Ciência Aberta: A Torre

Nos últimos anos tem se falado muito em open science. Open science é um conceito no qual se tem como princípio que os acesso à pesquisa científica deve ser livre e aberto. No entanto, muitos subentendem que “livre” e “aberto” são sinônimos de “gratuito”. Neste contexto, aparecem uma multidão de periódicos científicos oferecerem acesso gratuito para as publicações desde que os autores tenham pagado uma taxa. Além disso, temos um punhado de revistas sérias que só oferecem o open access. Na esteira dessas revistas sérias temos uma outra grande multidão de periódicos fajutos relacionados com práticas predatórias.

Eu vejo a ciência aberta de uma forma muito mais ampla. Ciência aberta é um processo de acesso que abrange desde o planejamento da investigação científica até à divulgação dos resultados. Afinal, de que adianta publicar um artigo científico se a grande maioria da população não consegue entende-lo? Deve haver um esforço do cientista em tornar os complexos conceitos em informação inteligível para as grandes massas. O cientista está muito acostumado à escrever bem para seus pares, mas muito poucos de nós realizam o esforço de tornar os estudos acessíveis de maneira abrangente. Neste processo tradicional de publicação, deixamos inclusive de pensar em pesquisadores de outras áreas, o que constituí uma tremenda barreira para a interdisciplinaridade.

Por causa dessa distância entre a academia e a sociedade, vivemos um momento difícil de aceitação da ciência. A maioria da população está alheia aos avanços realizados e seus benefícios. Este distanciamento faz com que nos deparemos com tolices como movimentos antivacinas e como o terraplanismo retornarem (e sejam todos bem vindos à idade média). Apesar da situação absurda em que encontramos com a escalada do obscurantismo, esta é a perfeita oportunidade para a academia fazer um pouco de autocrítica. Será que estamos desempenhando nossos papeis na sociedade de maneira adequada?

A Torre de Marfim

Hunt of the unicorn annunciation. Extraído de um livro das horas holandês (circa 1500)

O termo torre de marfim se aplica usualmente para um lugar desvinculado das questões mundanas e cotidianas, no qual os sábios podem se dedicar aos seus propósitos. No livro bíblico dos cânticos, a expressão torre de marfim é utilizada como uma metáfora para pureza (cânticos 7:4). Em um livro das horas medieval, a torre de marfim aparece como significando a virgem Maria, isolada em seus estudos e cuidando de um unicórnio, enquanto um caçador procura o animal mitológico. A “caçada ao unicórnio do anunciação” (do inglês “Hunt of the unicorn annunciation”) conota uma inalcançabilidade nessa pureza. O termo evoluiu e o poeta Charles Augustin Sainte-Beuve o utilizou como comparação entre uma personalidade com uma atitude mais romântica com relação à outra com uma postura pragmática. Por analogia, a torre de marfim adotada no século XX retrata uma forma pejorativa para descrever o isolamento intelectual de muitos acadêmicos.

Isaac Asimov. Gravura por Rowena Morrill

Desta maneira, o leigo muitas vezes adota – mesmo que inconscientemente – a torre de marfim como símbolo para a academia e acaba desqualificando tudo o que vem da dela. Neste sentido, Isaac Asimov, um grande escritor e divulgador científico escreveu um artigo muito interessante em 1980, chamado “Um culto de ignorância”. A universalidade e atemporalidade do texto assustam, principalmente por retratar de maneira tão crua como a ignorância permeia nossa sociedade. Asimov queria comentar uma condição daquela época e que ocorria nos Estados Unidos. No entanto, acabou denunciando uma problemática séria que ainda é atual e está difundida no mundo inteiro. Também aborto um dos problemas da falta de letramento científico na sociedade nesta postagem sobre teorias da conspiração.

Mas ainda chamo a atenção para a importância da autocrítica: se o leigo assim o é, o que o cientista pode fazer para aproximar a população desse conhecimento? Sem dúvida alguma a educação científica é um tema complexo, pois a própria massa carece de um mínimo de educação, algo que nosso sistema parece incapaz de prover adequadamente. Além disso estas massas teriam que ser educadas a ponto de desenvolverem senso crítico, o que requer também uma boa dose de abstração, além do conhecimento formal. Todavia, creio que não podemos simplesmente ficar sentados aguardando vontade política para consertar uma situação que se desenrola mundialmente a séculos. Temos que tomar parte do problema em nossas mãos e, ao menos tornar o conhecimento gerado mais claro com relação a sua importância e aplicabilidade, mesmo que seja dentro de um domínio imaginário. No mais, indivíduos são capazes de lidar com conceitos abstratos; mas as coletividades não tem esta habilidade. Ao lidar com o coletivo, precisamos ser claros e objetivos, mesmo que isso acabe comprometendo parte da informação que se deseja transmitir.

O anti-intelectualismo tem sido uma ameaça constante se insinuando na nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa de que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento – Isaac Asimov

Finalmente, nos valendo da figura metafórica da torre de marfim, conseguimos situar a academia no seu difícil contexto atual de anti-intelectualismo e compreender o porquê a sociedade (e a classe política) nos acusa de elitismo. E, nessa acusação, muito do que produzimos – senão tudo – acaba sendo menosprezado, e isso tem consequências gravíssimas para a própria sociedade. Porém, o que podemos fazer? Como o conceito de ciência aberta, quando bem compreendido, pode ajudar nessa aproximação?

