Energia para cozinhar: qual será o futuro do GLP?
Pouca atenção se dá, aqui no Brasil, sobre o uso de energia para cocção, um dos usos finais mais básicos da energia. Não é um dos assuntos preferidos tanto na academia como nos grandes debates sobre energia e mudanças climáticas (pelo menos até agora). Predominam temas e preocupações com os custos e a segurança de fornecimento de eletricidade, os preços do etanol, diesel e gasolina. Com relação aos usos de energia temos a questao da mobilidade, ventilação, refrigeração e ar condicionado, entretenimento). Quase não se fala, quase nada se estuda sobre alternativas energéticas para cocção que sejam baseadas em fontes renováveis. O GLP (gás liquefeito de petróleo) e o gás natural tem cumprido essa missão até agora. E parece assunto resolvido.
Quais serão os combustíveis domésticos dos domicílios brasileiros nos próximos 50 anos? Qual será o futuro das tecnologias para cocção doméstica?
Antes de falar do futuro vamos falar um pouco da história da introdução do GLP e do papel dos combustíveis gasosos como principal combustível para cocção no Brasil. Nem sempre foi assim. Depois abordaremos a situação de acesso à combustíveis modernos no mundo e, finalmente falaremos sobre possíveis cenários futuro para uso de energéticos para cocção no Brasil.
Em 1960 apenas 18% dos domicílios brasileiros usavam GLP (nas áreas urbanas esse índice era de 35% e 0,3% na zona rural!). Em 2010 já atingíamos 98% dos domicílios com acesso ao GLP, sendo 100% dos domicílios urbanos e 94% dos rurais. Demoramos 40 anos para universalizar esse combustível, substituindo a lenha e carvão vegetal, que eram praticamente oriundos de desmatamento, por um combustível mais limpo em termos de emissões de particulados, mais eficiente, mas ainda não renovável. É uma história de sucesso sob diversos pontos de vista, que teve em paralelo o aumento de renda da população e a crescente urbanização. Na década de sessenta houve a decisão de se eleger o GLP como combustível principal para cocção e políticas públicas foram concebidas para realizar essa transformação de mercado dominado pela lenha.
Destacamos três componentes dessa política:
- Criação de uma infraestrutura para produção e distribuição do novo combustível
- Criação de um mercado varejista com a forte participação da iniciativa privada desde o princípio
- Garantia de preços acessíveis ao consumidor final (introdução de subsídios)
O Estado assumiu através da Petrobras a produção (e importação) do GLP, controle de preços finais, margem de lucro para a venda no varejo e subsídios aos consumidores finais. A concepção original desse plano de transformar o mercado de combustíveis para cocção de um país que se urbanizava, incluia a participação do setor privado. Foi importante criar modelos de negócios para tornar esse esforço atrativo para esses agentes privados. Inicialmente foram dadas franquias regionais, depois se introduziram quotas de vendas e, na sequência uma gradual abertura a novos concorrentes. Com maior participação de outras companhias de distribuição no mercado varejista, padrões de qualidade e de segurança foram sendo introduzidos.
Desse modo, um mercado foi sendo criado, mas ainda com forte subsídios a todos os consumidores. A regulação de preços, a cargo do governo, estabelecia uma política de subsídios cruzados através de recursos coletados de taxas sobre outros combustíveis. Todos os consumidores do território nacional compravam seu GLP ao mesmo preço.
Isso mudou em maio de 2001 quando os preços finais foram liberados como parte de uma política para de-regular o setor energético. Os subsídios coletivos foram eliminados e foram substituídos por um subsídio (na época o chamado Vale Gás) dirigido especificamente à população de baixa renda . No entanto, muitas famílias ficaram de fora desse esquema e, na verdade, sem condições de comprar o GLP no mercado. Foi um momento quando se observou um retorno ao uso da lenha em muitas regiões do país. Isso perdurou por cerca de 3-4 anos até que melhorias no cadastramento das famílias na rede de proteção social (Bolsa Família) possibilitou o acesso ao GLP.
Quando se discute a criação de novos mercados para tecnologias de energia (imaginamos que o mesmo se aplique a demais tecnologias) é tão importante saber utilizar políticas de subsídios como é importante saber quando e como retirá-los.
Quando olhamos a situação mundial, temos que cerca de 2.8 bilhões de pessoas ainda usam lenha ou carvão (vegetal e mineral) para cozinhar, a maioria delas na Ásia e África, mas também em partes da América Latina. O uso de combustíveis sólidos para cocção é responsável por cerca de 3,9 milhões de mortes prematuras anualmente em todo o mundo, a maioria sendo mulheres, crianças e idosos. É paradoxal essa situação ainda hoje. Opções mais limpas, com menor emissão de partículas e gases tóxicos já são disponíveis e conhecidos há décadas mas ainda não possuem acesso universal. Agências internacionais, organizações de fomento ao desenvolvimento h’a anos tem colocado milhões de dólares em recursos para disseminar fogões com queima mais eficientes e menos poluentes, melhores combustíveis. Os resultados têm sido variados, alguns com maior sucesso que outros, mas de uma maneira geral os resultados têm sido modestos e ainda não temos o problema resolvido.
