O equívoco do dilema do trem em Batman

O trolley problem é conhecido como o dilema do trem, e já discutimos isto no post Porque a matemática não ajuda nos dilemas morais, nem mesmo no “Dilema Ethan Hunt”. Assim, assumirei que você já conhece este dilema, para trazer uma variação interessante (não muito nova), mas que é popularmente conhecida como “Batman trolley problem”. Você pode estar pensando, certo, no outro post eu estou falando sobre a matemática não ajudar nestes dilemas, e agora, do que falarei neste que se relaciona com a matemática? No caso, a discussão de hoje centra-se que o dilema como é apresentado está mau-definido, e isto reduz muito sua complexidade e induz a uma conclusão equivocada a seu respeito.

Este dilema costuma ser apresentado com o personagem Coringa em uma das rotas do trem e cinco pessoas inocentes na outra, e colocando a seguinte narrativa. Quando o Batman escolhe não eliminar o Coringa, ele passa a aceitar que outras pessoas inocentes sejam vítimas do Coringa. Até ai, não á nada de errado com a narrativa, ela condiz inclusive com o dilema que o Cavaleiro das Trevas enfrenta por exemplo na animação de 2010, Batman Contra o Capuz Vermelho. Mas quando este dilema é apresentado, temos uma imagem similar à essa.

O equívoco aqui está ao colocar que Batman deve escolher entre cinco vidas e uma vida (sendo esta uma vida, a do Coringa). Isto é falso, pois em várias animações e filmes, vemos que sempre quando há várias pessoas numa situação que precisem ser salvas de alguma catástrofe, explosão ou qualquer outro desastre de alta letalidade, o Batman coloca a vida das outras pessoas à frente da vida do Coringa. Nessas situações, o Coringa acaba sobrevivendo por força do roteiro (sim, o roteiro faz dele um personagem difícil de morrer).

Vamos entender cada um dos papéis apresentados no dilema:

  • Trem: poder de tirar a vida de outra pessoa
  • Alavanca: direito de escolha

O equívoco na forma como o dilema é apresentado, ocorre ao colocar que existe apenas a escolha do Batman, ou seja, que o Coringa não tem também uma escolha, ou seja, que ao decidir poupá-lo, automaticamente escolhemos sacrificar as outras pessoas. Isto é falso, pois como já mencionamos, Batman nas situações em que várias pessoas (incluindo o Coringa) estão em um cenário de catástrofe (como uma explosão, um desmoronamento…) o Batman prioriza salvar as outras pessoas (e se der tempo, o Coringa). Ou seja, no dilema do trem, a decisão dele seria salvar as outras pessoas (e por força do roteiro, o Coringa viria a se salvar magicamente… ).

Assim, o verdadeiro dilema moral de Batman está em eliminar ou não o Coringa, sabendo que este tem também seu próprio dilema moral de fazer ou não fazer novas vítimas. Pensando no trem, se o Batman escolhe eliminar o Coringa, então isto sobreporia o Coringa de escolher entre fazer ou não novas vítimas, e consequentemente garantiria que estas pessoas não seriam suas vítimas. Porém, o dilema centra-se totalmente no ponto de que o Coringa tem uma escolha, e antes que ela seja feita nenhuma dessas pessoas foi sua vítima.

Esta situação ocorre em vários cenários, como por exemplo em Doctor Who, Arco 078 – Genesis of the Daleks, quando o Doutor precisa decidir se deve ou não, eliminar todos os Daleks em sua origem. Sua assistente o confronta, dizendo que se eles fossem uma bactéria ou um vírus, ele teria eliminado sem dúvidas, e ele concorda, pois entende que a natureza de bactérias e vírus traz a destruição dos outros seres vivos sensientes, mas com os Daleks isto era diferente, por serem seres inteligentes, a destruição de outros seres sensientes era uma escolha, e não uma ação definida.

Em Doctor Who, era dado ao Doutor o “direito” de fazer aquilo por parte dos Time Lords, mas apesar de seu grande poder, o Doutor como um deles, rejeita que isto seja uma autoridade legitima. Em Batman vemos a mesma perspectiva por vários dos personagens que colocam o Coringa como um mal a ser extirpado da Terra, mas o próprio protagonista rejeita esta decisão pois ele entende que isto o colocaria numa espécie de responsabilidade sobre eliminar as pessoas que virão a causar mal às outras antes que isto ocorra.

Na Biblia temos um cenário parecido, onde Deus dá a seguinte ordem a Saul: Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. (1 Samuel , 15, 3)

Nestes três contextos apresentados temos a mesma situação, eliminar o outro antes que este venha a decidir fazer mal aos outros. Pode parecer uma decisão natural, principalmente quando delegamos essa decisão desumana e cruel a uma pseudo-autoridade que será a responsável por isso (bem-estar da sociedade, Time Lords, Deus) dado que “agimos pelo bem-comum”. Historicamente este “bem-comum” já justificou inúmeras atrocidades no pretexto de sobrepujar aquilo que é diferente.


    Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

    SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. O equívoco do dilema do trem em Batman. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da UnicampVolume 13. Ed. 1. 1º semestre de 2025. Campinas, 24 de janeiro 2025. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/5985/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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