Haeckeliano por e-mail

Estou tentando facilitar o acesso ao blog. Sei que checar diariamente blogs em busca de atualizações é chato. Mas visto que eu faço isso rotineiramente, esqueço que pode ser um incomodo para as outras pessoas. Até agora tenho espalhado links no facebook, o que se torna cansativo. De qualquer forma, tenho notado que mais pessoas tem entrado a partir de outros links, então tentarei fazer o possível para facilitar a vida de todo mundo.

Sendo assim, coloquei um app para seguir por e-mail no lado direito da página. Está em inglês, mas qualquer um habituado com a internet sabe quais são os passos: coloque seu e-mail, preencha do “captcha” e submeta. Um e-mail será enviado com um link. Basta clicar nele e violá.

Aceito ainda qualquer outra dica para tornar o acesso mais fácil.

Matthew Chapman fala sobre o sincretismo religioso brasileiro.

Estou começando a ler o livro “Trials of the Monkey” (O Julgamento do Macaco), de Matthew Chapman, autor, roteirista de cinema e descendente direto de Charles Darwin. Menciono esse ultimo não porque acredito que a grandeza de seu ancestral tenha reverberado ao longo das gerações. Pelo contrário: Chapman é, de muitas formas a antítese de Darwin, um homem pouco intelectualizado, pragmático, ateu e perdido, características certamente influenciadas pelo nome de seu ancestral. Segundo ele próprio:

[…] Foi quando fui levado para o zoológico aos seis anos de idade e ao observar os macacos enfiando o dedo no nariz, se coçando e tentando fazer sexo em público que tive certeza: evolução era um io-io e, no meu caso, o io-io tinha quase atingido o fim da corda. Ele tinha que ser puxado alguns centimetros para subir novamente. Se Charles Darwin era o topo, eu seria o fundo. […] Simples mediocridade acadêmica não seria o suficiente. Eu tinha que ser pior que isso. Eu tinha que batalhar contra a educação com tudo que eu tinha.   Assim como Charles era obstinado e diligente na sua coleção de fatos, eu o seria em rejeita-los. Essa seria a minha defesa contra o esmagador peso da história da familia.

Assim como seu ancestral, entretanto, ele parece carregar consigo um enorme amor por sua filha e sua esposa religiosa. Curiosamente, a esposa de Chapman é Denise Dummont, ex-atriz brasileira. Chapman se refere a ela de forma incrivelmente amorosa e com grande admiração, inclusive quando comenta de sua fé supersticiosa, característica que inicialmente ele repudiou, para depois aceitar e admirar. Ao comentar sobre a fé de Denise, Chapman acaba falando sobre a fé brasileira de uma forma interessante e distanciada:

Essa fé é a fonte de tudo que eu amo nela e de tudo o que discutimos. Denise se identifica como Católica, e ainda sim acredita no direito da mulher de escolher [aborto], contracepção, e direitos dos homossexuais. A madrinha brasileira de nossa filha é uma lésbica. Mesmo sendo Católica, Denise acredita – tão casualmente e naturalmente quanto você e eu acreditamos na previsão do tempo – em Candomblé, a mais Africana de todos os sectos de Macumba. Trazida por escravos, o Candomble foi sincreticamente combinado com Catolicismo de tal forma que as fitas de boa sorte africanas  que Denise usa ao redor do pulso veem de uma igreja na Bahia onde foram abençoadas por um Padre [Fitas do Senhor do Bonfim]. De todas as deidades na religião do Candomble temos Iemanja, a deusa–ou santa– do mar, para quem nós jogamos oferendas de flores no Ano Novo; Oxalá, o pai de todos os santos; e Oxum, a deusa da água doce, que é uma das santas de Denise. Todo mundo tem pelo menos dois santos, determinados pelo auto-sacerdote, ou Pai de Santo, através dos búzios. 

No Brasil, ninguém é tido como primitivo, ou insano ou excêntrico por acreditar em tudo isso. Uma noite eu jantei com o Chefe do Protocolo do Presidente do Brasil. Ela falava um inglês perfeito e francês e tinha graduação em ciências políticas em uma universidade europeia.  Na noite seguinte, andando na praia, eu a vi dançando ao redor de uma fogueira, enquanto um sacerdote vestido de branco da Bahia conjurava encantamentos ao som de vinte tambores. Intelectuais, empresários, políticos, doutores, qualquer um pode visitar um Pai de Santo e fazer sacrifícios de animais para trazer boa sorte, ou espantar os maus-augúrios e depois ir em uma igreja católica para acender um vela. Um amigo meu, que é um dos mais poderosos homens da TV brasileira, me disse que se ele dobra o dinheiro dele de uma maneira particular, isso iria assegurar sua contínua prosperidade. Ele dobra o seu dinheiro dessa forma. Denise acredita que se ela acender uma vela na frente das fotos de minha mãe morta e do seu pai morto, isso os estimulará a trabalhar em nosso benefício e nos trazer boa sorte.  Fé supersticiosa é o sine qua non da vida Brasileira em diversos níveis.

Não posso deixar de evidenciar o romantismo nessa passagem. Afinal, mesmo com nosso sincretismo religioso, religiões africanas sempre foram, de uma forma ou outra, discriminadas. Porém me parece um ideal interessante de espiritualidade: a assimilação sincrética soa avessa ao fundamentalismo religioso. Se esse de fato é o caso, talvez o sincretismo e a diversidade sejam um bom ideal para a causa humanista secular.

Um peixe chamado Dawkins (e notas sobre feminismo cético)

Saiu recentemente, na nova edição da revista científica “Ichthyological Exploration of Freshwaters”, um artigo de revisão taxonômica e filogenia do genero Puntus de peixes do Sul da Ásia. O trabalho não traz grandes conclusões, fora o estudo de um grupo de peixes diversificados que necessitava de uma avaliação. Porém, chama a atenção o nome do novo gênero proposto para uma pequena linhagem dentro do grupo:
Filogenia molecular baseada no gene cyt-B. Retângulo vermelho evidencia Dawkinsia, genero novo.

Exato. O gênero Dawkinsia é uma homenagem ao Richard Dawkins. O artigo ainda explica:

Etimologia. O gênero foi nomeado segundo Richard Dawkins, por sua contribuição para o entendimento do público da ciência e, em particular, a ciência evolutiva, gênero feminino.

Agora, eu não sou taxonomista (apesar de ter contribuído para alguns trabalhos de taxonomia), e não sei ao certo como funciona o código de nomenclatura de gêneros novos (ou mesmo se peixes tem uma regra especial), mas achei deveras irônico o fato do nome ter o gênero feminino, tendo em vista o fiasco que Dawkins se meteu na comunidade cética.

Para quem não conhece a história: no ano passado, durante uma convenção cética em Dublin, a blogueira e vlogueira Rebecca Watson (a.k.a. Skepchic) recebeu uma cantada em um elevador. Segundo o relato dela:

No bar, mais tarde naquela noite, […], nós estávamos no bar do hotel. “4 a.m.”, eu disse, “já é demais para mim, rapazes, eu estou exausta. Eu vou para a cama”. Então eu andei até o elevador e um homem entrou no elevador comigo e disse: “Não leve isso a mal, mas eu te acho muito interessante e eu gostaria de conversar mais. Você gostaria de vir para o meu quarto para tomar um café?”. Só uma palavra para os sábios: Rapazes, não façam isso. Eu não sei outra forma de dizer que isso me deixa incrivelmente desconfortável, então eu vou simplesmente dizer que eu era uma mulher solteira, em um país estrangeiro, as 4 da manhã, em um elevador de hotel, com você, apenas você… não me chame para o seu quarto de hotel logo após eu ter terminado de dizer que eu fico desconfortável quando homens me sexualizam dessa forma.

Para os que não sabem, “tomar um café” costuma ser um eufemismo.

A ênfase (negrito) é minha, porém é essa parte do discurso que a Rebecca reitera como sendo o ponto da sua colocação sobre o incidente. De qualquer forma, o que aconteceu depois é ainda meio confuso: eu não sei se a Rebecca fez outras afirmações, ou se apenas o que veio depois da frase destacada realmente ofendeu os homens das comunidades céticas, mas a discussão e agressões atingiram um nível tão impressionante que acho que só pode ser descrito como o primeiro e maior flame war internacional da internet. A coisa toda atingiu um nível tão baixo que Dawkins interferiu na conversa, de forma desastrosa, através de um comentário postado no blog Pharyngula (infelizmente o comentário original parece ter sido apagado, mas reproduzo abaixo):

Querida Muslima, 

Pare de reclamar. Sim, sim, nós sabemos que sua genitália foi cortada com uma navalha e … (bocejo)…  não me conte novamente, eu sei que você não pode dirigir um carro, e você não pode deixar sua casa sem um parente homem, e o seu marido pode bater em você, e você será apedrejada até a morte se cometer adultério. Mas pare de reclamar. Pense no que suas pobres e sofredores irmãs americanas tem que lidar. 

Nessa semana eu escutei que uma delas, que se chama Skep”chick”, e você sabe o que aconteceu com ela? Um homem em um elevador convidou ela para o seu quarto para tomar um café. E eu não estou exagerando. Ele realmente fez isso. Ele convidou ela para o seu quarto para tomar um café. Evidente que ela disse não, e evidente que ele não encostou um dedo nela, mas mesmo assim… 

E você, Muslima, pensa que tem que reclamar de misoginia! Pelamor de Deus, cresça, ou pelo menos adquira uma casca mais grossa.
Richard

Aparentemente a ideia era simular uma carta a uma muçulmanda (“Muslima”) que sofre atos horrivels de abuso, sugerindo que os reais problemas trazidos pela misoginia são aqueles sofridos pelas mulheres ocidentais. A intenção é clara: você, mulher vitima de misoginia “leve” não deveria ligar, afinal, tem pessoas passando por piores situações que a sua. Quando esse tipo de “lição de moral” é emitida, eu sempre me pergunto: deveríamos então nos sentirmos melhores quando estivermos com doenças terminais, apenas por não estarmos mortos? A lógica me parece a mesma.

