Death Note e a pixel-alma

O anime Death Note gira em torno da existência de “cadernos da morte”. Objetos que aparentam cadernos comuns, mas com o poder de matar aquele cujo nome for escrito no caderno enquanto quem escreve mentaliza seu rosto. Dessa forma, o dono de um “caderno da morte” precisa conhecer o nome e o rosto do seu alvo para eliminá-lo com apenas uma caneta.

Nesse ponto, o nome é uma informação bastante objetiva. Por exemplo, meu nome é “Marcos Henrique de Paula Dias da Silva”. Qualquer acréscimo, variação, ou eliminação de caractere, formará um nome diferente do meu. Contudo, a necessidade de conhecer o rosto do alvo dá espaço para várias discussões, que será o tema deste texto.

Uma questão bastante comum para quem assiste este anime é: suponha que existam dois gêmeos idênticos, ambos com o mesmo nome, se você escreve o nome de um deles, qual dos dois morreria?

A explicação para este impasse começa no episódio 9. Nele o protagonista Raito, se encontra presencialmente com o detetive e rival L. No caso, L se apresenta como homônimo (pessoa com o mesmo nome de outra) de um ator bastante famoso. O protagonista embora duvide que este seja de fato seu verdadeiro nome, teme testar a hipótese, pois se no momento da escrita mentalizar involuntariamente o ator famoso, pode acabar matando este ator, e isto indicaria para o detetive que o Raito “mordeu a isca”, fornecendo uma evidência dele ser o responsável pelas mortes.

Outro aspecto essencial para entender essa explicação, é presente desde o primeiro episódio. O fato de que a memória do alvo não precisa ser no presente. Ou seja, podemos nos lembrar do rosto do alvo como era ontem, anteontem, ou de um mês, um ano atrás… se alguma vez o vimos e venhamos a pensar no seu rosto na ocasião em que escrevemos seu nome no caderno, o efeito ocorrerá. Mas isto dá espaço para inúmeras mudanças na sua atual aparência, a pessoa pode ter cortado o cabelo, sofrido várias queimaduras que a desfiguraram, ou mesmo envelhecido, feito uma cirurgia plástica… as opções são intermináveis, mas o efeito se lembrar o rosto se mantêm.

Com isto, podemos concluir que de certa forma cada pessoa possua uma “alma”, e ao lembrarmos de seu rosto, na verdade estamos chamando esta “alma”, que é única. Desse modo apesar de gêmeos idênticos, eles são duas pessoas distintas, cada um com uma “alma” e uma vida associada. Mesmo que não consigamos diferenciá-los, a “alma” daquele que chamamos seria a afetada.

Contudo, algo presente desde o primeiro episódio do anime é motivo para a interessante discussão que preparamos neste texto. Esta tal de “alma” aparece em fotos?

De forma poética, poderíamos imaginar a foto analógica como um pedaço da realidade congelada (ou na verdade queimada na prata) e assim com um potencial de preservar estes elementos que permitem “chamarmos a alma”, ou de forma mais prática, identificar o alvo que escreveremos o nome no “caderno da morte”. Mas o que dizer de uma foto digital?

No episódio 1, Raito estava duvidando do caderno, e vendo o noticiário na televisão, se depara a um criminoso que mantinha vários reféns. Incrédulo sobre o poder do caderno, decide “testá-lo” de forma leviana após passar na televisão o rosto do criminoso identificado com seu nome completo. Raito escreve e logo depois o homem morre. Mas então surge a questão, o que Raito viu que lhe serviu de memória sobre o rosto do seu alvo?

Situação

Resultado

Consequência

Tela da TV

Nítida o suficiente para identificar a pessoa

Efeito do caderno da morte funciona

Metade da qualidade

Nítida o suficiente para identificar a pessoa

Efeito do caderno da morte funciona

¼ da qualidade

Um pouco embaçada, mas suficiente para identificar a pessoa

Efeito do caderno da morte funciona

1/8 da qualidade

Bastante embaçada

?

1/1000 da qualidade

1 pixel

?

Nesse ponto precisamos analisar duas hipóteses:

Hipótese 1) Não importa o quão ruim seja a qualidade da imagem digital, a “alma” está sempre ligada a imagem original e o “caderno da morte” funcionaria mesmo assim.