XVI

Arcano maior “A Torre”

O número 16 marca o arcano maior “A Torre”, no tarot. Pessoalmente, eu gosto muito de tarot. É um exercício de semiótica que revela muito do ser humano, além de ser uma fonte infindável de metáforas úteis. A torre é uma carta que tem um significado difícil para o consultante: destruição, conflito e caos, vindos de uma ação externa. A torre é o signo máximo da arrogância humana, sendo baseada na história da torre de Babel (gênesis 11:1-9). O nome da carta em francês é “La Maison Dieu”, algo como “A Casa-Deus”. São dois indivíduos expulsos de uma torre. A torre sempre é mostrada sendo destroçada por fogo ou relâmpagos. Sempre há chuva (ou fogo, tijolos, enxofre) sendo espalhados nas redondezas. Em última instância, “A Torre” mostra as consequências funestas da arrogância humana, pelo seu próprio significado extrínseco. Ao cruzarmos os significados da carta “A Torre” com a nossa torre de marfim, as semelhanças com a academia ficam muito evidentes.

Do ponto de vista filosófico, a arrogância não cabe ao sábio. A arrogância é “privilégio” dos tolos. O sábio conhece o limite de seu conhecimento, conhece sua ignorância; somente o tolo julga conhecer mais do que realmente conhece. Ao transgredir os limites do conhecimento, o tolo sofre as consequências. Embora seja bem comum a postura arrogante nos círculos acadêmicos, a universidade em si não se posiciona dessa forma. A universidade é um lugar de aprendizagem, incompatível com qualquer sentimento de superioridade.

A destruição da torre de marfim é fundamental. A vulgarização do conhecimento, o letramento científico e a inclusão intelectual precisam acontecer, ou continuaremos sendo alvos dos ataques de uma turba ignorante. Enquanto o culto ao intelecto, ao conhecimento e à ciência não estiverem dentre os valores dominantes da população, essa mesma população vai continuar colocando seus pares na política e nos cargos de decisão, mantendo a todos distantes da verdadeira evolução da sociedade.

Finalmente, subimos em uma torre de marfim cujo endereço é o número 16. Chegou a hora de descer, de jogar luz no obscurantismo. O contexto atual não mais nos convida a isso. O contexto atual nos obriga a isto, sob pena do desmonte da academia e de lançar a sociedade a escuridão até estarmos atrasados o suficiente para nos revoltarmos. Como a ciência aberta, em seu sentido lato, pode ajudar ao cientista nesse processo? Como vulgarizar aquilo que fazemos em nossos laboratórios? 

Conclusão

Esta é uma introdução de uma série de postagens sobre ciência aberta e como podemos fazer para adequar o conhecimento da academia aos anseios de uma sociedade cada vez mais dependente da ciência. No entanto, esta sociedade está cada vez mais indiferente aos seus avanços. Nas próximas postagens iremos abordar como estamos fazendo em nosso grupo de pesquisa para tentar utilizar o conceito de ciência aberta em nossos trabalhos. Serão publicações para troca de experiências, ver dentre o que estamos fazendo o que dá certo e o que não funciona. E como podemos fazer funcionar. Desta maneira, planejamos as seguintes publicações:

  • O que é open science?
  • Planejando a ciência aberta
  • Open science na publicação científica
  • Abrindo os dados da pesquisa
  • Repositórios de pré-prints e de dados
  • Utilizando as novas mídias ao nosso favor
  • Relacionamento com a imprensa

Espero que este texto e os próximos possam ser de ajuda ao leitor. Também espero sinceramente fomentar uma discussão que possa nos ajudar e contribuir com o que estamos fazendo agora no nosso grupo de pesquisa. Será um grande prazer! Até a próxima!!!

Gustavo Mockaitis

Professor de biotecnologia, microbiologia e metodologia científica na Faculdade de Engenharia Agrícola da UNICAMP. Apaixonado por ciência e tecnologia, tenho interesse em muitas áreas, desde psicologia até astronomia. Atualmente trabalho com digestão anaeróbia para produção de biogás e outros produtos com valor agregado.

2 thoughts on “Ciência Aberta: A Torre

  • 8 de julho de 2021 em 17:02
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    Gostei da abordagem, principalmente por trazer o tarot para a reflexão, o que pode fazer muita gente arrepiar os cabelos na academia. Eu acharia interessante ler nesta série sobre questões como descolonização de saberes e conhecimentos tradicionais.

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    • 17 de agosto de 2021 em 14:55
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      Olá Paulo! Desculpe a demora em responder... as coisas nessa pandemia estão mais difíceis. Mas, este negócio de arrepiar o cabelo do pessoal na academia por causa de assuntos "não científicos" é um problema sério. Alguns cientistas estão transformando alguns assuntos em tabus, e isso é muito ruim para a academia. É uma onda de pseudo-ceticismo que eu considero muito danosa para a ciência. É uma tentativa de extirpar a ciência de metafísica e semiologia. Vamos considerar escrevermos sobre os tópicos que sugeriu em um artigo futuro sim!

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