RASTREANDO O ESTANHO: transição energética e caminhos possíveis para uma exploração responsável da cassiterita no Brasil
“RASTREANDO O ESTANHO: transição energética e caminhos possíveis para uma exploração responsável da cassiterita no Brasil” é uma série de duas reportagens feitas a partir do núcleo de pesquisa do projeto “CRAFTing Responsible Tin: A Path to Ethical and Sustainable Mining Practices in the Brazilian Amazon”. O projeto é financiado pela European Partnership For Responsible Minerals (EPRM) e é uma parceria entre a Unicamp, a ONG Association for Responsible Mining (ARM) e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). A primeira reportagem, dividida em dois posts, abordará a cadeia produtiva do estanho e como o Brasil está inserido nela.
Parte 2: O Brasil na cadeia produtiva de estanho e o garimpo de Bom Futuro
Por Yama Chiodi e Nelson Gervoni Junior
Um elemento relativamente inesperado ganha importância diante dos processos de descarbonização. Utilizado em ligas metálicas desde a antiguidade, o estanho é componente essencial na fabricação de placas solares e baterias, razão pela qual sua produção se tornou importante no debate sobre transição energética. Estudar sua cadeia produtiva se tornou necessário para compreender melhor como o Brasil se insere nas transformações econômicas para a sustentabilidade. O estanho é a principal commodity produzida a partir da exploração de cassiterita, que no Brasil é majoritariamente feita na região amazônica, com o uso de Mineração Artesanal e de Pequena Escala (MAPE). Ainda que diversos atores apontem que o uso de MAPE apresente menos riscos associados que outras formas de mineração, é fundamental que essas práticas sejam transformadas por protocolos internacionais e recursos de rastreabilidade para mitigar seus impactos socioambientais. É nesse contexto que o projeto Crafting Responsible Tin se projeta como uma possibilidade de unir pesquisadores, cooperativas da cadeia de produção do estanho e organizações internacionais para produzir práticas mais sustentáveis de exploração da cassiterita e levantar estratégias para mitigar danos e coibir a exploração ilegal de cassiterita na Amazônia. Para ler a primeira parte desta reportagem, clique no número (1) ao final do texto.
Apesar de diferentes fontes apresentarem dados conflitantes, o Brasil está entre os maiores produtores e as maiores reservas de estanho do mundo. Segundo os dados mais recentes da Agência Nacional de Mineração (ANM), de 2020, somos o 4o maior em quantidade de reservas (9,2% do total global) e o 6o maior em produção (6,1% do total global) (Ver gráficos 2 e 3). Apesar de estar muito longe de China e Indonésia, que representam juntas 53% da produção e 42% das reservas globais, há fortes indícios de que a exploração em território nacional está longe de seu teto.
Um destes indícios é que a China Nonferrous Trade (CNT), subsidiária da mineradora estatal chinesa CNMG, adquiriu por cerca de 2 bilhões de reais uma mina de estanho na região amazônica, ao fim de 20249. Esta operação comercial na prática foi a compra da Taboca10, uma das duas empresas brasileiras parte da International Tin Association (a outra sendo a White Solder). A venda causou bastante polêmica, em especial porque entrou num ciclo de divulgação de fake news que chegou a ser compartilhado como verdade por alguns veículos da imprensa. A notícia falsa trazia uma foto dos presidentes Lula e Xi Jinping e dizia que o Brasil vendeu a exploração de urânio na Amazônia. Contudo, além de não haver exploração de urânio na região, sua exploração e venda é de exclusividade da União e só pode ser feita em parceria com a INB (Indústrias Nucleares do Brasil)11.