Eu honestamente não sei o que fez Dawkins se portar assim. Suponho que, da mesma forma que existem trolls machistas que adoram ameaçar mulheres, imagino que existam trolls feministas radicais que se aproveitaram da ocasião para defender seus ideais. Quando isso ocorre, rapidamente posições se formam não apenas por alinhamento ideológico, mas por repudio à algum tipo de pensamento: “eu acho tal tipo de pensamento abominável, essa pessoa se identifica como X, logo vou me associar com a posição contrária”. Não que eu ache que isso justifica a atitude de Dawkins, pois mesmo que ele tivesse respondendo à uma falsa visão do que a Rebecca disse, isso não o exime de não checar suas fontes, ou mesmo de falar com a própria Rebecca (visto que eles tiveram contato durante essa mesma conferencia).

Não estou dizendo que todas as feministas são assim, obviamente, mas temos grupos extremos dentro de qualquer grupo, sejam cristãos, ateus, feministas, vegetarianos, etc. Por exemplo, recentemente a vloggeira Laci Green foi perseguida e ameaçada no Tumblr por um grupo de feministas pelo fato de ter usado um termo aparentemente pejorativo para se referir a transexuais, mesmo depois de ter se desculpado oficialmente pelo fato. Eu sempre digo que a proporção de idiotas em qualquer subgrupo da população humana parece ser constante. Não vejo porque seria diferente para as feministas.

Por falar em idiotas e feminismo, recentemente eclodiu outra flame war no FreeThoughts Blogs. Para quem não sabe, os FTB foram idealizados por PZ Myers (o mesmo que bloga no Pharyngula, o blog onde Dawkins postou seu comentário infeliz) para ser um lugar onde bloggeiros pudessem avançar suas idéias e o ideal do Pensamento Livre (que não é o mesmo que dizer o que lhe vier na cabeça). Recentemente, os FTB adicionaram Phil Mason (a.k.a. Thundef00t), um dos maiores vlogeiros ateus do youtube. Thunderf00t é conhecido, entre outras coisas, por defender a liberdade de expressão acima de tudo, o que o fez ser taxado de racista e de misógino. Ele está por trás do Dia de todo mundo desenhar Mohammed, um movimento, na minha opinião, no mínimo equivocado.

De qualquer forma, a inclusão de Thunderf00t no FTB não foi recebida com entusiasmo pelos membros, coisa que foi agravada pela publicação do primeiro post de Thunderf00t, argumentando exatamente que o problema de sexismo em convenções céticas (uma discussão que ganhou força com a discussão acerca do caso da Rebecca Watson) não era uma questão séria:

Resumindo, existe “assédio” em conferências? Eu não vi realmente nada acontecendo nas próprias conferências, apesar que nos bares em outros lugares, claro que ele acontece (apesar que discutivelmente não mais do que ocorrem em qualquer outro bar ao redor do pais). – De meia dúzia de conferências, isso dá uma ideia da extensão do problema.

Ou seja: você, mulher vitima de misoginia “leve” não deveria ligar, afinal, temos coisas melhores para nos preocupar segundo nossa análise de custo-benefício. Soa familiar, não? De qualquer forma, uma onda de críticas irrompeu, culminando na expulsão do Thunderf00t do FTB por PZ Myers, apos aproximadamente 10 dias de site.

O que torna tais situações realmente desagradáveis, até onde vejo, é a desigualdade entre a capacidade de julgar a sua própria postura em relação a estereótipos racistas ou misóginos. Afinal, uma pessoa pode ter atitudes misóginas sem se identificar como tal (o que imagino que seja raro, inclusive). Tal dissonância pode produzir discursos que são idealizados como harmonizadores, mas são realizados como nocivos. Duvido que Dawkins e Thunderf00t se vejam como misóginos e eu não chamaria eles assim. Mas me parece óbvio que seus discursos se aproximam mais de um discurso misógino do que de qualquer outra coisa.

O que podemos tirar de tudo isso? Bem… com certeza podemos dizer que o antigo gênero Puntus, do Sul da Ásia, agora é dividido em diversas linhagens. Cinco linhagens, pra ser mais preciso…

Referência

Rohan Pethiyagoda, Madhava Meegaskumbura, & Kalana Maduwage (2012). A synopsis of the South Asian fishes referred to Puntius (Pisces: Cyprinidae) Ichthyological Exploration of Freshwaters

Apenas uma caricatura

Abaixo está a caricatura que o Pirulla fez para o segundo video sobre o Felício, no qual ele me cita:

É a imagem que fica na chamada do vídeo, antes de você abrir. Achei que estava muito bem feita, porém  pequena, e por isso que resolvi reproduzi-la aqui (com permissão, claro). Eu gostei muito da tonalidade de pele e do sombreamento. Também gostei muito pelo fato de ser um grande apreciador de MMA: não ha nada mais sereno do que dois homens crescidos se batendo até um desmaiar.

Uma curiosidade: o simbolo no canto superior direito, o porco, também foi feito pelo Pirulla. Se você aumentar a imagem, irá notar que escorre pela perna do porco não é coco, mas a assinatura dele.

20 perguntas que os ateus têm dificuldade em responder


Semana passada Peter Saunder compilou uma lista de 20 perguntas a ateus que, segundo ele, não tiveram respostas decentes nos últimos 40 anos. Decentes para Saunder, pelo menos. De qualquer forma, eu falho em ver o ponto dessas perguntas. Afinal, a incapacidade ou dificuldade de ateus responderem tais perguntas não torna uma alternativa supernatural necessariamente uma resposta válida. Adicionalmente, muitas dessas perguntas tem cunho científico. Qual é a suposição oculta aqui? Que apenas ateus são cientistas (ou que ciência é ateia?).

Não tenho a pretensão de responde-las completamente, principalmente porque algumas delas requerem o mínimo de pesquisa (e acreditem ou não, eu tenho outras coisas para fazer). De qualquer forma acho válido registrar minha opinião sobre esses assuntos.

1) O que causou a existência do universo?

Eu não estava ciente que já haviam demonstrado que o universo tinha tido uma causa. Afinal, a pergunta não é se o universo tem uma causa, mas qual é ela. Essa pergunta pode ir para qualquer lado. Afinal, se formos igualar “universo”=”o que teve inicio com o Big Bang”, então existem muitas respostas possíveis, incluindo a resposta dada por Lawrence Krauss. Note que a resposta de Krauss não responde “por que existe algo e não nada”, mas responde o porque o que existe assume a configuração que vemos, sendo que essa configuração é o que “teve inicio com o Big Bang”. Outra possibilidade é simplesmente que o universo não teve uma causa, seja porque ele é eterno, ou seja porque ele tem uma origem a-causal.

Responder porque existe algo e não nada é uma pergunta diferente.

2) O que explica o ajuste fino das constantes universais?

O ajuste fino das constantes universais, até onde me consta, é a descrição de um padrão visto nas leis usadas para descrever o comportamento dos sistemas físicos. Ou seja, o ajuste fino é apenas um padrão das nos parâmetros de modelos descritivos. Visto que tais leis lidam com contextos muito específicos e livres de erros, o “ajuste” dos parâmetros é uma simples função da ausência de erro nesses sistemas (ou erro nos experimentos criados para testa-las).

Perguntar o que causa o ajuste fino das constantes universais me soa como uma falácia de equivocação, na qual substituímos os modelos descritivos do universo pelo universo e assumimos que, visto que números variam em uma escala, e tais modelos tem parâmetros (constantes) numéricas, logo tais constantes  poderiam assumir quaisquer valores. Eu não estou certo de que isso é possível.

3) Porque o universo é racional?

Até onde sei, racionalidade é uma propriedade de cérebros, e não de universos. Talvez a pergunta seja “porque o universo pode ser descrito racionalmente?”. Se de fato a pergunta for essa, me parece que nossa capacidade de entender o universo é uma função do fato de que o universo é ordenado e que nossos cérebros evoluíram nesse contexto, nos fornecendo ferramentas para interpreta-lo.

Um exercício interessante é tentar imaginar como seria um universo que não é descritivel de forma racional. Tal “universo irracional” impediria qualquer tipo de inferência racional, o que me parece o mínimo necessário para o surgimento de seres racionais. Ou seja, se existisse vida em tal universo (o que eu também acho que seria impossível, visto que não haveria transferencia de informação), ela simplesmente nunca evoluiria para ser “racional”, pelo menos não da maneira que nós somos. Porém imagino que existiria a possibilidade de algum tipo de processamento axiomático eficiente e extrapolável, basicamente porque parece um jeito eficiente e versátil de exploração da realidade.

4) Como DNA e aminoácidos surgiram?

Através de processos químicos. Os aminoácidos são a parte mais fácil, obviamente. Desde os experimentos de Urey-Miller que sabemos que é possível criar aminoácidos através de processos químicos. Muito se fala que as condições ambientais simuladas nesses experimentos não refletiam as condições reais da Terra primordial, porém normalmente se deixa de fora o fato de que experimentos recentes, com condições mais próximas dos modelos atuais para atmosfera primitiva, conseguem produzir mais aminoácidos que os experimentos originais.

No caso do DNA a questão é um pouco mais complicada, porém tanto a origem de nucleotídeos quanto a polimerização de polinucleotideos pode ser atingida naturalmente. A formação de cadeias mais longas e codificantes provavelmente envolveu algum tipo de processo biológico.

5) De onde veio o código genético?

Existem 3 principais teorias da origem do código genético. A primeira é a teoria estero-quimica, na qual a associação entre códon, anti-codon e amnoácidos se dá por afinidades fisicoquímicas. A segunda é a teoria coevolutiva, que postula que a estrutura do código co-evoluiu com as rotas catalíticas dos amnoácidos. A terceira é a teoria do “acidente congelado”, na qual o fato de todos os organismos terem o mesmo código simplesmente por compartilhar um ancestral comum. Tais teorias não são mutualmente exclusivas.

6) Como cadeias de enzimas complexamente irredutíveis evoluem?

Vale lembrar que complexidade irredutível é definido de diversas formas, porém a mais usual é “uma estrutura complexa que deixa de exercer uma função se uma de suas partes é removida”. Disso normalmente se infere que é impossível evoluir tal estrutura por seleção natural, visto que é impossível exercer seleção para a melhora de uma função, sendo que o estado anterior hipotético não poderia ter essa função. Nesse contexto, basta termos rotas metabólicas que exercem outras funções sendo coaptadas para exercer uma nova função. Basta que o passo anterior seja levemente mais benéfico para o organismo que o anterior. Na verdade, acredito que muito da questão da complexidade irredutível vem do fato de que criacionistas avaliam as rotas metabólicas individualmente, ignorando que elas estão em organismos em um contexto ecológico. Mesmo uma pequena queda de aptidão para dada função pode ser compensada por um incremento maior de aptidão em outra característica. O que importa é a aptidão total do organismo e, consequentemente, a aptidão média da população.

