José Fornari (Tuti) – 8 de maio de 2019
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Vimos no artigo anterior o processo de formação das tríades maiores e menores a partir da série harmônica e como isto pode ter influenciado a constatação de estados afetivos que estes acordes remetem aos ouvintes. Poderia-se argumentar que, apesar da tríade menor apresentar um menor intervalo entre a fundamental e a terça, esta apresenta em contrapartida um intervalo maior entre sua terça e a sua quinta, o que em termos intervalares faria com que esta se equivalesse à tríade maior. Ocorre que perceptualmente a quinta na tríade age como uma nota que embasa, sustenta e valida a tonalidade determinada pela sua fundamental, enquanto que a terça da tríade age como o agente de caracterização, que determina se o modo deste acorde é maior ou menor. Como experimento para constatar este fato, é interessante utilizar novamente o já citado gerador de tons puros (versão online no link https://www.szynalski.com/tone-generator/) pra criar uma tríade onde a terça tem a relação intervalar ainda menor do que o intervalo de terça menor, de razão 6/5. Este acorde “hiper menor” tem o intervalo de 7/6 que equivale ao intervalo entre o sétimo e o sexto harmônico da série harmônica (lembrando que o intervalo da terça maior justa é dado pela razão 5/4). No exemplo do artigo anterior, para uma fundamental de 1000Hz, a terça maior equivale ao intervalo de frequência (5/4)*1000=1250Hz. A terça menor equivale à (6/5)*1000=1200Hz e este intervalo, ainda menor que a terça menor, a (7/6)*1000 ~ 1166,67Hz. Se o ouvinte iniciar por escutar esta tríade (1000, 1166,67, 1500Hz) e depois passar para a tríade menor (1000, 1200, 1500Hz) perceberá que esta última (que é de fato a tríade menor) escutada nesta sequência será percebida pelo ouvinte como se fosse a tríade maior, despertando assim a mesma constatação afetiva de alívio, descomplicação e leveza que a tríade maior apresenta em relação à menor. O arquivo de áudio abaixo demonstra esse efeito, iniciando com o intervalo de quinta (fundamental e quinta, ou seja, 1000 e 1500Hz) e depois inserindo a a terça “hyper-menor” (1166,67Hz), seguida pela terça menor (1200Hz) e maior (1250Hz).
Este experimento nos leva a perceber a grande influência do nosso referencial cognitivo na maneira como escutamos e entendemos o contexto afetivo musical. No entanto, existem estudos etnomusicológicos que descrevem grupos culturais onde os ouvintes não compartilham da mesma constatação afetiva do modo menor que a maioria dos ouvintes enculturados pela música ocidental possuem. Alguns povos ao redor do mundo, tais como os que habitam áreas do sudeste europeu (península balcânica), partes do norte africano e também no oriente médio, não tendem a constatar o modo menor como remetendo à melancolia, solenidade ou “ruminação mental”. Isto nos leva a concluir que o fator cultural é também um elemento fundamental para determinar no ouvinte a constatação afetiva dos modos musicais, como é o caso dos modos maior e menor. Existem estudos estatísticos de musicologia sistemática que afirmam que na cultura ocidental, grande parte da produção musical (entre 65 a 75%, dependendo do gênero musical) é feita em modo maior. David Huron e colegas constataram que o ouvinte ocidental típico, ao escutar uma melodia pela primeira vez, tende a interpretá-la como se esta fosse em modo maior, até que este tenha uma constatação inquestionável de que a melodia é de fato em modo menor (por exemplo, a ocorrência de um intervalo de terça menor com a fundamental), onde somente a partir deste momento, este ouvinte típico da cultura ocidental mudará sua interpretação melódica para o modo menor. A relação entre os intervalos e as tríades maior e menor forma a base da música tonal européia, que se amalgamou, segundo Joshua Albrecht, por volta do século 16 DC, a partir dos 7 modos gregos (explicados no roteiro 17) de onde descendem os 2 principais modos musicais da atualidade: o maior e o menor.