Determinar o tamanho dos recursos/reservas e da produção de estanho não é tão fácil porque os dados são frequentemente conflitantes. Os dados da International Tin Association (ITA) e do Serviço de Geologia do governo dos Estados Unidos (USGS) parecem ser produzidos a partir de conceitos diferentes para avaliar o que seja a produção, recursos e reservas, razão pela qual os dados de diferentes fontes não podem ser comparados sem um trabalho específico para medir o que cada um deles está aferindo e qual foi a metodologia utilizada. Em geral, os próprios países determinam as quantidades de seus recursos e reservas. Desse modo, decidimos reportar os dados sobre estanho no Brasil que são divulgados pela Agência Nacional de Mineração (AMN) que, segundo eles, são feitos a partir de uma correção dos relatórios globais da USGS. Os dados a seguir foram divulgados em 2020 e apresentam correções feitas a partir do relatório de 2018 da USGS.


Olhar apenas para a participação brasileira nas reservas e produção de estanho não explica em todo a importância do país quando pensamos a relação entre o metal e o debate público sobre mudanças climáticas. Por ocasião do lançamento de seminário sobre minerais estratégicos para a transição energética, o diretor-geral da Agência Nacional de Mineração (AMN), Mauro Souza12, declarou que “Não há transição energética sem mineração, e não há mineração sem uma agência forte”. Por um lado, trata-se de um componente estratégico para o desenvolvimento nacional, menos pelo montante monetário gerado por sua indústria, que não chega a ser tão relevante, mas pelo fato de que hoje 22% da matriz energética brasileira é composta pela geração de energia solar fotovoltaica13 (de acordo com a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica).
Especialmente se considerarmos o aumento expressivo do uso de energia solar na nossa matriz energética nas últimas décadas, o acesso ao metal produzido em território nacional ganha importância. Por outro lado, é o impacto ambiental que faz o Brasil estar no centro do debate. A quase totalidade da exploração de cassiterita em território brasileiro é feita na região amazônica. Para além da questão mais explícita dos problemas decorrentes de atividades minerárias desmatando a maior floresta úmida do mundo, a exploração do estanho tem sido palco de conflitos que passam tanto pela invasão de território indígena como pela ausência de rastreabilidade, que torna quase impossível coibir a venda do metal oriunda de cassiterita ilegal.
MAPE e garimpo de Bom Futuro
De acordo com dados da ITA, cerca de 40% da mineração global de cassiterita é feita por mineração artesanal e de pequena escala (MAPE). No Brasil, contudo, esse número passaria dos 71% por cento, de acordo com a organização. Esse dado coloca uma diferença bastante importante da produção brasileira e dos maiores produtores, como a China, onde a exploração é significativamente mais mecanizada. Em 2022 foi lançado um programa de incentivo à mineração artesanal e de pequena escala chamado PROMAPE14. Nas diretrizes do programa, o que seja MAPE é definido como a mineração de pequena escala cujo fim é produzir “substâncias minerais garimpáveis”, como definido na lei No. 7805, de 18 de julho de 198915. A lei citada menciona especificamente quais minerais podem ser considerados como tal e, entre eles, está a cassiterita.
Ainda que a mineração artesanal possa representar menores danos socioambientais se comparada com uma mineração largamente mecanizada, é necessário analisar casos específicos não apenas para garantir que esses danos sejam controlados, mas que a promessa de uma produção minerária mais responsável possa se concretizar. E é justamente para tentar organizar e garantir que a produção tome uma direção mais responsável que ONGs e organismos internacionais têm trabalhado na criação de protocolos mais rigorosos que ajudem a fiscalizar e transformar os garimpos de MAPE.