Isso torna a dinâmica evolutiva bastante complicada e não linear, visto que não podemos traçar a evolução de dado sistema simplesmente avaliando a função atual do sistema. Mas o fato de ser complicado não significa que é impossivel, como os criacionistas costumam achar.

7) Como nós podemos explicar a origem de 116 famílias linguisticas distintas?

Suponho que através de algum principio de evolução cultural. Afinal, as famílias podem ser construtos artificiais que reconhecemos como discretos apenas porque as informações que agrupavam distintas famílias em grupos mais inclusivos foram superescritas por um longo processo de desenvolvimento cultural. As evidências parecem apontar para o fato de que a origem linguística é única e que processos culturais e padronização geográfica são essenciais para entender a evolução da linguagem.

De qualquer forma, as distintas linguagens não necessariamente surgiram de apenas uma linguagem ancestral. A capacidade para a linguagem parece estar presente em primatas não-humanos, assim como indícios de diferenciação cultural entre populações. Origem independente e fluxo cultural podem ter dominado o inicio da história da comunicação linguística humana.

8) Porque cidades surgiram subitamente por todo o mundo entre 3000 e 1000 AC?

Até onde sei, 2000 mil anos não é “súbito”, principalmente em termos de história humana. De qualquer forma, eu não sei se isso é verdade. Até onde sei, as primeiras cidades datam de até 7500 AC (Eridu – 5400AC; Uruk- 4000AC; Ur- <3000AC; Çatalhöyük-7500AC), o que é consistente com a idea de que a construção de ocupações mais permanentes e do estabelecimento de grandes áreas agricultáveis só foram possíveis com o aumento da temperatura após o ótimo climático do Holoceno.

9) Como é possível a existência de pensamento independente em um mundo governado por acaso e necessidade?

O que essa pergunta quer dizer exatamente, eu não tenho certeza. Saunder parece querer insinuar que necessidade implicam em ausência de escolha e que acaso implica em acausalidade e que pensamento independente (presumidamente livre-arbítrio) ocorre. Porém se minha interpretação está correta, essa pergunta é igual a uma que veem a seguir (explicitamente sobre livre-arbitrio).

Acho que nesse momento não é possivel responder a pergunta sem entender exatamente o que “pensamento independente” é.

10) Como explicamos a auto-consciência?*

Provavelmente como uma função superior de um cérebro complexo e modular, surgido através de evolução. Até onde sabemos, autoconsciência (“self-awareness”) está presente não apenas em humanos, chimpanzés, orangotangos e até alguns macacos. Apesar disso indicar que existe uma origem evolutiva comum para a consciência, nem todos grandes primatas apresentam a capacidade de auto-reconhecimento (usado como indicio de consciência), o que sugere que as bases para a consciência podem estar presentes em diversos graus em diferentes linhagens de primatas, mas as condições específicas para o seu surgimento possam envolver mais fatores, como capacidade de aprendizado, por exemplo.

11) Como o livre-arbítrio é possível em um mundo determinista?

A resposta é fácil: ele não é. Ou ao menos o livre-arbítrio libertario. Agora, se formos usar a definição de livre-arbítrio compatibilista, pela própria definição, o livre-arbítrio seria compatível com determinismo (não que eu entenda o ponto do livre-arbítrio compatibilista como sendo um tópico para discussão).

12) Como explicamos a consciência?*

Sabemos que pessoas com lesões cerebrais tem capacidades de raciocínio moral modificadas ou prejudicadas, como no famoso caso do Phineas Gage. Ou seja, a capacidade de pensamento moral são contingente em características estruturais de nosso cérebro. Curiosamente, muitas características típicas do comportamento de culpa estão presentes em outros animais sociais , e são usados como reforço de relações sociais e para minimizar os efeitos das transgressões contra parceiros de grupo, o que estabelece um continuo natural entre o comportamento visto nesses animais e o nosso comportamento moral.

13) Qual é a base de nossos julgamentos morais?

Nossas vontades, nossa capacidade de empatia e, sobretudo, razão. Não é nada mágico se você para pensar. Todos nós queremos coisas e sentimos obrigações morais para com outros membros de nosso grupo social. Não apenas isso, tais coisas que queremos normalmente são realizadas por intermédio da sociedade (que seja comprar uma Ferrari, afinal, você não tem uma manufatura de Ferraris no seu quintal), o que torna a transformação da sociedade um instrumento essencial para que possamos conseguir essas coisas. Claro, outros membros de nossa sociedade despertam nossa empatia, mas também nosso medo, é isso que significa ser parte de uma espécie de animais sociais. Sendo assim, regras gerais de conduta são estabelecidas para um convívio social menos tenso. 

Na minha opinião, a regra de ouro continua sendo o melhor ideal de conduta social, porém isso nem sempre leva em conta o fato de que os outros membros da sociedade podem ser cretinos e simplesmente fazer com você exatamente o que não querem que seja feito com eles.

14) Porque sofrimento importa?

Bom, ele não importa, ao menos para a grande maioria do universo. Ele importa para nós. O porque disso decorre, como falei acima, de nossa natureza (como um animal) social e nossos desejos para uma sociedade melhor (que está implícito em nossa busca por coisas boas). Nesse tipo de sistema, sofrimento é um indicativo relativamente forte de que as coisas andam mal e que, se um numero grande de pessoas sofrem no seu convívio social, é bem provável que você venha a sofrer também. 

15) Porque seres humanos importam?

De novo, eles importam para nós, que somos humanos pelos mesmos motivos colocados acima. Nós vivemos em um meio social: sem isso, até o mais desfavorecido dos seres humanos seria apenas um louco no meio do mato sem a capacidade de articular um pensamento coerente, se muito. Até em nossos estados mais primitivos nós dependíamos de nosso bando. Ou seja, imaginar um ser humano isolado do resto de seu convívio social é quase como remover do sistema qualquer pessoa que possa vir a se importar com algo.

16) Porque ligar para justiça?

Porque ela faz parte de uma sociedade funcional onde é possível (ao menos em tese) conseguir as coisas que desejamos, através da transformação da sociedade, como já coloquei. A justiça é o mecanismo que tenta impedir que cretinos (ou sociopatas) sejam cretinos.

Porém se a palavra justiça está relacionada à “retribuição”, então a resposta é que devemos ligar para ela porque algumas pessoas precisam disso para fazer algum tipo de racionalização de injustiças cometidas contra elas ou contra entes queridos. Retribuição, na forma de punição estatal, parece apenas funcionar como um dispositivo de coesão social, nesse sentido. Minha opinião é que, na maioria dos casos, não precisamos deles.

17) Como explicamos a quase universal crença no supernatural?

Através de predisposição cognitiva humana à pensamento teleológico e intencional (referencias aquiaqui e aqui). O que isso significa é que nós temos uma capacidade inata de reconhecer propósito e intencionalidade na natureza, mesmo quando essa não existe. Tal predisposição é independente de nossa bagagem cultural (principalmente por estar presente antes de que qualquer aprendizado expressivo ocorra), o que significa que não é religião que a perpetua, mas que ela é um dos mecanismos através da qual nossas crenças supernaturais se expressam. Tais mecanismos parecem ser exatamente os mesmos por trás do reconhecimento de design na natureza. Tais predisposições inatas parecem correlacionar negativamente com o nível de instrução até mesmo em idades pouco avançadas, sendo substituídas aos poucos por raciocínio mediado por regras (aprendidas). Não tão espantosamente, parece haver uma influencia negativa de religiosidade em grau de escolaridade científica.

18) Como sabemos que o supernatural não existe?

Eu não sei se tal pergunta sequer faz sentido. Em quase qualquer definição de “supernatural” que eu consiga conceber, a detecção dele implicaria que tal coisa que foi detectada não é supernatural, apenas desconhecida. Se o supernatural “real” existe de fato, ele não é apenas indetectável, como também não influencia nada em nossa realidade. Ou seja, o supernatural pode existir de forma que não ajude em nada o argumento teísta.

19) Como podemos saber se existe uma existência consciente após a morte?

Da forma que vejo, através de ciência. Afinal, basta descobrir um procedimento pelo qual nossa mente pode ser transmitida através de algum tipo de meio para tal tipo de existência. Existe um pequeno porém ai: sabemos que nossa mente é uma função fisiológica de nossos sistema nervoso central, que é amplamente influenciada não apenas pela conformação específica de sinapses de cada cérebro individual, assim como outros sistemas do nosso corpo. O que entendemos por “mente” é um aspecto de nosso corpo físico. Tal aspecto poderia ser transmitido para esse outro meio (não vejo nenhum tipo de impossibilidade lógica em isso acontecer), porém isso me parece que envolveria algum tipo de transferência de massa/energia para esse outro sistema (afinal, nossas mentes são materiais). E mesmo assim, não vejo como isso necessariamente implicaria em “consciência”. Afinal, a mente age através do corpo, e remover um aspecto apenas e dizer que aquilo apresenta as mesmas propriedades que o todo possuía (pelo menos a propriedade que nos importa) não me parece muito justificado. Seria como fazer um backup de um GPS de um carro e ainda assim achar que o seu pendrive pode te levar até Ubatuba.

20) Como explicar a tumba vazia, as aparições de Jesus após a morte e o crescimento da Igreja?

Eu não estou sequer convencido que Jesus realmente foi uma pessoa real (como acho que deixei a entender nesse post). A tumba vazia, assim como as aparições podem ser explicadas por qualquer outro mecanismo que gerou outros mitos equivalentes. Mesmo um cristão pode entender isso, a não ser que ele também aceite a ressurreição de Hercules, Apolônio de Tiana, Julio Cesar ou, em um exemplo mais recente, Elvis Presley. De forma equivalente, o crescimento da Igreja cristã pode ser explicado igualmente pelo mesmo processo que promoveu o crescimento de outras igrejas que apresentaram uma rápida expansão como o Islã.

Ou seja, a não ser que alguém advogue algum tipo extremo de sincretismo religioso (todas as religiões são verdadeiras ao mesmo tempo), todos nós vamos usar argumentos similares e naturalistas para explicar qualquer um desses fenômenos.

