em musicologia

A representação da música em notação

Jose Fornari (Tuti) – 16 de janeiro de 2019

fornari @ unicamp . br


A música é uma arte composta por eventos sonoros ordenados no tempo. Uma vez que sons são entidades informacionais intangíveis, que de fato ocorrem como música apenas no momento da performance, a música é conhecida como a mais imaterial das artes. Para a preservação e o estudo de uma composição musical, é necessário existir um método de registrá-la, seja como processo acústico ou através de dados simbólicos. O registro acústico só veio a ser possível no final do século 19 DC, com o advento do fonógrafo, em 1877 (adiante falarei sobre os modos de representação da informação acústica no domínio do tempo e no domínio da frequência). Antes disso, apenas o registro simbólico da música era possível de ser realizado, que normalmente ocorre através do que se conhece por notação musical. Esta descreve o processo de recriação de uma performance musical, que é o evento de geração sonora, onde a composição se manifesta na forma de uma sequência de passos fortemente ordenados ao longo do tempo, que se executados corretamente, por um ou mais músicos, permite recriar um evento musical com similaridade perceptual suficiente para que este seja reconhecido pelos ouvintes como sendo uma performance de uma determinada composição musical.

Representação dos dados acústicos de um trecho musical no domínio do tempo (acima), no domínio da frequência (ao meio) e seus dados simbólicos (abaixo). Fonte: Zhiyao Duan and Emmanouil Benetos. Automatic Music Transcription. Tutorial at ISMIR 2015

Assim, a notação musical constitui um modo de se registrar a intangível arte sonora musical, como que na forma de uma receita culinária, ou de um código de programação, com grande ênfase na sequência temporal de eventos que registra o processo através do qual uma determinada performance musical pode ser recriada. Como a notação musical não é a música em si mas apenas o seu “mapa”, ou seja, a sequência de passos ordenados no tempo para a recriação de uma performance, esta permite com que, além do compositor, o interprete também tenha uma significativa participação criativa no processo musical. Através da sua técnica e da sua criatividade, a interpretação de uma dada notação musical pelo músico irá influenciar decisivamente tanto na qualidade quanto no significado da performance. A notação musical foi e sempre será um importante método de registro, tanto para a análise quanto para o entendimento do processo de criação de uma composição musical.

Existem registros históricos de notações musicais muito anteriores àquelas utilizadas na música da Grécia antiga. Por exemplo, a notação que era utilizada na Suméria (atual Iraque) datada de 14 AC. Esta notação era grafada em forma de escrita cuneiforme (ou seja, feitas com marcas de cunhas em placas de argila). Na Grécia antiga, a notação musical era grafada em papel de papiro, onde a melodia já era organizada em tetracordes, ou seja, grupos de 4 notas onde a afinação da primeira e da última (a quarta) nota são distanciadas por um intervalo de uma quarta justa, ou seja, um intervalo de frequência de 4 por 3. A afinação das duas notas intermediárias era móveil, de acordo com o gênero de tetracorde utilizado. Neste período, os tetracordes eram pensados de forma descendente, ou seja, da nota mais aguda para a nota mais grave.

Segundo Aristóxeno, o gênero de tetracorde mais natural e antigo é o diatônico, pois apresenta intervalos máximos de afinação entre notas consecutivas de cerca de 1 tom. A escala diatônica, composta por 2 destes tetracordes, é conhecida desde antes da Grécia antiga, por ser gerada a partir de uma sucessão de 6 quintas perfeitas. Por exemplo, para a escala diatônica de Dó (C), tem-se os seguintes intervalos: F-C-G-D-A-E-B. Estes podem ser reorganizados de modo consecutivo, na seguinte sequência: C-D-E-F-G-A-B, que é a escala diatônica.

A notação musical que antecede a pauta atual, com 5 linhas (pentagrama), é chamada de neuma (da palavra grega “pneuma” que significa “sopro”). Os neumas normalmente indicavam apenas o contorno melódico, sem referência a sua divisão rítmica. É atribuído a Guido D’Arezzo, um monge beneditino do século 10 DC, a introdução da notação musical moderna, ainda que neste período as músicas continuassem sendo grafadas em pautas de 4 linhas e em hexacordes; grupos de 6 notas onde a sétima nota da escala diatônica (o que seria a nota Si da escala diatônica de Dó), era retirada a fim de evitar a ocorrência do trítono entre o quarto e o sétimo grau (Fa e Si), o que era chamado na época de “diabolus in musica”, ou “o intervalo do diabo”. Este era considerado um intervalo muito dissonante para os padrões estéticos musicais da época. A obra mais famosa de Guido D’Arezzo é o tratado “Micrologus” que analisa o canto gregoriano e a música polifônica. [1,2,3]

Entre os séculos 14 a 16 DC ocorreu o período da Renascença na Europa. A música neste período evoluiu do estilo medieval, onde apenas intervalos perfeitos de uníssonos, oitavas, quintas e quartas e eram considerados consonantes, para também englobar terças e sextas como intervalos consonantes. Ocorreu assim a proliferação de estruturas musicais polifônicas, onde diversas vozes (ou seja, melodias) passam a coexistir numa mesma peça musical, de uma forma harmonicamente interconectada. Isto levou ao desenvolvimento das chamadas técnicas de contraponto, cujo principal teórico foi Gioseffo Zarlino, considerado o mais importante teórico musical desde Aristóxeno. Em seu livro “Le istitutioni harmoniche”, Zarlino apresenta diversas regras contrapontísticas, descrevendo técnicas de composição com duas ou mais vozes simultâneas, além de também tratar de outros modos de afinação da escala musical, como o temperamento mesotônico, considerado um precursor do atual modo de afinação de temperamento igual. Outros importantes teóricos musicais da renascença (entre tantos) foram: Nicola Vicentino, que estudou escalas microtonais e o volume sonoro na música; e Vincenzo Galilei, pai de Galileo Galilei, que fez importantes descobertas em acústica, em especial na relação da tensão de cordas e volume de colunas de ar na produção de sons tonais. É importante lembrar que foi na Renascença que ocorreu a invenção da imprensa, por Johann Gutenberg, o que contribuiu decisivamente para a proliferação e a difusão do conhecimento musical, através da impressão de livros, tratados e partituras. [4]

 

Referências

[1] John Haines. “The Origins of the Musical Staff”. The Musical Quarterly, Volume 91, Issue 3-4, October 2008, Pages 327–378, https://doi.org/10.1093/musqtl/gdp002. Published: 04 May 2009

[2] Claude V. Palisca. “Guido of Arezzo”. In Deane L. Root. Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press.

[3] M. L. West. “Ancient Greek Music”. Clarendon Press. 1992

[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Renaissance_music 


Como citar este artigo: 

José Fornari. “A representação da música em notação”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 16 de janeiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/16/3/

Escreva um comentário

Comentário