É nesse contexto que foi estabelecido o CRAFTing Responsible Tin: A Path to Ethical and Sustainable Mining Practices in the Brazilian Amazon. O projeto é financiado pela European Partnership for Responsible Minerals (EPRM) e é composto por cinco parceiros principais: uma equipe interdisciplinar de pesquisadores do Instituto de Geociências da Unicamp, a ONG Alliance for Responsible Mining (ARM), a Organização de Cooperativas Brasileiras (OCB) e duas cooperativas que atuam em Bom Futuro, a COOPERSANTA e a COOPERMETAL. Reunindo atores de diferentes escopos de trabalho, seu objetivo principal é transformar as práticas de algumas cooperativas que exploram cassiterita no garimpo de Bom Futuro (Ariquemes – RO) para ter um impacto positivo na produção de estanho legal e responsável. Na prática isso significa a aderência das cooperativas a dois protocolos internacionais de mineração responsável: o CRAFT16, já largamente utilizado na exploração do ouro, e o Fairmined17. Com isso, a expectativa é que as cooperativas adiram a práticas mais sustentáveis que mitigam os impactos socioambientais da exploração de cassiterita e contribuam para a produção legal e responsável de estanho.
Na primeira fase do projeto, o núcleo de pesquisa de geotecnologias e recuperação ambiental (um dos três do projeto) trabalhou para fazer um detalhamento do município de Ariquemes – RO e do distrito de Bom Futuro, de onde uma parte considerável da cassiterita brasileira é explorada. Esse detalhamento foi feito por trabalho de campo e laboratorial.


O município tem aproximadamente 4.500 km218 e um espaço marcado muito mais pela atividade pecuarista que pela mineração. Segundo dados obtidos através da Plataforma MapBiomas, em 2023 a área ocupada pela pastagem era de 2.880 km219. Para além dessa atividade econômica, existem dois núcleos urbanos no município, originados também por demandas econômicas sobre o território. O principal núcleo, a cidade propriamente dita, originou-se a partir de ocupações do Vale do Jamari (no centro do município) em um contexto de primeiro ciclo da borracha no Brasil. O segundo núcleo urbano é o Distrito de Bom Futuro. No extremo oeste de Ariquemes, sua ocupação se iniciou quase 80 anos depois, em 1987, a partir de descobertas de cassiterita na região. De acordo com o Ministério do Trabalho20, a área total do Distrito, com suas instalações residenciais e de mineração propriamente dita, era de aproximadamente 35 km2 ao final do século XX.
A partir de análises de dados da plataforma MapBiomas, foi possível observar as dinâmicas e mudanças no uso da terra em Ariquemes/RO. Com um recorte entre 1985, período de início das atividades de garimpo de cassiterita em Bom Futuro, e 2023, o que se observou foi um aumento drástico das atividades de pastagem em detrimento de florestas naturais. Em menos de 40 anos, cerca de 2.160 km2 de floresta foram derrubados e transformados em pasto, com a conversão de 1.800 km2 entre 1985, ano inicial de amostragem, e 2005.


Sobre o distrito de Bom Futuro, a pesquisa fez um levantamento dos usos da terra em uma escala maior e com mais detalhamento (1:5.000) em laboratório. A pesquisa laboratorial demonstrou que os dados do MapBiomas apresentam baixa acurácia para análises mais detalhadas (a própria plataforma recomenda a utilização de seus mapeamentos para escalas de até 1:100.000)21. As principais diferenças se dão no interior do garimpo: os dados da Plataforma apontavam para 20,95 km2 de área minerada, enquanto os dados levantados em laboratório mostraram haver uma vasta área de formação campestre, o que reduz a área efetiva de garimpo para 7,12 km2, menos da metade do apontamento mais generalizante. Ainda assim, a área efetiva de garimpo é quase 7 vezes maior que o adensamento urbano no Distrito – o que indica, dentre outras constatações, a permanente relevância do garimpo sobre a existência desse núcleo urbano e sobre as dinâmicas populacionais do município como um todo.

O levantamento da pesquisa também observou os possíveis territórios indígenas existentes em Ariquemes e/ou em Bom Futuro, especificamente. A motivação para isso foi que boa parte da cassiterita ilegal na região da Amazônia é retirada de território indígena. Para fazer essa verificação, a equipe coletou dados georreferenciados disponibilizados pela FUNAI sobre esses territórios22 e, de acordo com a Fundação, não existem terras Indígenas demarcadas no município. O território mais próximo ao Distrito de Bom Futuro está a cerca de 50 km de distância, em Porto Velho/RO, seguido de dois outros territórios, ambos a 70 km de distância de Bom Futuro.