*Autoconsciência é do original “self-awareness” e consciência é do original “conscience”. Apesar de ambos serem traduzidos como “consciência”, o significado (pelo contexto e pelas discussões) parecia ser diferente: 1) capacidade de introspeção e de se reconhecer como aparte de outros e do meio e 2) guia moral interno, para autoconsciência e consciência, respectivamente.

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Nota: Peter Saunder já respondeu 6 perguntas, tentando mostrar como o teísmo faz um trabalho melhor em responder essas perguntas. Ele reiterou que não sabemos a resposta (o que é conveniente, quando você ignora ela), logo Jesus.

Vênus

A primeira vez que escutei sobre a transição de Vênus sob a superfície do sol eu confesso que não fiquei muito empolgado. Isso foi até ver essa foto.

A foto captura bem a fragilidade do planeta frente ao poder e magnitude do Sol que, apesar disso, ousa passar em seu caminho. Claro, isso é completa bobagem se pensarmos do ponto de vista científico, uma vez que o planeta não está “passando” em lugar algum. Ele está orbitando o Sol como tem feito nos últimos bilhões de anos. A unica coisa diferente que agora nós estamos olhando para ele enquanto isso acontece. De qualquer forma, não consigo deixar de achar que tem algo de poético nisso. 


Provavelmente porque essa imagem me lembra da própria Terra. Nós somos aquele planetinha orbitando aquela caldera furiosa, um ponto minúsculo no cenário cósmico de nosso próprio sistema solar. Algo que remete diretamente a Carl Sagan:

“Desse ponto de vista, a Terra pode parecer não ser de particular interesse. Mas para nós, é diferente. Considere esse ponto novamente. Aquilo é aqui. Aquilo é casa, somos nós. Nele todos que você amou, todos que conheceu, todos sobre quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveu sua vida aqui. O conjunto de alegria e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias, e doutrinas economicas, cada caçador e coletor, cada heroi e covarda, cada criador e destruidor de civilizações, cada rei e camponês, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, criança esperançosa, inventor e explorador, cada mestre de ética, cada político corrupto, cada “super estrela”, cada “lider supremo”, cada santo e pecador na história de nossa espécie viveu ali – em um grão de poeira suspenso em um raio de sol”

 -Pale Blue Dot

Não pude deixar de lembrar também do filme Sunshine, pelo óbvio motivo de uma das cenas ser a transição de Mercúrio na face do Sol. Mas não apenas isso: o filme é, na minha opinião, um dos melhores filmes de ficção que foram lançados nos últimos tempos (e extremamente desvalorizado). É tenso, é psicologicamente e emocionalmente exaustivo, se você se deixa levar pelo enredo. Porém essa cena é um dos poucos momentos de tranquilidade e contemplação durante o filme inteiro.

(Clique aqui para ver essa cena ou aqui para uma coletânea maior de cenas com uma das melhores trilhas sonoras que já escutei. Infelizmente o youtube não permitiu postar os filmes diretamente)

É simplesmente contagiante.

Feliciadas – O Show de falácias do Dr. Felício

UPDATE (18/04/2012): Postei um adendo a esse post aqui. Minha posição mudou de simplesmente agnóstico em relação a teoria antropogênica para defensor.——–——–——–——–——–——–——–——–——–——–
Eu confesso que tenho um problema gravíssimo: eu sou quase incapaz de ver alguém falar um argumento mal feito ou nitidamente errado sem responder, o que é particularmente ruim quando assisto algo, como uma entrevista. O que nos trás ao professor Ricardo Augusto Felício.

 

 
Quando fiquei sabendo da entrevista no Jô Soares, soube logo de inicio que eu não queria passar por essa experiência. Não sou climatologista, obviamente, mas a questão climática me atrai, assim como diversos tipos de controvérsias (presumidamente) científicas. Afinal, ou podemos dizer que o planeta está esquentando, ou não podemos, e caso sim, ou podemos afirmar que são os humanos que estão causando tal mudança, ou não. Note que não tenho a pretensão de saber que o aquecimento global é antropogênico (causado por humanos). O que me interessa é se podemos dizer que essa é uma hipótese válida, frente aos dados que temos. De qualquer maneira eu já havia escutado sobre o Felício e sobre o que ele fala, e resolvi evitar a fadiga. 

 
De qualquer forma, me neguei a assistir a entrevista e, para minha sorte, o Roberto Takata tomou a iniciativa de dissecar o discurso do Felício de forma sistemática e com uma precisão que eu não teria nem tempo, nem competência. Infelizmente a história não é tão simples. O Pirulla, com o objetivo de jogar os argumentos do Felício sob uma melhor luz, resolveu avaliar uma palestra longa que o Felício ministrou em Santiago, no RS, expondo mais extensivamente suas ideias. A abordagem do Pirulla no que tange as teorias conspiratórias do Felício foi mais do que adequada (e divertida), porém dois pontos levantaram meus radares: a menção do Stephen Schneider e a do Michael Mann. Bom, eu sei quem são esses pesquisadores e achei as colocações que o Pirulla cita um tanto estranhas. Minha intenção original era apenas responder aos pontos levantados sobre esses indivíduos, mas em nome da honestidade intelectual, resolvi ir na fonte. Ou seja, tive que assistir à palestra do Ricardo Felício. A quantidade de abobrinhas é assombrosa, e por isso teremos que ir por partes. 

 
Os cientistas não se decidem
Logo no inicio da palestra, o Ricardo tenta construir um cenário sobre como o “mito” do aquecimento global é antigo e revisitado diversas vezes ao longo da história. Ele levanta dois pontos principais: o fato dos russos, em 1930 já estarem alardeando sobre o aquecimento global, porém na década de 70, aparentemente haver um consenso sobre o esfriamento da Terra. Ele obviamente esquece de dizer o porquê disso estar errado: 

 

 

 


Ou seja, segundo informações da NASA, o consenso científico é de que sim, durante a década de 30 houve um aquecimento e durante a década de 70 ouve um esfriamento (em relação à década de 40), e nada disso conflita com teorias atuais sobre o aquecimento global.
 
Mas não é apenas isso. O Ricardo parece querer construir a idéia de que durante a década de 70 o consenso acadêmico era de que a Terra estava esfriando, e que tal colocação era baseada em evidências anedóticas. Entretanto, ele cita apenas um artigo de jornal do New York Times como referência, o que me soa um tanto injusto. Afinal, se tal consenso existia, ele deveria existir de alguma forma na literatura acadêmica. Por sorte, esse argumento não é original. Em 2008, Peterson e colegas lançaram um estudo com o objetivo de discutir a tese de que existia um consenso científico durante a década de 70 sobre o resfriamento global. A mensagem do artigo é clara:


Um exame rápido da Figura 1 revela que o resfriamento global nunca foi mais do que um aspecto menor da literatura científica desta era, muito menos um consenso acadêmico […]


Figura 1 de Peterson e colegas, mostrando o numero de artigos publicados que  favoreciam o esfriamento (azul) ou aquecimento (vermelho) global, assim como artigos neutros sobre o assunto (amarelo). As linhas indicam curvas acumulativas de artigos, evidenciando a estagnação de artigos sobre o resfriamento global.

 


A figura de fato mostra uma clara tendência para o aumento do número de artigos que corroboram ou defendem o aquecimento global, enquanto poucos são os que defendem o resfriamento. Se olharmos o número de citações que tais artigos recebem, também chegamos em um padrão similar, com os artigos sobre o resfriamento recebendo cerca de 12% das citações, enquanto os sobre aquecimento conseguiram 73% das citações. Ou seja, não apenas começaram a ser produzidos mais artigos corroborando o aquecimento global, como tais artigos passaram a receber reconhecimento dentro da área, um padrão que parece continuar até hoje. De fato, em 2004, Oreskes constatou que não era possível identificar uma dissidência consistente sobre o aquecimento global dentro da área de climatologia. Outro trabalho em 2010, de Rosenberg e colaboradores, apontou que, dentro dos Estados Unidos, os cientistas da área concordam com os achados e constatações gerais do IPCC sobre o aquecimento global antropogênico.
 
Me parece óbvia a tática do Felício aqui: desestabilizar a credibilidade da comunidade científica para poder abrir espaço para sua própria idéia. Essa é uma técnica bastante suja, comumente empregada por criacionistas (os paralelos são diversos, como pode ser visto aqui). Ela também é injusta pois ignora que os cientistas da época eram explicitamente honestos sobre sua ignorância com relação aos processos climáticos. Ironicamente, um dos que lançou inicialmente a idéia do resfriamento foi Stephen Schneider, que o Felício tanto critica. Porém Schneider deixa claro que sua hipótese é totalmente dependente da validade das premissas do modelo que ele propôs, premissas essas que ele mesmo aceitou serem falsas.
 
Esse cenário mudou substancialmente em 1976, quando Hays e colaboradores lançaram um estudo seminal que avaliava o impacto das alterações no eixo de rotação da Terra sobre o clima global. Tal estudo abriu o caminho para a integração de conhecimentos de diversas áreas, culminando com um nível de entendimento sobre processos climáticos bastante superior ao que se tinha no começo da década.
 
Clima/Tempo
Ainda no quesito “descreditar a comunidade científica”, Felício evidencia que nossas capacidades computacionais para prever variações de temperatura são restritas a 7 dias, e que seria ridículo fazer previsões de anos para o futuro. Porém Felício parece ignorar o fato de que clima é diferente de tempo. Segundo o IPCC:


Clima, num sentido restrito é geralmente definido como ‘tempo meteorológico médio’, ou mais precisamente, como a descrição estatística de quantidades relevantes de mudanças do tempo meteorológico num período de tempo, que vai de meses a milhões de anos. O período clássico é de 30 anos, definido pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM). Essas quantidades são geralmente variações de superfície como temperatura, precipitação e vento. O clima num sentido mais amplo é o estado, incluindo as descrições estatísticas do sistema global.

 

Ou seja: clima são características meteorológicas globais em períodos de tempo extenso, e não o que vemos sendo noticiado no jornal das 8, que é a previsão do tempo. Temperaturas diárias (ou mesmo anuais) são sujeitas a diversas oscilações locais, e são influenciadas por um número muito grande de fenômenos, como correntes de vento, cobertura de nuvens, etc. Porém o acúmulo de mudanças ao longo de um dado período é mais previsível. Isso pode ser visto na primeira figura que coloquei: apesar da média anual variar bastante, quando tomamos um período de 5 anos, a média desses valores varia muito menos, e assim vemos padrões emergindo. Essa distinção é essencial, e é estranho um climatologista não saber diferenciar ambos.
 