Hipótese 2) Uma imagem digital com baixa qualidade não permite ativar o efeito do “caderno da morte”.

Análise da Hipótese 1

Supondo a Hipótese 1 como verdade, podemos chegar a um absurdo de termos a imagem inteira reduzida a qualidade de um único pixel e ainda assim ser possível mentalizando aquele pixel, matar o alvo. Pois supostamente, sua alma estaria associada a este pixel, que deriva dos pixels originais da imagem.

Porém o que é um pixel? Pixel é a menor unidade de um display digital. No caso dos monitores coloridos comuns, podemos dizer que cada pixel corresponde a uma combinação de três cores como por exemplo o sistema RGB (Red-vermelho, Green-verde, Blue-azul). Que atribui a cada cor uma intensidade entre 0 e 255, ou seja, 256 opções. Dessa forma, cada pixel é um quadrado pintado com uma única cor entre até 256³ cores diferentes (este exemplo não generaliza todos os pixels, apenas aqueles no sistema RGB 8-bits).

Nesta hipótese, poderíamos descartar a própria necessidade de quem escreve o nome no caderno de ter em mente um rosto completo. Bastaria por exemplo já ter visto a ponta da orelha do alvo, que seria o bastante para o efeito do “caderno da morte” funcionar. Ou em um caso mais extremo, se esta hipótese fosse verdadeira, a memória sobre um único quadradinho de uma tela inteira, seria o bastante para escrever o nome do alvo e associar o nome à pessoa.

Análise da Hipótese 2

Supondo a Hipótese 2 como verdade, chegamos que existe uma quantidade de pixels suficiente para formar a imagem de uma alma. Dessa forma, podemos calcular a partir do tamanho de uma imagem, quantos pixels a compõe. Isso permite reduzir a quantidade de pixels ao isolarmos apenas o rosto do nosso alvo. Pensando em fotos como aparecem nos chats das redes sociais, vamos dizer que não sejam maiores do que 100×100 pixels.

eu

Na foto acima, deveria ser perfeitamente claro me identificar, apesar de conter no seu formato digital apenas 10.000 pixels. Considerando as possibilidades de cores, temos que existe a chance de uma em 167.772.160.000 de formar esta foto jogando valores aleatórios para as cores de cada pixel. Isto é um tanto perturbador por vários motivos que listarei a seguir:

1) Um gerador aleatório de pixels em quadros 100×100, poderia produzir esta mesma imagem (digo mesma, pois não haveria diferença sequer em um pixel). Embora improvável, ao repetir o gerador por um número suficientemente grande de vezes, como 150 trilhões, a chance de chegar na imagem exata já não seria tão baixa. Mas isto significa que sem nunca ter tirado esta foto, ela atenderia exatamente os mesmos requisitos de uma foto que serviria de “chamado para minha alma”.

2) Posso tirar muitas fotos minhas em tamanho 100×100 e nenhuma delas ser idêntica a essa, apesar de todas representarem minha pessoa. Isto significa que as fotos que me representam em quadros 100×100 não são restritas apenas a esta. Ou seja, supondo que existam milhares de fotos minhas em tamanho 100×100, a chance de formar uma destas imagens necessariamente será no máximo:

(total-de-fotos) dividido por 167.772.160.000

3) Posso remover uma quantidade de pixels e ainda assim me representar. Ou seja, existe uma quantidade mínima de pixels que deve ser correspondente a minha pessoa para deduzir quem eu sou na hora de escrever no caderno.

4) Princípio dos pixels de pombos. Existe um resultado curioso na matemática e ao mesmo tempo de conceituação bastante simples. Diz que se temos N casas e N+1 pombos, pelo menos em uma casa terá mais do que um pombo.

De forma análoga, existem quase 7 bilhões de pessoas no mundo. Se cada uma tem 24.000 fotos (todas diferentes) em um tamanho 100×100, com isto, chegamos que existirão 168.000.000.000.000 de fotos (pombos) no tamanho 100×100.

Mas o total de possibilidades para fotos é de 167.772.160.000 (casas para os pombos). Ou seja, teremos pelo menos 227.840 fotos exatamente iguais (casas ocupadas por mais do que um pombo).