No entanto, existem outros dois tipos de tríades que podem ser geradas a partir de intervalos consecutivos de terças. A tríade criada a partir de 2 intervalos de terça menor é chamada de “tríade diminuta” e a tríade formada a partir de 2 intervalos de terça maior é chamada de “tríade aumentada”.
O que se percebe é que, para o ouvinte enculturado na tradição musical européia, a tríade diminuta soa ainda mais melancólica do que a tríade menor, chegando mesmo a representar sentimentos extremos como o de “tragédia” ou “terror”. Isto se deve ao fato de que esta tríade apresenta 2 terças menores e estes intervalos juntos geram, entre as notas extremas desta tríade, o já mencionado “intervalo do diabo”; o trítono. O trítono é um intervalo de 6 semitons (por exemplo, entre F e B) que representa em si uma grande tensão, Iniciando com a nota F, a nota B superior (que com esta forma um trítono) equivaleria ao 11oharmônico de F. Interessante notar que o trítono é simétrico, ocorrendo exatamente no meio da escala cromática (ou seja, o intervalo de 6 semitons dos 12 semitons que compõem a oitava). Assim, se iniciarmos o trítono a parir de B, este também formará um trítono com seu F superior e este equivalerá a seu 11oharmônico. Este intervalo musical representa uma distância cognitiva muito grande entre ambas as notas que formam este intervalo. Por este motivo o trítono normalmente representa uma tensão que pede por uma resolução, ou seja, um rearranjo de suas notas constituintes de modo a minimizar esta tensão, por exemplo, deslocando ambas as notas um semitom em sentidos contrários, por exemplo, de F e B (trítono) indo para E e C (que é o intervalo de sexta menor, ou terça maior invertida), ou de F e B indo para F# e Bb (intervalo de terça maior). O arquivo de áudio abaixo demonstra essas duas resoluções, na ordem em que são citadas acima.
No caso da tríade aumentada, tem-se 2 intervalos consecutivos de terça maior. Por exemplo, em C-E-G#, tem-se a terça maior entre C e E e outra terça maior entre E e G#. Apesar deste ser, em teoria, um acorde com menor tensão que a tríade diminuta, este surpreendentemente tem mais tensão harmônica do que a tríade maior equivalente: C-E-G. A razão disso está no fato mencionado acima, de que o intervalo de quinta entre as notas extremas da tríade maior e menor (C e G), embasam a fundamental como tonalidade predominante do acorde (no caso do exemplo, C). Este intervalo de quinta com a fundamental da tonalidade é chamado de “dominante”. No caso da tríade aumentada, o intervalo entre as suas notas extremas (C e G#) é uma sexta menor, equivalente à uma terça maior invertida (G# e C). No exemplo de tríade aumentada: C-E-G#, não se tem o embasamento da tonalidade da fundamental devido à falta da dominante de C. A tríade aumentada é simétrica e a inversão da ordem de suas notas componentes também incorre em outra tríade aumentada (por exemplo, C-E-G#, E-G#-C e G#-C-E, são todas tríades aumentadas). O arquivo de áudio abaixo demonstra estas 3 inversões da tríade aumentada.
Referências:
[1] Joshua Albrecht, David Huron. “On the Emergence of the Major-Minor System: Cluster Analysis Suggests the Late 16th Century Collapse of the Dorian and Aeolian Modes” Proc. 12th International Conference on Music Perception and Cognition. Thessaloniki, Greece. July 2012.
[2] Huron, D., Kinney, D., & Precoda, K. (2006). Influence of pitch height on the perception of submissiveness and threat in musical passages. Empirical Musicology Review, Vol. 1, No. 3, pp. 170-177.
Como citar este artigo:
José Fornari. “Acordes e Afetos”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 8 de maio de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/05/08/19/