Isso não significa, obviamente, que existe uma questão em termos de previsão de mudanças climáticas. Os modelos que explicam a variação climática são totalmente dependentes em como outras variáveis irão se comportar. Ou seja, não adianta prever que o clima irá esquentar, se as emissões de CO2 caírem. Mas enquanto o Felício poderia ter feito uma crítica inteiramente válida sobre o assunto, ele resolveu realizar engajar em espantalhos.
 
Ursos Polares sabem nadar
O Felício segue então ridicularizando o emprego dos ursos polares como ícones do derretimento das calotas polares. O raciocínio parece ser que, visto que ursos polares são capazes de nadar mais de 100km de uma só vez, isso significa que a perda do gelo não implicaria em problema algum para a espécie. Apesar de ser verdade que estes ursos são grandes nadadores, isso não os torna imunes à redução na calota polar.
 
Um estudo com radio-colares por Pagano e colegas acompanhou 52 fêmeas por 5 anos, sendo que 10 destas possuíam filhotes. Apesar de todos os indivíduos, incluindo os filhotes, apresentarem grande capacidade de natação, das mães ursas, apenas 6 conseguiram manter seus filhotes após o período. A mortalidade dos juvenis pode muito bem não estar vinculado à atividade de natação, ou mesmo pode estar muito bem dentro dos limites do aceitável. Porém, um estudo por Durner e colegas acompanhou uma ursa durante uma maratona de 687km de natação em 9 dias, e observaram que a fêmea não apenas perdeu 22% da sua massa corpórea nesse período, como também seu filhote de 1 ano. É importante ressaltar que Pagano aponta que talvez tais períodos extensos de natação não sejam habituais, e sim consequências da diminuição das calotas polares.
 
Mortalidade em adultos devido à afogamento não é desconhecida também. Um senso realizado em 2004 observou 55 registros de ursos polares em uma região costeira do Alaska, dos quais 10 foram observados em águas profundas e 4 foram observados mortos boiando em águas abertas, provavelmente em decorrência de exaustão. Importante notar que sensos realizados nos anos anteriores (1987-2003) encontraram apenas 12 ursos nadando em mar aberto, e nenhuma carcaça afogada. Tais dados sugerem que, de fato há um aumento de ursos engajando em longos períodos de natação, provavelmente em decorrência do degelo e ursos morrendo em decorrência disso.
 
Trabalhos de captura e recaptura apontam que um número reduzido de dias por ano sem gelo impacta negativamente a sobrevivência de ursos polares, diminuindo sua taxa reprodutiva e a sobrevivência dos filhotes. A perda de gelo velho (gelo que não degela entre um ano e outro) também foi positivamente associada com perda de refúgios para ursos e, consequentemente, perda de áreas adequadas para a criação dos filhotes. A manutenção das calotas polares também pode ser associada à conservação de energia (minimizando a necessidade de extensas migrações por natação) e por ser o habitat das suas principais presas, as focas-aneladas. Ou seja, a redução de cobertura de gelo pode impor maiores demandas energéticas sobre os adultos, reduzir a disponibilidade de alimentos e de habitats para reprodução e refúgio. Nada disso pode ser remediado pelo fato deles “poderem nadar muito”, como parece sugerir o Felício.
 
Apesar dos modelos preditivos não convergirem em um único diagnóstico (exemplos aqui e aqui) especialistas da em conservação de urso polar foram categóricos ao concluir:


Degradação de habitat induzida por aquecimento já estão afetando negativamente os ursos polares em algumas partes de sua distribuição, e aquecimento global irrefreado vai eventualmente ameaçar ursos polares em todos os lugares.

 

O irônico é que o Felício parece entender que a exposição à água pode trazer mais riscos para um urso, porém usa a orca como um fator de risco para os ursos, sendo que não consegui achar nenhum registro de orcas consumindo ursos polares na literatura acadêmica.
 
Ciência como subjugação
O Felício coloca que a ciência surgiu como uma forma de subjugação: da natureza e dos outros indivíduos. A evidência disso? As bombas atômicas que os Estados Unidos lançaram sobre o Japão.
 
Eu não tenho uma crítica explicita sobre essa colocação, pois o absurdo de tal afirmação me é evidente. Mas eu imagino: se bombas atômicas são evidência de dominação, o Processo Haber, que ajuda alimentar um terço da população mundial é evidência do que?
 
Stephen Schneider defendia que cientistas deveriam mentir
Como disse anteriormente, a menção à Schneider foi um dos principais estímulos para ver a palestra do Felício. Sabia que Schneider era um defensor do aquecimento global (e um dos proponentes do esfriamento global da década 70, como coloquei acima), e assumi que os ataques à sua pessoa tinham essa motivação. Entretanto, muito me admirou ver que o ataque ao Schneider era sobre sua suposta defesa aberta à enganação do público.
 
Achei isso intrigante por dois motivos. Primeiro porque Schneider era conhecido por advogar que os cientistas deixassem claro que o entendimento da ciência sobre um assunto não é uma prescrição moral sobre o mesmo assunto. Segundo porque só alguém realmente burro diria que cientistas devem mentir, e depois assinaria embaixo.
 
Porém a história não é tão simples assim. A passagem exposta pelo Felício, no qual Schneider aparece sugerindo que os cientistas escondam suas dúvidas e ofereçam cenários alarmantes vem de uma entrevista concedida à Discovery Magazine de 1989. A citação do Felício é só um pedaço da passagem completa que, quando em contexto, muda bastante a interpretação do significado da passagem. Abaixo transcrevo a passagem completa, grifando as partes citadas pelo Felício:
 

Por um lado, como cientistas nós somos eticamente obrigados ao método científico, efetivamente prometendo contar a verdade, toda a verdade, e nada exceto isso – o que siginifica que nós devemos incluir nossas duvidas, ressalvas e “ses”, “es” e “poréns”. Por outro lado, nós não somos apenas cientistas, mas seres humanos também, e como muitas pessoas, nós gostaríamos de ver o mundo ser um lugar melhor, que nesse contexto se traduz em trabalhar para reduzir o risco potencial de mudanças climáticas desastrosas. Para atingir isso, nós precisamos [os cientistas devem esticar a verdade] para conseguir algum suporte, para capturar o imaginário público. Isso, claro, significa atrair grande quantidade de cobertura midiática. Nós devemos oferecer cenários amedrontadores, fazer afirmações simplificadas e dramáticas e fazer pouca menção de qualquer dúvida que possamos ter. A “dupla obrigação ética” que nós normalmente nos encontramos não pode ser resolvida por qualquer fórmula. Cada um de nós deve decidir qual é o balanço correto entre ser efetivo e ser honesto. Eu espero que isso signifique ser ambos. 

 

(retirado daqui)
 
Ou seja, quando Schneider estava fazendo essa colocação, ele não estava dizendo o que os cientistas deveriam fazer, mas expondo um dilema ético que me parece real, e concluindo que espera que a decisão individual dos cientistas os levem a ser eficientes E honestos. Transformar isso em um discurso de apologia a mentira é bastante baixo. Desejar que o Schneider queime no fogo do inferno por defender algo que ele não defendeu, e acusá-lo de ser apologeta de genocídio (se bem entendi o ponto) beira o delirante.
 
“A tríade”
Esse é talvez o ponto mais desonesto da palestra. O Felício tenta estabelecer que a lógica por trás do “ambientalismo” é circular, pois “caos ambiental”, “aquecimento global” e “mudanças climáticas” seriam três coisas que se causam mutuamente e circularmente. Porém o Felício deve saber que “aquecimento global” e “mudanças climáticas” são usadas como quase sinônimos nos debates políticos, e que dentro da área de conhecimento que ele deveriaser expert, aquecimento global é um tipo de mudança climática, assim como esfriamento global seria, se ele estivesse ocorrendo. Ou seja, não há relação de causa-consequência, e simplesmente se tratam de categorias de classificação, uma dentro da outra (não diferente do fato de humanos serem mamíferos e vertebrados).
 
E quanto a caos ambiental? Bem, esse é causado quando as mudanças climáticas excedem a capacidade de resiliência do ecossistema. Ou seja, não há circularidade alguma. 
 
Agora, o que me espanta mais é que um pretenso cético do clima não cita a principal relação causal na teoria do aquecimento global antropogênico, a mesma que ele almeja rebater: a ação do homem! Sem a principal peça da teoria fica fácil montar um cenário aparentemente sem fundamento. O Felício obviamente sabe disso, mas escolheu distorcer a realidade de qualquer forma, tudo para montar seu cenário conspiratório.
 
A natureza está aqui. Mas ela não existe.
A tese parece ser simples: existe o estrato geográfico, que é a camada mais externa da Terra (tirando a atmosfera, eu acredito) onde está toda a natureza. Porém “natureza” não existe, pois ela é algo inventado pelos humanos, o que é evidenciado pelo fato de que nenhuma árvore se autodenominou como “árvore” (ou “natureza”).
 
O que o Felício parece querer fazer aqui é algum tipo de ponto filosófico profundo, mas recai em um pequeno erro de equivocação ao igualar um conceito a um objeto. É obvio que “tijolo” é um conceito, um nome inventado por um humano. Mas é igualmente óbvio que tal nome tem o objetivo de fazer referência a um objeto que existe, no caso, um tijolo.
 
Parece obvio, mas o discurso do Felício não parece deixar nenhuma outra interpretação que não a de que ele não sabe essa distinção. O conceito “natureza” faz referencia a um objeto que nós chamamos convenientemente de “natureza”, tal objeto que, até onde podemos averiguar, existe tanto quanto qualquer outra coisa que não são nossas mentes individuais. E se a colocação de que “X é uma concepção da mente humana, logo não existe” fosse válida, logo não podemos afirmar que nada de fato existe (ou talvez quase nada, exceto nossa mente). Como tal tipo de elocubração solipsista se encaixa em uma discussão sobre clima me foge completamente.
 
Agora, o mais espantoso é que tal mumbo-jumbo filosófico é apenas usado para chegar à idéia de que o homem, através desse processo de conceitualizar coisas, dividiu o mundo em nações e que daí decorre o fato de que algumas dessas nações são exploradas, o que se encaixa na teoria conspiratória que ele desenvolveu e o Pirulla já abordou. 
 