Rastreabilidade: um caminho para a produção responsável
Para além de melhorar as práticas de exploração para torná-las menos destrutivas do ponto de vista ambiental, os protocolos CRAFT e Fairmined têm por objetivo garantir que os impactos sociais das atividades minerárias sejam reduzidos. Isso passa pela garantia de condições melhores e de segurança de trabalho, pela igualdade de gênero nos garimpos e pelo plano de uma cidade futura, depois que a mineração de cassiterita se tornar escassa. Além disso, os protocolos visam contribuir para que a produção de estanho se torne mais responsável, entre outras coisas, a partir de incentivos e um programa de créditos para os garimpos que consigam garantir a origem e a legalidade de sua cassiterita. Para os núcleos de pesquisa da geologia e das ciências sociais, os outros dois além do núcleo de geotecnologias, rastreabilidade é a palavra de ordem. Os protocolos internacionais e o conceito de rastreabilidade são o principal tema da segunda reportagem desta série, que também descreverá em detalhe cada núcleo de pesquisa de do projeto. Esta é parte fundamental da contribuição da Unicamp: ajudar a encontrar mecanismos que permitam às cooperativas de cassiterita legal provar a origem e produção responsável de sua exploração.
- A History of Metallurgy, por R. F. Tylecote, Maney Publishings, 1992. ↩︎
- https://www.internationaltin.org/ita-study-tin-use-in-recovery-cycle/ ↩︎
- https://www.nytimes.com/2023/11/30/climate/epa-lead-drinking-water-pipes.html?searchResultPosition=1 ↩︎
- https://antigo.mma.gov.br/seguranca-quimica/gestao-das-substancias-quimicas/rohs-brasileira.html ↩︎
- https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/sk/ip_06_903 ↩︎
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6711112/#CIT000 ↩︎
- https://www.internationaltin.org/wp-content/uploads/2018/01/Tin-for-Tomorrow.pdf ↩︎
- https://www.internationaltin.org/wp-content/uploads/2020/02/Global-Resources-Reserves-2020-Update.pdf ↩︎
- https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/estatal-chinesa-compra-mina-de-estanho-na-amazonia-por-us-340-mi-conheca-a-empresa/#goog_rewarded ↩︎
- https://brasilmineral.com.br/noticias/mineracao-taboca-e-vendida-para-a-chinesa-cnmc-por-us-340-milhoes ↩︎
- https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2024/12/02/maior-reserva-uranio-china-chineses.htm ↩︎
- https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/noticias/anm-participa-de-seminario-sobre-minerais-estrategicos-e-transicao-energetica-1 ↩︎
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/meio-ambiente/noticia/2025-03/com-22-da-matriz-eletrica-energia-solar-e-a-2-maior-fonte-do-pais ↩︎
- https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.966-de-11-de-fevereiro-de-2022-379739340 ↩︎
- https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7805.htm ↩︎
- https://www.craftmines.org/en/ ↩︎
- https://fairmined.org/ ↩︎
- https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ro/ariquemes/panorama ↩︎
- https://brasil.mapbiomas.org/colecoes-mapbiomas/ ↩︎
- https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/areas-de-atuacao/op-04-de-1995-garimpo-bom-futuro-ebesa-empresa-brasileira-de-estanho-sa-ro.pdf ↩︎
- https://brasil.mapbiomas.org/produtos/#:~:text=Os%20mapas%20do%20MapBiomas%20tem,utiliza%C3%A7%C3%A3o%20dos%20mesmos%20nesta%20escala ↩︎
- https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas/geoaprocessamento-e-mapas ↩︎
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