Como cada pessoa tem 24.000 fotos suas, teremos pelo menos 10 pessoas cujas fotos sejam idênticas em cada pixel a de outra pessoa. Mas isto significa que o “chamado da alma” dela deverá ser o mesmo, dessa forma, se duas delas com a mesma foto tiverem o mesmo nome, ao escrever seu nome e pensar nesta foto, ambas deveriam morrer.

A situação apenas complica quando acrescentamos que no anime existem pessoas com “olhos de shinigami”, uma habilidade que o detentor do “caderno da morte” pode comprar do shinigami (anjo da morte) dono original do “caderno da morte” (paga-se metade da vida restante por ela). Os olhos de shinigami permitem a pessoa enxergar o nome e a expectativa de vida de qualquer pessoa (exceto daqueles que possuem um “caderno da morte”). No caso de uma imagem formada por pixels, duas pessoas representadas pelos mesmos pixels mas com nomes diferentes, levariam a uma incoerência quando o sujeito com “olhos de shinigami” olhar esta foto. Dado que ambos os nomes e expectativas de vida deveriam aparecer ao mesmo tempo, pois a imagem representaria a ambos. No caso, se também tivessem o mesmo nome, seria impossível matar um sem matar o outro.

Isto leva a um raciocínio contraditório, invalidando a hipótese 2.

Desse modo, tanto a hipótese 1 é estranha (pois bastaria um pixel para equivaler a imagem do rosto da pessoa) quanto a hipótese 2 falha para o funcionamento da foto como um “chamado para alma” em Death Note. Com isto, ou existe uma terceira hipótese que explica a situação, ou a lógica por trás da mentalização do rosto é realmente falha e só funcionava naquele universo pela vontade do autor.

6 thoughts on “Death Note e a pixel-alma

  • 1 de abril de 2020 em 15:20
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    Discussão bastante interessante, nunca parei pra pensar sobre isso, adorei.

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    • 1 de abril de 2020 em 18:57
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      Obrigado Samuel 🙂

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  • 8 de julho de 2020 em 18:09
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    Discussão legal!
    Mas será que não entra também o fator de como o nosso cérebro processa a imagem e recupera (ou seja, o poder do caderno conecta com a sua capacidade de memória além do processamento visual)? Se nós temos que pensar na imagem da pessoa para fazer efeito então depende da nossa percepção também. Se existirem duas pessoas idênticas com o mesmo nome, mas de fato conhecermos só uma delas, na hora de mentalizar estaríamos evocando APENAS a memória de uma dessas pessoas (a outra ficaria sã e salva.. eu acho?)

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    • 8 de julho de 2020 em 22:16
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      Ponto de vista interessante, no caso em que tivemos qualquer interação com uma ou até mesmo com as duas (como no filme Grande Truque), ainda que não saibamos diferenciá-las, é possível que o caderno esteja associado a memória.

      Para os casos em que você conheceu a pessoa, seja em filmes/novelas como no episódio 9 em que L se apresenta como homônimo de um ator famoso, a ideia de memória pode fazer bem sentido.

      Mas nos casos em que Raito ou Misa simplesmente abria a internet e começava a escrever os nomes de criminosos baseados apenas em uma foto. Que parte da memória/percepção seria associada àquela pessoa?

      Pensando na questão de fotos idênticas, suponha que você tenha uma irmã gêmea idêntica com o mesmo nome e consigamos com muito esforço tirar uma foto sua e dela na qual todos os pixels sejam exatamente idênticos. Na hora que a pessoa ver a foto e escrever o nome, quem será morto? Se a hipótese da alma for verdadeira, qualquer pixel da foto original serviria para mentalizar sua imagem, dado que estaria associada a mais do que pixels, e sim a uma alma. Porém na hipótese 2, chegamos na dualidade de pixels, assim uma mesma foto mostra pessoas diferentes, alguém com olhos de shinigami por exemplo, veria duas datas de morte diferentes…

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    • 14 de março de 2022 em 08:43
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      Falta só convencer um professor de Álgebra Linear Computacional a usar este post em aula 🙂

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