Eu não estou evidenciando esse ponto levianamente. Isso ilustra o caráter delirante do discurso do Ricardo Felício. 
 
O IPCC confessa que não existe relação entre CO2 e temperatura
O Felício coloca as seguintes citações do 4o relatório do IPCC:
 

As variações do dióxido de carbono ao longo dos últimos 420 mil anos seguiram amplamente a temperatura antártica tipicamente de vários séculos a um milênio.

 

e


Concluindo, a explicação para as variações glaciais e interglaciais de CO2 permanece como um difícil problema de atribuição

 
Essas citações, segundo o Felício, indicam duas coisas: 1) o aumento da temperatura antecede a elevação do CO2 e 2) não sabemos o que causa essa elevação no CO2durante esse período. Sendo assim, e isso já seria o motivo o suficiente para o cético declarar vitória pois, afinal, o próprio “inimigo” (nas palavras do Felício) já confessou que não existe ligação entre CO2atmosférico e aumento da temperatura.
 
Porém é importante notar que tal conclusão se baseia em uma premissa: visto que tais estimativas de temperatura foram feitas a partir de amostras de gelo obtidas na região Antártica, tal temperatura estimada não pode ser apenas uma estimativa local de temperatura, mas sim representativa de todo o mundo.
 
Se esse não for o caso, então podemos explicar tais fenômenos dentro dos modelos atuais: uma elevação de CO2 em outra região (digamos, hemisfério norte) poderia causar um aquecimento dos mares, potencialmente em escala mundial. Tal aquecimento diminuiria a solubilidade do CO2, levando a liberação de mais CO2 no ar, o que explicaria o aumento (local) de temperatura antecedendo o aumento (local) de CO2.
 
Isso implicaria que fenômenos ocorridos nos oceanos ou mesmo no hemisfério norte fossem determinantes para explicar a inicial estabilidade do CO2 na região Antártica. Isso é sugerido no relatório do IPCC e amplamente referenciado, porém imagino que céticos vejam isso como mera especulação não substanciada por evidências. Afinal, não há evidencias corroborando esse modelo, correto?
 

Bem… sim, há. Para resolver o problema amostral, Shakun e colaboradores, em 2012, utilizaram outras fontes de dados mais recentes, como amostras de gelo da Groenlândia, sedimentos marinhos, de lagos continentais e etc. Apesar dessa amostra não abranger um período tão extenso quanto as amostras de gelo antártico (apenas 18 mil anos), elas são consideravelmente melhores distribuídas ao longo do mundo:

Figura 1 de Shakun et al. a) Localização das amostras. b) Distribuição dos registros em relação a latitude.

 

A partir dessas amostras, Shakun e colegas puderam reconstruir as tendências climáticas do período e avaliar a defasagem (ou “lag”) entre o aumento de CO2 e o aumento de temperatura. Os resultados mostram que, enquanto no hemisfério sul a temperatura precede o aumento do CO2 atmosférico, no hemisfério norte, é o CO2 que precede o aumento de temperatura, corroborando a hipótese prévia de que as amostras antárticas (que estão no hemisfério sul) são enviesadas. Adicionalmente, estimativas globais de temperatura são consistentes com o aumento do CO2 precedendo o aumento de temperatura, como evidenciado na figura abaixo:
 

Figura 2 de Shakun et al. a- Estimativas de temperatura ao longo dos últimos 22 mil anos através das amostras antárticas apenas (vermelho) e baseadas nas amostras de Shakun et al (azul). Pontos amarelos indicam estimativas de CO2 atmosféricos. b- “Lag” entre temperatura e CO2 em anos. Barras vermelhas indicam amostras do hemisfério sul (incluindo Antártica), barras azuis indicam amostras no hemisfério norte e barras cinzas são estimativas globais. Barras à esquerda da linha pontilhada indicam amostras nas quais o aumento de temperatura precede o aumento de CO2 e barras à direita indicam amostras nas quais o aumento de CO2 precede o aumento de temperatura.

 


Interessante notar que, após a inclusão de novos dados, se torna evidente que o aumento no CO2 atmosférico precede o aumento da temperatura. As conclusões dessa pesquisa não são nada diferente do que já se propunha:
 
  • Ciclos de movimentos orbitais desencadeavam o aquecimento inicial, que foi inicialmente registrado em latitudes mais elevadas.

 

  • Aquecimento do Ártico derreteu grandes quantidades de gelo, causando um influxo de água doce nos oceanos.

 

 

  • Essa invasão alterou os padrões de correntes oceânicas, causando uma oscilação de temperatura entre os hemisférios, com o hemisfério sul aquecendo primeiro.

 

 

  • Esse aquecimento liberou CO2 atmosférico que, por sua vez, causou mais aumento de temperatura através do efeito estufa.

 

Essas hipóteses estavam no relatório do IPCC, mesmo que de forma sugestiva. Ou seja, apesar de desatualizado, o relatório do IPCC não apenas apontou o caminho certo quanto às teorias que poderiam levar a esses registros antárticos, como foi honesto o suficiente para não afirmar categoricamente o que não poderia afirmar.
 
 
A emissão de CO2 antropogênica é insignificante frente às fontes naturais, como oceanos
E de fato é.  Se juntarmos as emissões dos oceanos e dos continentes (incluindo florestas), a contribuição dos seres humanos é abaixo de 5% do total. Bastante impressionante, mas totalmente irrelevante.
Tanto oceanos quanto continentes (incluindo processos geológicos) têm capacidade de não apenas emitir CO2, mas também de fixar, sendo que o processo mais famoso e útil de fixação de carbono é a fotossíntese. Quando levamos em conta processos naturais de fixação de carbono, vemos que eles são capazes de absorver mais da metade do carbono emitido por humanos. 

Modificada da Figura 7.3 do 4o relatório do IPCC representando o ciclo global de carbono. Números estão em giga-toneladas

 


O resto? Bem, o resto acumula na atmosfera. Conveniente deixar isso de fora, não?
 
O IPCC tem apenas 200 cientistas
Segundo uma nota oficial do IPCC, o 4o (e mais recente) relatório do IPCC contou com a contribuição de mais de 2500 revisores científicos especialistas, mais de 800 autores colaboradores e mais de 450 autores principais. No ramo acadêmico, normalmente escreve e revê quem entende do assunto, ou seja, cientistas.
Agora, a relevância disso me escapa. A autoridade do IPCC não vem dos autores que escrevem o texto, mas da ciência na qual ele se baseia.
 
Os cientistas dissidentes formaram o NIPCC
Honestamente eu nunca havia ouvido falar desse NIPCC, e não sei quantos cientistas fazem parte dele, não que isso importe, como coloquei acima. Mas uma busca rápida revelou que eles são filiados ao, e talvez financiados pelo, Heartland Institute, um “think-tank“ financiado por organizações da direita conservadora norte-americana, empresas de petróleo e combustível, assim como empresas farmacêuticas e de cigarro. O Heartland foi um dos responsáveis pelo lobby pró-tabaco nos EUA durante a década de 90, se não me engano.
 
De qualquer forma, eu não vou ter tempo de ler o relatório do NIPCC, mas li algumas revisões dele aquie aqui. Os argumentos no relatório parecem se resumir a basicamente uma “fé muito forte e não fundamentada nas retro-alimentações negativas da natureza [no clima] que são muitas vezes hipotéticas e com evidências poucas, contraditórias ou ausentes de que tais processos estão atuando em uma escala global de forma significativa“ (do primeiro link).
 
Agora, isso é estranho. Se tais céticos depositam sua fé em processos que revertam o processo de aquecimento, qual é a contradição? Afinal, ambos podem ser verdade: tanto o aquecimento antropogênico quanto a capacidade da natureza se autorregular e resolver tudo. Me parece que tais céticos, ao contrário do Felício, não duvidam do aquecimento, e talvez possam aceitar até mesmo o aquecimento antropogênico.
 
Não há aumento de perturbações atmosféricas
O Felício diz que não há um aumento do número de ocorrências de furacões no Brasil em decorrência do aumento do clima, e que o aumento no número desse tipo de fenômeno pode ser creditado principalmente ao aumento do esforço humano em registrar esses eventos.
 
Enquanto isso tecnicamente é verdade, ou pelo menos é muito difícil verificar se de fato não há um aumento do número de ocorrências em comparação com as décadas passadas, o Felício parece sugerir que não há uma influência do aumento em temperatura nesse tipo de fenômeno. Entretanto, se há um aumento de temperatura, há mais energia no sistema, e essa energia precisa ir para algum lugar. Inclusive, o Felício comenta sobre isso, dizendo que o excesso de energia é direcionado para a dinâmica de fluidos, e é dispersado no sistema. Porém quando temos mais energia, essa dispersão ocorre de formas mais… bem, energéticas. Mas como verificar isso, sendo que não podemos diagnosticar se houve um aumento no número de furacões?
 
Uma solução é observar a intensidade e velocidade dos ventos pois podem ser avaliadas para cada evento individualmente. Foi exatamente isso que Emanuel fez em 2005, correlacionando a temperatura dos oceanos com o poder de dissipação do furacão (PDI, uma medida de poder destrutivo), onde podemos ver um forte aumento do PDI desde a década de 70:
 
 
Figura 2 de Emanuel (2005) mostrando a curva suavizada do Índice do Poder de Dissipação (linha tracejada) e temperatura da superfície do mar do tropical Atlântico (linha sólida).
 
 

Adicionalmente, Elsner (2008) com o uso de satélites, estimou a velocidade dos ventos ao longo do tempo e observou que há uma tendência de aumento da velocidade dos ventos em furacões mais fortes, enquanto a mesma tendência não pode ser vista nos furações mais fracos:
Figura 3 de Elsner (2008) mostrando um plot dos quantis (que podem ser interpretados como a força dos furacões) contra uma tendência de aumento de velocidade por ano. Linha vermelha é a tendência geral de aumento (que é diferente de zero) e o polígono cinza é o intervalo de confiança da estimativa do aumento de velocidade. Enquanto furacões mais fracos não aumentam uma tendência significativa, furacões mais fortes apresentam.
 

 

Então o ponto é simples: mesmo que não haja um aumento do número de furacões, eles estão ganhando intensidade.

