo bom resultado, a torcida enérgica nos estádios e ginásios, o desejo de ver vencer um representante do Brasil, mas aquela que se manifesta com um fundo de maldade, de desvalorização, de insulto, como a que outra campeã mundial, a Rafaela Silva do judô sofreu, quando não conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas de Londres, em 2012, com insultos racistas. Outros tantos exemplos brasileiros existentes reforçam a necessidade de reflexão.

Em outra edição dos Jogos, Pequim 2008, duas imagens me chamaram bastante a atenção e que pode ilustrar como existe diferença na valoração dos ídolos em diferentes países. A primeira era norte-americana, faz alusão ao nadador Phelps, que naquela ocasião, como em outras também, ganhou tudo o que poderia. Na segunda imagem (final do texto), brasileira, faz-se uma cópia (costume que também merece críticas) mas na versão oposta, satirizando nossos atletas olímpicos.

Na palestra, Fabiana Murer respondeu ainda que esta pressão inadequada, a forma negativa de expressar as possíveis frustrações pela não conquista do ouro por seus ídolos, a desvalorização de todo trabalho, se dá pela ignorância do processo de preparação que todo atleta de alto-rendimento passa para estar entre os melhores.

E, se cabe a algum profissional contribuir para que tais conhecimentos alcancem a população como um todo, este é o professor de educação física, e como um deles, tentarei explicar um pouco do caminho árduo e disputado que os atletas satirizados na figura passaram.

A figura basicamente mostra a corrida dos espermatozoides para fecundar um óvulo. Na imagem americana é óbvio o destaque ao primeiro lugar. Mas na imagem brasileira, começamos pelo óvulo, que é apelidado por Ronaldo, o fenomenal jogador de futebol que se apresentava fora de forma, mas que ainda naquele ano (2008) é contratado pelo S.C. Corinthians Paulista e faz história com gols incríveis e conquistando títulos. No entanto, não me concentrarei no tema futebol, só ainda explicando que o Vasco era considerado, na época, o eterno vice-campeão, por isso a alusão ao segundo espermatozoide.

Rubinho Barrichelo, piloto de fórmula 1, sofreu sua carreira toda com chacotas a respeito de sua performance nas pistas (por isso aparece em último na ilustração). No entanto, além de ter sido vice-campeão do circuito em duas temporadas e vencer vários grandes-prêmios, foi o piloto que permaneceu por mais tempo na seleta elite do automobilismo mundial. Ou seja, por 18 anos, uma escuderia deixou em suas mãos carros que valem atualmente cerca de 5 milhões de reais. Tinha ou não credibilidade? Ainda, por todo este tempo, Rubens manteve preparo de atleta, visto que a exigência física e mental é enorme, tanto para treinos como para as corridas.

Com relação aos atletas que estão representados pelos espermatozoides que seguem na direção oposta do óvulo, satirizam aqueles que rapidamente são desclassificados e, sem resultados expressivos, retornam ao país de origem. No entanto, com raras exceções, nos Jogos estão a elite esportiva do planeta. São aqueles que superaram seus colegas em suas equipes, na sua cidade, estado e país e muitas vezes, de seu continente, para só então ganhar o direito de participar. Costumo fazer uma provocação: você, leitor, já participou de jogos escolares? Com ou sem resultados, viveu certo orgulho por representar seu escola? Se sim ou mesmo se não, imaginem o que é ser escolhido, pela competência, para representar um país de 200 milhões de habitantes?

Outro satirizado é Diego Hipólito, atleta da ginástica artística, que nestes Jogos era considerado o favorito no solo. Em entrevista ele afirmou que tentou realizar sua melhor série, aquela que o levou a ser cotado como candidato à medalha de ouro. No entanto, em uma aterrizagem, perdeu equilíbrio e acabou caindo sentado. A imagem penaliza um atleta excepcional que buscou fazer o máximo naquele evento. A mesma pessoa que, 8 anos após, conquista a medalha de prata no mesmo aparelho, com 30 anos de idade, fato raro para um atleta de uma modalidade que exige tanto do corpo com tantos impactos provenientes dos saltos e aterrizagens. Nos Jogos do Rio 2016 ele desabafa: “Já caí de bunda em Pequim, caí de cara em Londres, agora cai de pé para o pódio no Rio”

Finalmente, retornamos à Fabiana Murer, que na ilustração aparece “procurando a vara”. Pois bem, naqueles Jogos, o primeiro da atleta, já era respeitada no mundo, sendo possível uma boa classificação. No entanto, uma determinada vara que utilizaria em um dos seus primeiros saltos não estava na grade onde deveria ficar. Depois de solicitarem à organização a busca pelo implemento e a falta de agilidade para resolver o problema, Fabiana teve que ir direto para uma marca maior, sem passar pelo processo de ir se aclimatando com saltos menos exigentes. Isto, aliado à perda de concentração pelo ocorrido, prejudicou-a na prova, acabando por não conquistar boa colocação. Na época lembro-me de pessoas criticando-a, como se a solução fosse fácil, apenas solicitando o empréstimo de outra vara. No entanto, cada atleta treina com varas específicas, com variação de espessura de parede, tamanho, grau de flexibilidade e outras tantas características que o implemento apresenta adaptado especialmente para cada competidor.

O fato comum na imagem brasileira é o pouco caso de toda trajetória dos atletas envolvidos, ícones em suas modalidades. Para comparar grosseiramente, mas como forma de melhor ilustrar o que eles conquistaram, basta imaginar um concurso público, daquela vaga mais almejada e todas as centenas ou milhares de pessoas que se preparam para ele. Passar em primeiro para a única vaga deste certame é muito menos  disputado que se tornar um dos melhores atletas do mundo, visto que a preparação destes não é apenas cognitiva, como em geral, os concursos exigem, mas também emocional, física, motora, nutricional, relacional, entre tantos outros aspectos. Ainda é importante salientar que a forma atlética ideal precisa ser alcançada no momento exato da competição e ela não é conquistada de forma linear, como pode ser a assimilação de conteúdos para um concurso. A preparação física prevê uma verdadeira oscilação de cargas, intensidades, volumes e pausas determinadas cientificamente e que devem ser seguidas à risca. Qualquer interrupção, por lesão ou doença ou outro motivo, mesmo que por poucos dias, acarreta em uma regressão no estado físico equivalente ao adquirido por meses até, fenômeno conhecido no treinamento como princípio da reversibilidade. E como se não bastasse, ainda comparando a competição esportiva à um concurso, a concorrência no esporte dos nossos ídolos é mundial!

Portanto, merecem ou não nosso apoio, qualquer que seja o resultado?
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Sobre Leopoldo Hirama 9 Artigos
Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB), formado em Educação Física pela FEF-Unicamp, mestre em Ciências do Esporte e doutorando na mesma instituição. Atua na temática da Pedagogia do Esporte, mais especificamente nos esportes coletivos e lutas e as possibilidades do fenômeno esportivo na educação de crianças e adolescentes em comunidades periféricas. Atualmente pesquisa as características do ambiente de ensino do esporte para a formação da personalidade moral de jovens praticantes.

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