O esforço mais recente e talvez mais promissor tem sido a iniciativa Sustainable Energy for All (S4All) das Nações Unidas que procura convergir os esforços climáticos (aumentando a participação de energias renováveis e eficiência energética) e ao mesmo tempo garantir o acesso universal a combustíveis limpos e eletricidade até 2030. Parece que finalmente existe um consenso de que resolver problemas de desenvolvimento socio-econômico e pobreza não estão dissociados de metas de sustentabilidade ambiental e controle de emissões de gases de efeito estufa.
Vemos duas opções interessantes para serem consideradas: o etanol e a eletricidade (de origem renovável).
A organização Project Gaia realizou diversos projetos com a distirbuição de fogões a etanol líquido em diversos países, inclusive no Brasil. O Banco Mundial também realizou projetos promovendo o etanol como combustível doméstico em substituição à lenha. Eu mesmo tenho na minha sala alguns fogões desse tipo (veja as figuras ao lado). Ainda, o etanol é um dos combustíveis considerados pelo S4All (juntamente com outras opções) para assegurar o acesso a combustíveis limpos e renováveis para todos. É aqui que mais pesquisa é necessária para se adaptar esse combustível aos padrões de utilização aceitáveis para o mercado brasileiro. Deveríamos considerar mais seriamente a possibilidade da utilização do etanol como combustível para cocção no Brasil, além de seu uso convencional em veículos.
Novas tecnologias para cocção elétrica já estão presentes no mercado brasileiro e a conveniência desse energético deverá ser determinante para acelerar a entrada desses equipamentos no setor residencial, comercial,e de serviços. No entanto, temos problemas ainda sérios e não resolvidos com relação ao fornecimento de eletricidade. Tecnologias de geração distribuída são também promissoras e poderiam contribuir para atender a essa demanda adicional, mas ainda não se consolidam diretrizes para que elas prosperem no país no ritmo que seria necessário.
Referências
Lucon, O., S. Coelho, e José Goldemberg. 2004. “LPG in Brazil: lessons and challenges”. Energy for Sustainable Development VIII (3): 82–90.
https://www.projectgaia.com/files/AboutProjectGaia.pdf
Utria, Boris E. 2004. “Ethanol and gelfuel: clean renewable cooking fuels for poverty alleviation in Africa”. Energy for Sustainable Development 8 (3): 107–14. doi:10.1016/S0973-0826(08)60472-X.
Jannuzzi, G M, e J. Goldemberg. 2014. “Modern Energy Services to Low Income Households in Brazil: Lessons Learned and Challenges Ahead”. In Energy Poverty: Global Challenges and Local Solutions, 1o ed. Oxford: Oxford University Press.
Jannuzzi, G. M. 1988. “Uso de lenha em áreas urbanas”. Ciência e Cultura 40 (3): 289–91.
Sanga, Godfery Alois, e G.M. Jannuzzi. 2004. “Avaliação de impactos de tecnologias limpas e substituição de combustiveis para cocção em residencias urbanas na Tanzania”. Dissertação de Mestrado. dezembro 15. http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000383972.
Smith,Kirk R., e Evan Haigler. 2008. “Co-Benefits of Climate Mitigation and Health Protection in Energy Systems: Scoping Methods”. Annual Review of Public Health 29 (1): 11–25. doi:10.1146/annurev.publhealth.29.020907.090759.
Muito oportuno post. Aliás, é oportuno sempre exatamente porque esse é um tema marginal aqui e internacionalmente, que desperte o interesse político. Por outro lado, vem percolando as instâncias decisórias.
Embora seja um tema marginal, há muitos grupos de pesquisa excelentes, de debates, experiências e instituições sérias trabalhando com o tema há muito tempo. Uma boa referência é o HEDON (Household Energy Network) - http://hedon.info/tiki-index.php
Uma pergunta: o uso de eletricidade para cocção não cai na mesma questão do uso dela para aquecimento d'água para banho, tão comum aqui no país com os chuveiros elétricos? Faço essa pergunta no sentido de se usar uma fonte com alto valor exergético (de realização de trabalho) para dissipação de calor. Combustíveis renováveis (etanol biogás, por exemplo) não seriam uma opção mais racional do uso do recurso energético à eletricidade?
Obrigado, Rodolfo! Bem lembrado a Referência do HEDON. No caso do uso da eletricidade para cocção temos que pensar de maneira diferente. Aquecimento de água pode ser feita de maneira adequada também com energia solar. A busca de soluções mais eficientes, seja do ponto de vista de 1a. ou 2a. lei da termodinâmica, tem que agora acomodar a busca de alternativas de menor emissões de GEE. Podemos usar eletricidade para cozinhar de maneira bastante eficiente (aquecimento via indução magnética, por exemplo) e sem emissões de carbono, se ela for produzida a partir de energia primária renovável.
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Interessante post, uma boa revisão do tema, certamente relevante e oportuno. Creio que o etanol (possivelmente de cana) tem um papel a cumprir nesse contexto.
Sobre o comentário do Rodolfo, um pitaco: os países que tentaram introduzir massivamente fogões elétricos em nossa região, como o Equador e Cuba, foram motivados por dificuldades em eliminar distorções nos preços do GLP e no suprimento de combustíveis mais adequados. Concordo que o uso de eletricidade para cocção apresenta os mesmos problemas e inconveniências que para o aquecimento de água. Apenas em casos particulares a eletricidade pode ser uma opção racional para aquecimento a baixas temperaturas.