 

 
John Christy é contra o alardeamento catastrófico das mudanças climáticas
E de fato é. Mas é importante notar que ele também disse que:


“Eu sei que a maioria (mas não todos) os meus colegas do IPCC se contorcem quando digo isso, mas eu não vejo nenhuma catástrofe se desenvolvendo ou a arma fumegante provando que a atividade humana deve ser culpada pelo aquecimento que observamos

 

Grifo meu. Ou seja, Christy nega (ou aparentemente negou já) que o aquecimento é antropogênico e até que ele é alarmante. Mas não nega a existência do aquecimento. Acho importante apontar isso, pois quase todos os cientistas que o Felício cita como sendo céticos (assim como o caso do NIPCC) não negam o aquecimento. Ou seja, apesar de parecer que o Felício está se baseando em algum tipo de literatura, ele está escolhendo suas informações com muito cuidado.
 
Na prática, ninguém parece concordar com ele.
 
As estações de medição estão mal colocadas
O argumento do Felício aqui é tomado diretamente da crítica do Anthony Watts, um meteorologista cético que tomou como missão demonstrar que as estações meteorológicas dos EUA estão colocadas próximas a áreas fortemente antropizadas, por exemplo, perto de churrasqueiras, em telhados de concreto, etc.
 
Isso pode muito bem ser verdade, porém nem todas as estimativas de temperatura vêm de estações climáticas. De qualquer forma, existem distinções entre estações colocadas em centros urbanos e as colocadas em áreas rurais:
 
Figura 5 de Hansen e colaboradores (2001) mostrando dados obtidos das redes de estações “não acesas” ou rurais, estações peri-urbanas e estações urbanas.

 

É interessante notar que esse trabalho mostra a convergência desses padrões com os obtidos por satélite, por exemplo. Ou seja, mesmo com estações mal colocadas, esses dados são consistentes com outras fontes de dados. A crítica de Watts trata-se basicamente em focar nas estações mal colocadas, ignorando todo o resto.  É válido lembrar que esses dados não são mais a única evidência de aquecimento, ainda mais porque essa rede, que o Watts critica, é apenas dos EUA.

 

 

A temperatura da Idade Média foi mais alta
A figura que o Felício usa para ilustrar esse ponto vem do primeiro relatório do IPCC, e se olharmos direito, podemos observar que ela não tem escala no eixo y:

 


Ou seja, não há como saber o quanto a temperatura durante esse período foi mais elevada. Então, de onde o Felício tirou que essa temperatura é de dois graus mais elevada que a atual? O MESMO relatório diz:

“O período desde o fim da ultima glaciação tem sido caracterizada por pequenas mudanças na temperatura média global com uma amplitude de menos de 2oC

Grifo meu. Outras fontes apontam que tal amplitude seria de aproximadamente 1oC. Porém isso pouco importa. Estimativas mais recentes não apontam para temperaturas mais elevadas durante a Idade Média:
 
Reconstruções  paleoclimáticas de Moberg e colaboradoresMann e colaboradores e Ljunqvist.

 

Notem que a diferença entre o período medieval indicado e o atual é de quase 0.5 oC. Mann ainda coloca que aparentemente as temperaturas mais altas da Idade Média estavam restritas principalmente ao norte do atlântico.

 

 
É interessante notar que as reconstruções paleoclimáticas compiladas no IPCC só são válidas quando corroboram a hipótese dos céticos.
 
O Taco de Hockey foi desmascarado
Para quem não sabe, o chamado taco de Hockey são os gráficos que mostram uma estabilidade grande ao longo do tempo de variáveis climáticas e uma recente elevação.  O gráfico que o Felício mostra é uma reconstrução do original, proposto por Mann, Bradley e Hughes:
 
Modelo de variação climática durante o um milénio para o Hemisfério Norte. Linhas vermelhas são medições instrumentais, linhas azuis são reconstruções paleoclimáticas baseadas em anéis de crescimento de árvores, amostras de gelo, corais e registros históricos. Linha escura indica a tendência média suavizada.

O Felício segue dizendo algumas coisas bastante curiosas. Inicialmente ele diz que Mann e colaboradores utilizaram apenas três árvores. Isso é evidentemente falso, como mostra uma inspeção do material suplementar do artigo, onde temos árvores de pelo menos 4 continentes sendo usadas.
 
Felício diz ainda que nos dados que McIntyre e McKitrick obtiveram de Mann para tentar reconstruir os resultados originais, havia uma pasta nomeada “censurado“, onde estaria o algoritmo de reconstrução mostrando que os dados que “abaixam“ a temperatura estariam sendo censurados durante a análise. Porém as coisas não são assim. Tais dados “censurados” foram bases de dados excluídas durante uma análise de sensitividade, que tem o objetivo de avaliar quais dados são inconsistentes ou pouco confiáveis. Durante tal análise, Mann e colegas verificaram que um dos conjuntos de dados dendrocronológico que parecia confiável, na verdade divergia do restante dos dados, indicando uma temperatura inferior durante o período de 1800-1900.  Tal aparente declínio de temperatura (que não batia com nenhuma outra fonte de dados) era provavelmente um efeito secundário do próprio CO2 atmosférico. De qualquer forma, não foi essa a crítica feita por McIntyre e McKitrick (que não são nem climatologistas, nem matemáticos, como clama o Felício, mas um trabalha em indústria de mineração e o outro é economista, respectivamente). Ambos criticaram principalmente a metodologia estatística empregada por Mann e colegas, que responderam em detalhes à essas acusações, demonstrando que tais criticas não eram válidas e não alteravam seus resultados.
 
Em outras palavras, o Hockey Stick não foi desmascarado, muito pelo contrário. Acima mostrei 3 paleo-reconstruções que são basicamente iguais ao Taco de Hockey original. Adicionalmente, nesse ano tivemos um resultado similar para o nível do mar, que também parece apresentar uma elevação abrupta em períodos mais recentes (ver abaixo).
 
É importante deixar evidente que, sim, existem problemas com o modelo original, que é de 1998, e muitos deles foram corrigidos em artigos subsequentes (a reconstrução acima de Mann é de 2008, quase 10 anos depois). Para uma revisão das controvérsias em torno do modelo, veja as referencias aqui.
 
O nível do mar não mudou nos últimos 150 anos
O Felício coloca, categoricamente, que o nível do mar não se modificou nos últimos 150 anos, e que basicamente todas as variações de nível do mar que vemos são variações de marés e ciclos lunares mais extensos. Porém isso não é verdade. Um estudo recente por Kemp e colaboradoresusou sedimentos de pântanos salinos que são comumente inundados por marés. O estudo mostrou que o nível do mar permaneceu estável por mais quase um milênio, sofrendo dois surtos de elevação, um gradual, antes de 1000 AD e outro mais recentemente, no século XX.
Tendência anual média do nível do mar para os últimos 2100 anos. Linha azul mostra as reconstruções de Kemp, a linha verde são medidas de marégrafos e a linha vermelha é um modelo que correlaciona temperatura com nível do mar.

É interessante notar que, segundo o modelo vermelho, o nível do mar deveria ser mais baixo do que mostram os dados. Porém o erro das estimativas de temperatura aumentam com o tempo (ou seja, temperaturas mais antigas são mais difíceis de reconstruir). Ajustando-se a temperatura em poucos décimos (0.2) já remove a discrepância dos modelos, sugerindo que talvez as temperaturas passadas sejam mais altas que a usada nesse modelo em particular.
           
Conclusões gerais
Com havia dito inicialmente, não gosto do Ricardo Felício. E não é por discordar dele por questões científicas. Eu discordei de quase todos os meus orientadores em algum ponto e eles provavelmente discordaram em muitas coisas que eu disse. Em momento algum, até onde sei, isso gerou qualquer tipo de inimizade. Meu problema com o Felício é sua apelo recorrente à falácias, seu uso de informações falhas e  distorção sistemática de pesquisas, citações e informações.
 
Eu posso estar sendo pouco generoso com ele. Como ressaltei em algumas passagens, acho que existem pontos válidos a serem ditos em vários dos assuntos levantados por ele. Infelizmente, ele baseou fortemente seus argumentos em raciocínio falho e pesquisa mal feita, o que impossibilita interpretar o discurso dele como “simplificado”, mas sim simplesmente errado.
 
Agradeço o Pirulla pela paciência na correção do texto, porém todos os erros e equivocos no texto são de responsabilidade minha. Se alguém achar que alguma crítica minha não está bem justificada, ou que está simplesmente errada, por favor, avise. Tentarei reavaliar minha posição sempre que possível (e deixar isso claro no texto). Minha área não é climatologia e o Ricardo Felício é presumidamente especialista na área. Estatisticamente eu diria que as chances estão contra mim. 
 
Ah, claro… estimei que o Felício ganha um 0,2 na escala Crivella (lembrando que 1 Crivella = 5 erros/minuto). É uma estimativa grosseira, claro, pois o Felício se repete muito. Eu diria que talvez esse valor possa ser tão baixo quanto 0,05 Crivella, levando em conta o fato de eu poder estar errado em algumas questões e de eu não ter prestado atenção em tudo. Se alguém tiver outra estimativa, esteja mais que bem-vindo a dividir com o resto de nós.

Burocracia em favor do preconceito

Como muitos devem saber, está sendo veiculada a noticia de que duas garotas foram expulsas de um colégio por serem homossexuais. Os detalhes são bem chocantes, como a atitude dos professores e a comparação de homossexualidade com assassinato. Porém não foi isso que me chamou atenção. Foi a desculpa dada pela escola para justificar as expulsões:

“A verdade é que ela infringiu uma regra clara da escola e por isso ela recebeu a sanção do afastamento, a questão da intimidade sexual. O aluno, independente se é um relacionamento homossexual ou heterossexual, ele recebe a mesma consequência”, afirma o diretor do colégio Weslei Zukowski.

Ou seja: “Não somos preconceituosos: reprimimos sexualmente todos nossos alunos.” Certo…

Porem não pude deixar de me recordar de um caso também ocorrido em uma escola, quando um garoto foi punido por não tirar o boné na hora da oração. Claro, a regra do colégio era que o boné não era permitido em sala de aula, então pedir que alguém remova o boné é totalmente condizente com as regras. Mas o ponto é que o mesmo não era cobrado de nenhum outro aluno em nenhum outro momento: apenas o aluno que se recusou a faze-lo em um momento específico (nota: a escola era pública).

Acredito que essa aplicação seletiva de leis como veículo de preconceito não seja uma questão pontual. A tempos lembro de ter lido em uma entrevista na Piauí (infelizmente não poderei referenciar) na qual um delegado explicava como a lei é construida para criminalizar o pobre. Um bom exemplo que vemos sempre são os acusados de crimes de “colarinho branco” respondendo em liberdade, enquanto “ladrões de galinha” são confinados por anos até um julgamento. O motivo disso, até onde me consta, é que um dos critérios para responder em liberdade é possuir um emprego fixo e uma residência, coisa que ladrões de galinha raramente possuem.

Esses são apenas alguns exemplos que podemos ver “legalismos” sendo usados para a perpetuação de ações preconceituosas (e injustiças), e acredito que existam muitos outros.

Videos no Canal do FSEMZUSP!

Para quem ainda não sabe, o Fórum de Sistematica e Evolução do Museu de Zoologia da USP está com um canal no YouTube e está disponibilizando filmes de palestras e outros eventos que ocorrem no museu.

Eu estava na cola deles sobre isso à séculos, desde que descobri que o MZUSP tem um sistema de filmagem bastante avançado (e com uma qualidade de som ótima, como vocês irão notar). A internet carece de filmes científicos de alto nível em português, e acredito que essa seja uma oportunidade ótima para divulgação e popularização.

Eles também estão colocando aulas que foram ministradas durante o curso de aperfeiçoamento de monitores, que ajudei a organizar. As aulas tem caráter mais didático, então talvez seja ideal para quem quer saber um pouco mais sobre os assuntos expostos.

O único motivo pelo qual estou falando disso é que eles ainda tem menos vizualizações do que meu blog, o que é uma evidência forte de que estão tremendamente sub-aproveitados. Então, entrem lá, se inscrevam e aproveitem as palestras!

Acompanhem também as novas palestras no site deles e no perfil deles no facebook.

Links:
Canal: http://www.youtube.com/user/FSEMZUSP
Google Site: https://sites.google.com/site/fsemzusp/
Facebook: https://www.facebook.com/profile.php?id=100003741473576

Variáveis, ou porque precisamos de ratinhos

A um certo tempo atrás, meu colega Pirula fez um video falando sobre testes em animais no qual ele menciona sobre a necessidade de controlar variáveis durante a realização de um estudo com o objetivo de identificar efeitos de tratamentos médicos.

Apesar da questão ética ser de grande interesse meu, não é exatamente esse o meu foco aqui. Durante o vídeo, Pirula dá alguns exemplos do que seriam “variáveis” e passa a bola para o Bernardo (do canal NerdCetico) explicar em mais detalhes. Eu assisti o vídeo do Bernardo e não acho que ele fez um bom trabalho. Meu objetivo aqui não é mostrar que o Bernardo está errado, pois não sei disso: ele tem formação matemática e eu não. Ou seja, a diferença de nossas explicações podem ser meramente um reflexo do jargão das diferentes áreas. Porém posso dizer que estou relativamente familiarizado o jargão experimental de alguns ramos do conhecimento, especificamente em biologia. Visto que o tema original era sobre experimentação em animais, imagino que minha exposição chegue mais próxima do que o Pirula tinha originalmente em mente, e complemente a explicação sobre o porque precisamos controlar variáveis de um ponto de vista estatístico prático (se é que podemos conceber algo assim).

Sendo assim, vamos aos termos:

O que são variáveis?
Variáveis são quaisquer aspectos de um sistema sob investigação que podem variar entre as diferentes observações. Em outras palavras, é o que pode variar entre diversos objetos ou fenômenos que caem dentro da mesma categoria. Por exemplo, se eu estou investigando cadeiras,  variáveis possíveis são desde o peso, o material do qual ela é feita e até mesmo se o seu design se enquadra no movimento bahaus ou não. Ou seja, não existe uma regra que determina que uma variável necessariamente é expressa em valores numéricos, como normalmente se pensa.

Em sistemas biológicos temos uma multitude de características que variam entre os diversos organismos: cor, tamanho, forma, número de células, capacidade de manutenção de temperatura, grau de atividade, idade, etc. Dentro dessa pluralidade de variáveis podemos reconhecer alguns tipos gerais:
-Variáveis Qualitativas, Categóricas ou Discretas:  são todas aquelas que podem ser expressas em categorias que agrupam todos os objetos que possuem aquela característica específica. Por exemplo, quando tentamos identificar a espécie em roedores silvestres, a pelagem é uma característica bastante importante, podendo variar em cor e em tonalidade. Normalmente tais variáveis não apresentam o que chamamos de “ordenação”, ou seja, não existem valores intermediários entre as categorias: um organismo pode ser autotrofo ou heterótrofo, sendo que não existem intermediários entre essas categorias.
Variáveis Quantitativas ou Contínuas: são todas aquelas que variam ao longo de um escala contínua. A grande maioria das grandezas físicas varia dessa forma: peso, massa, aceleração, etc. Muitas variáveis biológicas também se comportam desta forma, como taxas metabólicas, comprimentos de estruturas biológicas, período de atividade, força de mordida, porcentagem de matéria vegetal na dieta, etc.

Variáveis Ordinais (ou semi-quantitativas): assim como as variáveis categóricas, são compostas por classes mutuamente exclusivas. Assim como as variáveis contínuas, essas categorias estão ordenadas de alguma forma, ou seja, existem valores mais baixos, intermediários e maiores. Exemplos desse tipo de variáveis são contagens de eventos, ou qualquer outro tipo de variável expressa por números inteiros (e.x: 1, 2, 3, 4…).

Nem sempre um tipo de fenômeno precisa ser avaliado necessariamente como um tipo único de variável. Por exemplo, podemos avaliar a altura dos indivíduos de uma população de como uma variável quantitativa (medida em centímetros) ou de forma qualitativa (indivíduos “altos” e “baixos”) ou ordinal (indivíduos “pequenos”, “médios” e “grandes”). Tudo depende do tipo de investigação que está sendo feito, nossa capacidade de medir os fenômenos, etc.

Relações entre variáveis

Uma metodologia comum em investigações científicas é o estudo das relação entre diferentes variáveis, com o objetivo de testar previsões teóricas (ex: tal remédio é seguro para o uso). Nesse contexto, costumamos interpretar o valor de uma variável como uma função dos valores de outra variável. Por exemplo, no exemplo abaixo, y é uma função dos valores de x:

Neste exemplo, a relação entre as variáveis é linear, ou seja podemos entender que a relação entre elas é dada por uma reta (ou por uma equação de primeiro grau), na qual cada valor de x tem um valor associado de y. O que é interessante notar é que nessa caso temos uma variável y que depende do valor de x de forma linear (ou seja, segundo uma equação de primeiro grau do tipo). Por esse motivo chamamos y comumente de variável dependente e o x de variável independente. 

Quando analisamos estatisticamente duas variáveis, digamos, dosagem de uma droga experimental e taxa de recuperação, o que fazemos é tentar achar as relações de dependências entre elas. Ou seja, no exemplo, precisamos achar como a taxa de recuperação (Tr) depende da dosagem (d) da droga experimental. Estatisticamente a relação entre essas duas variáveis é dada pela função

onde a0 e a1 são coeficientes da função linear e epslon (simbolo que parece um “e” no fim da equação) é o que chamamos de “erro“, que contem tudo aquilo que não estamos interessados no momento, como peso do indivíduo, idade, dieta, etc. Dessa forma, os métodos estatísticos nos permitem avaliar o que é o real sinal nos nossos dados (ou seja, qual é o efeito da droga na recuperação) do que não nos interessa naquele momento.

Porque controlar o erro?
Visto que o erro em uma analise pode ser controlado estatisticamente, então porque devemos controlar esse erro, ou melhor, no contexto da discussão inicial, porque devemos usar animais de laboratório, que são todos homogeneizados para minimizar tais erro?

O motivo é basicamente estatístico. Quando nosso erro não está controlado, ele pode apresentar uma magnitude grande demais, o que dificulta a identificação da real relação entre as variáveis. No exemplo abaixo, a relação entre as variáveis é a mesma (y=0.5+0.03*x), mas o erro na segunda analise é muito maior do que na primeira. Note também que as retas são bastante diferentes, indicando que a reta obtida com maior erro é muito diferente da real.

Outro ponto é que para o erro (pequeno ou grande) ser considerado como tal em analises estatísticas, ele tem que ser aleatório, ou seja, não pode mostrar forte associação ou padronização com qualquer outra variável que possa ser relevante para o nosso estudo. Quando isso ocorre, tais variávies precisam ser incorporadas  explicitamente na analise, onde cada variável que existe na população deve ser avaliada:

Onde todas as variáveis são expressas por x e seus coeficientes lineares por a. Nesse exemplo, a taxa de recuperação é uma função não apenas da dosagem do remédio, mas da idade, peso, dieta, tipo sanguíneo, sexo, etc.

Entretanto, a solução não é simplesmente coletar mais informações sobre os indivíduos que estão na análise. Existe um numero mínimo de indivíduos que precisam ser utilizados que aumenta a medida que avaliamos mais e mais variáveis. Esse número mínimo é uma função de diversos fatores, e existe toda uma área dedicada ao estudo desse tipo de coisa, porém uma coisa pode ser colocada categoricamente: o número de indivíduos na sua análise nunca pode ser inferior ao número de variáveis abordadas explicitamente. Ou seja, se formos em uma população humana natural, quantas variáveis devem variar de forma significativa? Cinqüenta? Trezentas? Acho que dá para pegar a idéia. Adicionalmente, quando avaliamos um número muito grande de correlações, existem sempre a possibilidade de identificar correlações onde na verdade não existem nenhuma, por puro acaso (é o que os estatísticos chamam de erro do tipo I).

Isso talvez ajude a entender porque muitas das análises sobre benefícios de algum tipo de alimentação variam tanto. Via de regra, tais estudos tem que ser realizados na população humana, incluindo todos os problemas metodológicos colocados. Ou seja, o resultado pode variar tanto não porque os “cientistas não se decidem se ovo é bom”, mas porque os indivíduos amostrais para esse tipo de investigação (e.g. seres humanos sem controle algum) são particularmente ruins para análises estatísticas.

Em outras palavras, testar um produto em uma população não controlada não é apenas perigoso (afinal, estamos falando de medicamentos, e não shampos para cabelos secos), mas é ciência ruim.